A lição dos exemplos instrui muito mais que a dos preceitos
Sabedoria popular portuguesa
- Roberto Robaina escreveu um texto curioso sobre a tática que o PSOL deve abraçar diante das eleições de 2022. Apresentado como um documento coletivo do MES provocou perplexidade (1). Já tínhamos sido surpreendidos pelo apoio da corrente à candidatura de Baleia Rossi no primeiro turno das eleições para a Presidência da Câmara, mas era uma questão de tática parlamentar. O artigo aborda vários temas, mas creio que não estou sendo injusto que a ideia forte ou eixo principal é a defesa de que o PSOL deve lutar por uma Frente Eleitoral de centro-esquerda para derrotar Bolsonaro, incluindo Ciro Gomes. (2) Não sendo possível essa Frente, o PSOL deve apresentar candidatura própria no primeiro turno em 2022, como fez desde que foi fundado: Heloísa Helena em 2006, Plínio de Arruda Sampaio em 2010, Luciana Genro em 2014 e Guilherme Boulos em 2018. A formulação ou Frente de centro-esquerda encabeçada por Ciro Gomes, ou candidatura própria significa que estaria excluída a possibilidade do PSOL integrar uma Frente de Esquerda liderada pelo PT, encabeçada por Lula. Colocar o dilema nestes termos nos parece um erro. Potencialmente, um erro de estratégia muito grave.
- Um ano e meio nos separam das eleições de 2022. Em nossa opinião há uma luta por ser travada. Uma luta por um programa e por uma Frente de Esquerda com um programa de medidas anticapitalistas. Ainda é muito cedo para definir a tática. Talvez o PSOL se veja em uma situação em que tenha de lançar uma candidatura própria. Depende de qual será a evolução do PT. Se o PT se inclinar por uma tática semelhante a de 2002, com algo próximo a uma nova carta palocciana aos brasileiros, por exemplo. Mas discordamos, frontalmente, que o PSOL deve chamar a uma frente de centro-esquerda. Ninguém duvida que ela só seria possível se o PT aceitasse Ciro Gomes como candidato. Essa orientação deixaria o PSOL como aliado de Ciro Gomes contra o PT. Há quem defenda variações dessa linha na esquerda. O PCdoB defende. Tem muita gente no PT, também. Até no PSOL . Mas é uma surpresa que seja abraçada pelo MES. Há, portanto, pelo menos dois problemas na formulação do que Robaina entende como as lições de Lenin: um teórico e outro de estratégia.
- Mas prefiro começar esta resposta ao texto destacando os acordos com Robaina, um procedimento inspirado nas lições de Leon Trotsky sobre as relações entre revolucionários. Eles são pelo menos três. Cada um deles tem importância estratégica: (a) a defesa de que, seja qual for a tática eleitoral, é decisivo a construção do PSOL como projeto anticapitalista;(3) (b) a defesa de uma perspectiva revolucionária;(4) (c) por último, mas não menos importante, a defesa de que o PSOL não deve se integrar em um governo de colaboração de classes.(5) A corrente de Roberto Robaina é uma das mais dinâmicas na esquerda brasileira e pode se orgulhar de, pelo menos, três grandes acertos políticos táticos nos últimos trinta anos. Acertou ao decidir voltar para o PT em 1992, depois de romper com a Convergência Socialista. Acertou ao decidir manter posição firme em 2003 diante do governo Lula, e iniciar a construção do PSOL. E acertou ao defender o posicionamento do PSOL como oposição de esquerda aos governos de coalizão liderados pelo PT. E, com humildade, poderia lembrar dos muitos erros meus nestes trinta anos, mas fica para outro texto. Portanto, a ideia aqui é que sejamos pacientes uns com os outros.
