A primeira vez que alguém gritou “Black is Beautiful” foi, supostamente, no ano de 1858, na cidade de Boston nos Estados Unidos. A frase teria vindo de um discurso feito por John Swett Rock, um abolicionista negro, professor, médico e advogado. Logo, esse grito entalado na garganta se tornou uma bandeira da luta antirracista e por direitos civis na década de 1960. O Black is Beautiful veio junto do Black Power.
Pouco tempo depois, essa palavra de ordem seria reapropriada por Steve Biko e pelo movimento da Consciência Negra na África do Sul. Era preciso se afirmar como negro, tomar consciência. No Brasil, a bandeira chegou por meio do Movimento Black Rio, um movimento musical que se organizava em torno de circuitos de bailes soul e, com isso, mobilizava milhares de jovens negros das favelas e periferias do Rio de Janeiro. Assim, logo se espalhou por outras grandes cidades brasileiras nos anos 70.
O Black is Beautiful, ou O preto é lindo, propõe desconstruir a ideia que inferioriza características naturais do sujeito negro, como traços corporais, tom de pele, textura do cabelo, entre outras. Significa que nós não aceitaremos mais os estigmas racistas e a imposição estética da branquitude.
Porque afirmar que o Negro é lindo?
Uma sociedade racista é também uma sociedade que vive em constante dualidade. Ela é construída através de oposições e negações. A construção do branco é feita a partir da negação do sujeito negro. O sujeito branco é, antes de tudo, o oposto do negro. Já esse sujeito negro é, antes de qualquer coisa, um negro. Antes de ser uma criança, ela é uma criança negra; Bem como uma mulher, que, antes de ser uma mulher, é uma mulher negra. Essa lógica de funcionamento faz com que o negro seja visto sempre como “o outro”, algo “distante” do visto como universal, que é o branco.
O negro se torna a negação da humanidade, e recebe as caracteristicas negativas. O branco, por sua vez, se vê como a negação do negro, convertendo a ideia de branquitude na afirmação da sua humanidade. O sociólogo Guerreiro Ramos aponta que, para se distanciar da situação social que o negro está inserido, bem como de suas características taxadas como negativas, a branquitude se afirma pela positiva e busca ser cada vez branca.
Importante aqui apontar que essa lógica de oposições e negações é uma criação ocidental, fruto da construção do sistema capitalista. Assim, a criação da ideia de raça surge para legitimar uma nova situação social, que é o colonialismo e a escravização dos povos africanos.
Nos campos estético, “cultural”, religioso e artístico, essa dualidade se constrói. Na estética, em especial, o negro teve seus traços diminuídos e associados aos de animais. Esse processo de desumanização do corpo negro serviu para sustentar ideologicamente o processo de escravização, pois era dito que negros se pareciam mais com seres primitivos do que com os humanos (aqui vistos como os europeus). O branco representa o belo, o bom, o aceitavél, enquanto o negro é o feio, o primitivo. O branco era o objetivo a ser alcançado, enquanto o negro era aquilo que devíamos nos afastar.
O ideário a ser atingido e aceitável é o branco. E isso é um processo violento e adoecedor para pessoas negras. O negro, muitas vezes, busca se enquadrar no modelo padrão para ser aceito, e rejeita seus traços físicos, enxergando o branco como modelo a ser seguido. Assim, rejeita seu cabelo e vê o do branco como ideal, rejeita sua cultura e olha para a do branco. O negro tenta ser aceito no mundo do branco, dando as costas para seu próprio mundo. Esse processo é violento na medida que nós passamos a nos odiar, odiar quem somos e odiar nossa história. Passamos a enxergar o outro sempre como superior. E, no fim, não importa o quanto se tenta ser fiel a esse condicionamento, o negro ainda será visto como um negro, reforçando ainda mais o processo de violência e adoecimento da negritude.
Desta forma, a aceitação de seus traços é um ato que rompe com esta lógica de funcionamento. Porém, não é um ato fácil. É uma caminhada longa, importante, e que cada qual a faz no seu tempo. Os conflitos subjetivos tem um tempo de avanço diferente do avanço da consciência social, apesar de estarem ligados.
O cabelo e a estética como política
A construção do cabelo negro como algo ruim funciona como a não aceitação do negro como ele é. Seja via comentários de outros, ou por experiência própria ao se deparar com a mídia, a criança negra aprende, desde pequena, que seu nariz, sua boca, sua cor de pele, seu cabelo, são opostos ao que é considerado como belo. Aprendemos a nos odiar desde cedo, e a ruptura com este processo é algo fortalecedor.
O cabelo é uma marca de identidade, funciona como uma linguagem social, e, muitas vezes, como identificação racial. Em pessoas negras, é um traço que tende a ser rejeitado e embranquecido para se inserir nos padrões do racismo. O processo inverso, de confronto a essa lógica social, se dá quando a pessoa negra não mais se envergonha de seu cabelo, mais o usa como meio de afirmar sua identidade negra.
Subvertendo a dualidade que afirma o negro como feio, a afirmação da estética negra aponta que o negro também é belo, que seus traços são valiosos, que essa identidade merece ser exaltada, e não diminuida. Isso ajuda a colocar em xeque a lógica violenta de desumanização dos corpos negros. O cabelo não é somente sobre a estética negra, mas é também sobre a identidade de ser quem somos e passarmos a gostar disso. É o amor como um ato político antirracista. O amor por si próprio, pela nossa comunidade, traços comuns e ancestralidade. Assumir o cabelo faz parte do orgulho de ser uma pessoa negra. É o processo de tornar-se negro. Não somos mais negros a partir do olhar negativo dos outros, mas passamos a exercer nossa própria negritude como forma de libertação e resistência. É deixar de ser negro em si, para ser negro para si.
