Em Primeiro de abril de 1964, há 57 anos, o Brasil viveu novamente a experiência e horror de um golpe civil-militar, assim como já havia vivenciado em 1937, no ”Estado Novo”, como também em 1962 se tentou, por antecedência, uma intervenção militar, após a atabalhoada renúncia do ex-presidente Jânio Quadros.
Afora estes exemplos mais eloquentes, não faltaram tentativas de golpes e quarteladas na história política nacional e, ademais, em toda a América Latina, como parte de um mesmo processo histórico de intervencionismo militarista, reação das elites e ataques aos direitos democráticos.
Em suma, o presidente deposto sem o processo legal de impeachment, prisões, torturas, assassinatos, cassações, exílios, desaparecimentos forçados, demissão de grevistas, intervenções em universidades e sindicatos, rompimento total da ordem constitucional e legal vigente, concomitante a uma política econômica de contenção de salários e concentração de renda.
Todos esses fatores foram componentes incontestes do saldo do golpe de 64, posteriormente ainda mais radicalizado em 1968, o que nenhum negacionismo será capaz de apagar.
Registre-se, portanto, que a data do golpe, ao contrário da versão do “31 de março”, dos militares, foi no dia primeiro de abril, “dia da mentira”, quando os militares de fato adentraram em marcha com este propósito no Distrito Federal, para depor o governo legitimamente e legalmente vigente, impondo-se militarmente, de norte ao sul do país.
Assim, não houve apenas um golpe – apesar do revisionismo de má fé negacionista – mas sobretudo uma típica ditadura, cujas formas de atuação, organização e ação política em nada diferem das demais ditaduras mundo afora, a não ser na formatação jurídica e a retórica, aqui no Brasil maquiada pelo funcionamento fictício e manietado do Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras municipais, mediante atos institucionais preparados por juristas pró-golpe e cassações, sendo que, na essência, o poder usurpado em 64 foi golpista, inconstitucional, ilegal e ilegítimo, com origem nos quartéis e principalmente nas empresas que o financiou.
E também não se diga que foi inevitável, pois, embora não seja a intenção deste texto fazer o balanço das responsabilidades, caso o presidente João Goulart não tivesse recuado na resistência à investida golpista, seguindo firme no Palácio do Planalto nos primeiros dias de abril (como fez Salvador Allende em 1973), creio que seria possível reunir um amplo movimento popular e democrático em torno da defesa do Estado Democrático e do presidente eleito, com prováveis cisões nas forças armadas (foram mais de 7000 militares cassados, punidos). Isso certamente levaria o país a um grande conflito social, mas, talvez, diferente do desfecho do Chile, onde havia chances mais concretas de derrotar os militares, devido também à conjuntura internacional.
Caso tivesse se concretizado, a luta frontal e aberta contra os generais golpistas teria se colocado nas ruas, com apoios importantes nas associações de praças da Marinha e Aeronáutica, operários navais, CGT, ligas camponesas, setores progressistas da igreja católica, estudantes, portuários, marítimos, aeroviários, intelectualidade, além do fato de que diversos setores do próprio oficialato se situavam no campo legalista.
É possível concluir, portanto, que o cenário e desfecho poderia ser outro, caso houvesse uma resistência consistente e de unidade de ação (apesar dos heroicos esforços havido neste sentido), evitando assim tanto sofrimento durante os anos de ditadura, até 1985.
O fato mais relevante, contudo, é que desde 2019, estamos rememorando o golpe militar sob um governo que, além da notória irresponsabilidade quanto à disseminação do Covid-19, é também defensor do golpe, fato que acrescenta a esta importante data um sentido de protesto ainda maior, pois temos que repudiar tanto o passado como o presente, em que temos na presidência do Brasil um capitão reformado defensor dos golpistas de 64, rodeado por ministros-generais e cerca de 6.000 militares de diversas patentes, encarapitados em cargos civis no governo federal, tornando a atual gestão federal o governo eleito mais militarizado da história brasileira.
Na perspectiva de trazer a luta pela memória, verdade e justiça para os dias atuais, se impõe a urgência de um efetivo programa de justiça de transição, tendo em vista a real ameaça de retorno de uma ditadura. Nesse sentido, se colocam, ao meu ver, os seguintes desafios:
- Lutar pela revisão da decisão do STF ( ADPF n. 153) que estendeu erroneamente a anistia política de 1979 aos agentes do Estado que desrespeitaram os direitos humanos durante a ditadura, a fim de se processar e punir finalmente torturadores e demais criminosos do regime militar de 64;2)
- Afastar os militares e defensores da Ditadura da direção da Comissão Nacional de Anistia e da Comissão de Mortos e Desaparecidos políticos, restabelecendo o funcionamento destes órgãos conforme as respectivas diretrizes das leis que lhes deram origem, enquanto Comissões de Estado e não de Governo;
- Assegurar o cumprimento do Art. 8, III, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988 que assegurou a anistia política, conforme sua regulamentação pela Lei 10. 559/2002;
- Acatamento e cumprimento pelo Estado brasileiro de todas as recomendações da Comissão Nacional da Verdade instituída em 2012 e criada pela lei 12.528/2011, dentre estas, a necessidade de democratização das estruturas, currículos, formação profissional das Forças Armadas, polícias militares e forças de segurança de modo geral.
- Investigação e apuração do financiamento de empresas nacionais e estrangeiras ao golpe de 1964, assim como a repressão durante toda a ditadura, conforme também recomendado pela Comissão Nacional da Verdade, através de grupo de trabalho específico criado em 2013 e voltado para a repressão aos trabalhadores.
Caminhando já para o final deste breve texto, vejo, apesar dos pesares, com muita esperança a resistência que vem sendo exercida, por vezes anonimamente, por homens e mulheres neste campo da memória da ditadura, na medida em que cada vez mais pessoas e entidades civis, instituições como universidades e centros de memória, assim como membros do ministério público e do próprio judiciário, estão percebendo a inter-relação profunda entre passado e presente quando se enfrenta o autoritarismo do Governo Bolsonaro. Por este motivo, estamos testemunhando nessa data, enquanto os militares acintosamente insistem em “celebrar” o golpe de 64, uma enorme quantidade de eventos, lives, protestos, reflexões diversas sobre o golpe militar, bem como há uma profusão de Plenárias estaduais e fóruns nacionais, congregando entidades de anistia e memória, como a Plenária Paulista e a Plenária Rio, ambas ligadas à representação de entidades voltadas para este tema, incluindo sindicatos e centrais de trabalhadores.
Certamente há uma longa jornada pela frente até nos vermos livres deste governo que tanto ameaça a democracia, exatamente por seu compromisso com o golpe militar que celebra. Mas felizmente já é possível ver no horizonte sinais de superação dessa fase tão difícil. Para tanto, a luta por memória, verdade e justiça assume, na atualidade, um papel também de unificar todos aqueles que, para além das esquerdas, entendem a necessidade de preservar as liberdades democráticas. Uma vez que o autoritarismo, além de acarretar prejuízos nos campos da educação, saúde, meio-ambiente, cultura, religião, direitos trabalhistas e previdenciários, já é responsável, no Brasil, por mais de 300 mil mortes por motivo de sua inépcia e incúria nesta pandemia.
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