- Um quarto acordo seria a defesa de que o PSOL não deve se aliar, eleitoralmente, aos partidos burgueses, porque são diferentes representantes dos interesses capitalistas, como está escrito no texto com todas as letras. (6) Mas parece difícil saber se temos mesmo este acordo estratégico. Porque um dos argumentos mais desenvolvidos do documento é a defesa de que a luta pela Frente única para derrotar Bolsonaro nas eleições inclui o PDT e Ciro Gomes. Essa orientação é incompatível com a formulação contra a aliança eleitoral com partidos burgueses. A menos que não se considere Ciro Gomes como uma candidatura burguesa. A hipótese é que ele seria uma representação da pequena burguesia? Estamos de acordo que são três os campos de classe em luta na sociedade contemporânea, não somente dois. A luta de classes não se resume a um confronto entre capital e trabalho. Portanto, a pequena burguesia também se expressa, politicamente. Mas Ciro Gomes é um porta-voz político profissional de longa trajetória da classe dominante. Seu compromisso com a defesa dos interesses capitalistas é inequívoco. Seu charme é o sotaque desenvolvimentista. Mas o jogo de sedução que veio construindo com a classe média não devia iludir, ofuscar, menos ainda deslumbrar. Ciro Gomes quer disputar um espaço na oposição contra a esquerda. Por isso, a linha eleitoral do PDT em 2020 foi consolidar a relação de bloco com o PSB, Cidadania, PV e ampliar alianças com a direita liberal.
- Isto posto, e indo ao ponto, o argumento teórico para justificar a candidatura própria como uma estratégia de inspiração leninista é uma acrobacia insustentável. Um duplo twist carpado. A rigor, nem sequer Roberto Robaina a leva muito a sério, porque afinal admite a hipótese do PSOL apoiar uma candidatura de Frente, só que mais ampla do que com o PT. Por que uma tática eleitoral deveria ser uma estratégia rígida, inviolável, permanente? E de onde surgiu esta leitura que teria sido uma ideia de Lenin? Esta elaboração é feita como uma polêmica com a Resistência. Está implícita, portanto, uma suspeita de que defenderemos uma coligação com o PT, desde o primeiro turno em 2022. É uma surpresa porque a Resistência ainda não tem uma opinião sobre a tática eleitoral de 2022. Não é um bom método.
- Mas é verdade que, aqueles que estamos na Resistência e viemos da ruptura com o PSTU, defendemos interna e lealmente, a coligação com o PSOL. É, também, curioso porque afirma que, no debate interno ao PSTU, cinco anos atrás, em sua opinião, a maioria tinha razão contra a minoria ao defender a candidatura própria. Robaina decidiu fazer uma graça na forma de malícia polêmica. (7) Conclui que aqueles que rompermos com o PSTU defendíamos uma posição oportunista, e até sem princípios, o que é uma crítica severa, mas injusta. (8) O que é de princípios em tática eleitoral, em uma interpretação menos instrumental da tradição leninista, é a defesa da independência política de classe. A apresentação dos revolucionários com candidatura própria depende da situação política, e das relações de forças entre as diferentes correntes na esquerda. Não é incomum que prevaleça no ativismo a noção perigosa que debates teóricos sejam diletantismo. Não são. Consciente ou não, toda escolha tática remete a premissas teóricas, escolhas estratégicas e definições programáticas. Pequenas tergiversações teóricas facilitam erros políticos trágicos.
- Temos diferenças em três planos distintos. O debate teórico chave é sobre a natureza e o papel do PT. A questão estratégica incontornável é a interpretação do que aconteceu no Brasil entre 2013 e 2015/16 e desde então, portanto, o lugar da Frente Única de classe para derrotar Bolsonaro. O menor dos problemas é a definição da tática eleitoral em 2022. Estamos entre os que defendem que o PSOL deve se posicionar, ao lado do PT e PCdoB, dentro de uma frente única de classe na luta por um governo de esquerda com um programa anticapitalista. Lutamos por esta perspectiva, e depois veremos.