É importante apontar que a tomada de consciência subjetiva e o fortalecimento desta, normalmente desenvolve um avanço na consciência social e organizativa. Foi assim ao longo dos anos, na história da luta negra em diáspora, e também no continente africano. No Brasil, vemos um crescimento da estética negra nos últimos anos, e, ao mesmo tempo, um ascenso da luta racial, com novos intelectuais, pensadores, surgimento de coletivos, debates e conflitos em torno do tema (inclusive entre pensadores negros de diferentes vertentes). Assim, é de extremo valor que fiquemos atentos às novas movimentações estéticas que envolvem a juventude negra.
O BBB e a branquitude
O caso de João no Big Brother Brasil, maior programa de televisão brasileiro, chamou atenção, tomou debate nas redes sociais, dividiu pessoas famosas e foi discutido em outros programas televisivos.
Para recordar o fato, João Luiz Pedrosa, um professor, teve seu cabelo, um volumoso e belo black power, comparado a um peruca de homem das cavernas por outros participantes. Na segunda, ao vivo, João, em um ato de coragem, expôs e criticou os comentários de Rodolffo, cantor sertanejo, sobre seu cabelo. Visivelmente emocionado e segurando para não cair aos prantos, João ainda ouviu Rodolffo repetir as ofensas ao seu cabelo.
Os comentários de Rodolffo foram um ato de desumanização das características negras de João, um ato violência que atingiu todos negros que tem cabelo semelhante ao participante do programa de televisão. Não se trata de achar bonito ou feio, mas de diminuir e o tornar menos humano por isso.
A violência racista cometida por Rodolffo é naturalizada. Não é vista como violência, mas sim como natural. Ela é parte do controle social e é vista como parte do nosso convívio. O apresentador do programa, Tiago Leifert, abordou o tema reduzindo-o a apenas mais um desentendimento ou conflito comum entre os participantes. A aceitação do racismo como parte do convívio social faz com que a violência de Rodolffo seja, para muitos, semelhante a uma discussão por conta do arroz, por exemplo. O racismo se torna recreativo, faz parte do entretenimento.
A violência de Rodolffo foi diminuída ao ser dita como piada, ou um comentário sem intenção. Isso acontece justamente por conta da naturalização do racismo, e assim se inicia um novo processo de violência. Aquele que comete o ato racista, se refugia na própria ignorância, alegando esta como um escudo, e, assim, é muitas vezes alvo de compaixão, pois supostamente sofre com julgamentos por conta de “uma piada” ou “um comentário” que “não foi maldoso”. A vítima da violência passa a ser observada, e tem sua reação ao ato julgada. Ela não pode se indignar nem reagir, pois, caso o faça, passa a ser vista como desequilibrada. Esse processo de inversão no discurso e na situação só é possível pelo pacto do narcisismo da branquitude. O foco da questão não se torna mais o ato de violência racial cometido, mas sim a própria pessoa branca que o comete.
Um dos privilégios da branquitude é o chamado processo de aprendizado. Pessoas brancas são vistas, em especial entre seus pares, como aqueles que têm direito ao erro, porém, não podem ser julgadas por esses erros, pois estão sempre em aprendizado.
Assim, surge uma outra violência com a pessoa negra vítima da atitude racista (seja ela consciente ou não). Aquele que a comete, e alega falta de consciência, pede para que a vítima tenha paciência e o ensine sobre raça e racismo. Esse processo faz com que a dor da pessoa negra, que é vítima, seja invisibilizada, e tida como algo menor. Se exige que a vítima tenha compaixão com quem a agrediu e atue como um educador. Porém, o que ocorre é, na verdade, uma série de justificativas da pessoa que cometeu a agressão racista para não ser vista como tal. A branquitude desloca o foco da questão para si, e assim mobiliza reações para ser acolhida por seus erros.
O pacto da branquitude funciona na preservação dos seus e crucificação e exposição de erros do outro. É um ato de conveniência e de auto silenciamento diante de atitudes racistas dos que as exercem.
Esse mesmo processo de silêncio ocorre quando não se define o ato de racismo como uma atitude racista. Após a fala de João, muitas personalidades brancas da política, da televisão, da música, declararam apoio a João. Porém, nenhuma dava o nome ao ato que machucou João como um ato racista. A palavra racismo parece que sumiu do dicionário por um instante.
Em nosso país pouco se fala sobre racismo, e, quando se fala, normalmente se faz de forma velada, ou de forma que não o confronte de forma direta. O que só reforça o tamanho da força e da coragem de João e o simbolismo de seu ato.
Como escreveu Audre Lorde, “Ainda temos muitos silêncios para quebrar”. Que a fala de João seja parte desse processo, de quebra do silêncio que ronda as violências cotidianas e a desumanização que acontecem por trás de comentários como de Rodolffo. Que a fala de João ajude a romper o silêncio da branquitude e seu pacto de conveniência.
Onde a violência e a desumanização é a norma, é preciso quebrar o silêncio do racismo que nos aprisiona e afirmar nossa negritude e estética em seus valores subversivos. Precisamos criar referências entre os nossos, buscar referências e sermos nós mesmos referência para os que virão. É preciso soltar nosso black, nossas tranças, nossos dreads, nossos estilos. Dizer em alto e bom som que o negro é força e que o negro é lindo.
Como disse Babu Santana: o black é a coroa e o pente a libertação.
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