- Segundo Robaina, o PT teria mudado sua natureza de classe, e a experiência das massas com o PT já foi feita. (9) Conclui que não há diferença de qualidade entre uma candidatura do PT e a de Ciro Gomes.(10) São duas questões diferentes. O PT permanece ainda a maior representação política da classe trabalhadora organizada. Não tem mais a autoridade do passado, evidentemente, em especial entre a geração mais jovem. A régua teórica para a caracterização de classe de um partido considera muitas variáveis. Compartilhamos esta tradição metodológica. Considerar que os treze anos de governos de colaboração de classes são suficientes para definir o PT como um partido burguês é um exagero. Um excesso ainda mais perturbador quando vem associado à ideia de que Ciro Gomes não seria um candidato burguês. O Brasil é um país imenso, e pode ser que, desde uma perspectiva forjada em Porto Alegre, este enviezamento pareça razoável. Mas não é.
- Temos uma interpretação distinta do que aconteceu no Brasil desde 2013. Estas diferenças explicam porque estamos separados dentro do PSOL. Compartilhamos a opinião de que as mobilizações de massas que explodiram nas jornadas de junho eram progressivas e estavam em disputa, mas consideramos que essa onda foi derrotada ainda em 2014. Nossa análise é que a onda de mobilizações de 2015/16, incendiadas pelas denúncias da operação Lavajato era reacionária e, não só não deveria alimentar ilusões, como precisava ser combatida. Em consequência, nos posicionamos, frontalmente, contra o golpe institucional do impeachment. A dinâmica de evolução da situação desde a derrubada de Dilma Rousseff foi tão ruim que culminou com a eleição de um neofascista como Bolsonaro. Nossa opinião é que ocorreu uma inversão qualitativa na relação social de forças. Não sofremos uma derrota histórica. Mas atravessamos há anos uma situação reacionária. Dentro dela alternaram-se diversas conjunturas, flutuações nos momentos políticos, umas melhores, outras piores. Nenhuma foi ainda qualitativa. Mas valorizamos o debate com o MES. Não ficamos cozinhando em fogo brando desentendimentos sobre o que aconteceu há sete anos, indefinidamente. A questão estratégica que, no entanto, permanece é saber se as condições defensivas de resistência impõem a importância da Frente Única de classe. Ela é o melhor instrumento para derrotar Bolsonaro. Essa é a principal lição que a experiência histórica de luta contra a extrema-direita, nos últimos cem anos, nos legou. Ninguém a sintetizou melhor que Leon Trotsky.
- A liberdade de Lula introduziu uma variável nova na discussão da tática do PSOL. Nada é mais importante que derrotar Bolsonaro nas ruas e nas urnas. Construir essas condições passa por essa Frente Única das organizações e movimentos sociais populares, de juventude, feministas, negros e ambientais, mas também do PSOL com o PT e PCdoB. A luta pela frente Única de esquerda deve responder à questão que mais interessa às massas, o poder. Quem deve governar? O centro da tática da Frente Única é o desafio que os revolucionários dirigem às lideranças reformistas: rompam com a burguesia, assumam um programa anticapitalista! Essa é a maior lição que herdamos de Lênin. Esse foi o segredo da política bolchevique entre fevereiro e outubro. Lenin e Trotsky defendiam a agitação de: todo o poder aos sovietes! Quem dirigia os sovietes? As lideranças moderadas mencheviques e esseristas. A luta no Brasil pela Frente Única de classe é o terreno da luta por um governo de esquerda. Um governo de esquerda com um programa anticapitalista. O pior que poderia acontecer no Brasil seria a ausência da esquerda no segundo turno. Um giro da liderança da oposição para o centro, por exemplo, com Ciro Gomes, ameaça nosso futuro por muito tempo. A liberdade de Lula fortalece essa perspectiva estratégica, e por isso deve ser valorizada. O PSOL não pode ser um obstáculo para que os reformistas cheguem ao poder. Se o deve fazer com uma candidatura própria, ou por dentro de uma coligação desde o primeiro turno é uma decisão que pode esperar. Um saudável empirismo leninista.
NOTAS
[1] ROBAINA, Roberto. As lições de Lenin e as eleições de 2022
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[2] Idem. “Duas possibilidades de orientação política: 1) A defesa de candidatura própria do PSOL no primeiro turno e a declaração antecipada de apoio a quem for contra Bolsonaro no segundo turno, preferencialmente alguma das forças da oposição de esquerda ou centro esquerda. 2) A defesa da mais ampla unidade de toda a oposição de esquerda e de centro esquerda a Bolsonaro já no primeiro turno”.
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[3] Idem. “O PSOL seguirá o caminho do PT? Como repetição, neste caso seria como farsa. Este seria o caso se e quando líderes públicos do PSOL vestirem os mesmos figurinos dos líderes das grandes aparições petistas passadas, imitando suas vozes e, sobretudo, repetindo seu programa, suas elaborações e até seus métodos. Para lutar por um projeto original, diferente, capaz de cumprir sua finalidade histórica de ser um partido anticapitalista, de defesa da independência política dos trabalhadores, dos explorados dos oprimidos, é preciso que o PSOL tenha clareza sobre os princípios, o programa, a natureza do Parlamento e do Estado, o papel das eleições e da política de alianças”.
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[4] Idem. “O PSOL surgiu (…) ligado, originalmente, às forças trotskistas e da esquerda que se reivindica revolucionária, foi sob esta perspectiva que foi fundado. Nossa posição e estratégia (…) é a própria destruição do Estado burguês e a construção de uma nova institucionalidade, um estado de novo tipo. Trata-se de uma posição leninista básica, na verdade, uma posição marxista revolucionária.”.
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[5] Idem. “Chamar o voto não pode significar participar de um eventual governo por eles conformados. Isso porque é preciso ser consciente de que o programa tanto do PT quanto de Ciro tem uma natureza geral de desenvolvimentismo, mas é burguês pela natureza de classe”.
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[6] Idem. O PSOL deve rejeitar as alianças com os partidos burgueses.
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Consulta em 06/03/2021
[7] Idem. “É curioso que a ala do PSTU que rompeu e aderiu ao PSOL sustentou uma posição globalmente equivocada enquanto a ala majoritária estava certa na essência do debate em seu aspecto teórico.
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Consulta em 06/03/2021
[8] Idem. O fato é que a posição do dirigente que depois encabeçou a ruptura do PSTU e aderiu ao PSOL sustentava uma política eleitoral sem princípios.
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Consulta em 06/03/2021
[9] Idem: “O PT foi o partido hegemônico da esquerda brasileira, a representação política principal da classe trabalhadora (…) Desde que assumiu o governo federal, em 2003, entretanto, o PT mudou sua natureza (…)Originado como expressão de um projeto independente da classe trabalhadora, o PT nunca assumiu uma estratégia revolucionária.”
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Consulta em 06/03/2021
[10] Idem: “A ideia de que o PT precisa governar para que as massas façam a experiência com estas direções é ridícula. Tal experiência já foi feita. A decadência do PT se explica por isso”. Ciro reivindica abertamente o desenvolvimentismo burguês. Sua vantagem em relação ao PT é que seu discurso tem mais contundência em muitos pontos, sobretudo na agenda econômica e na ofensiva simbólica contra Bolsonaro (sobretudo comparado a Haddad), e como não foi presidente nem seu partido teve a presidência da república, pode despertar esperanças que a ideia do novo carrega, o que não pode mais ser o caso do PT. Se aliar com o PT contra Ciro seria fortalecer a liderança de Lula como chefe da unidade, entregando ao ex-presidente um lugar que não mais lhe compete ter(…)A hipótese de que se unam no primeiro turno pode ser defendida por nós. E com esta defesa pressionamos pela unidade. Escolhendo um lado estaremos fortalecendo a divisão e, no caso da divisão se confirmar, não fará sentido o PSOL deixar de apresentar também seu próprio nome e estabelecer o compromisso de apoio mútuo no segundo turno.
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