Um dos pontos mais importantes para o nascimento do pensamento capitalista e de toda a base teórico-filosófica posterior é a reificação da natureza. Se num momento inicial das comunidades cristãs primitivas a natureza era vista como o lar dado pela deidade, e, portanto, merecedor de cuidado e de zelo, a evolução do pensamento cristão com todas as suas derivações proporcionou uma nova ideia: a natureza é um presente da deidade para o homem, o qual pode e deve desfrutá-la até o fim. Durante o progresso do ambiente urbano no medievo europeu, as comunidades primitivas recém-cristianizadas, ainda com suas relações místicas com a natureza, foram sendo tolhidas e direcionadas para o ideário comportamental do cristianismo em ascensão. Da mesma época, a criação de um medo de fundo a respeito do poder mágico e diabólico da natureza, especialmente direcionados a comunidades ritualísticas primitivas, foi utilizado como mote para a criação de um ambiente de perseguição e de alinhamento teológico, culminando com a Inquisição e sua caçada a bruxas e, posterior, dissidentes do ideário teológico.
Esse panorama foi mantido em operação até o surgimento e do ganho de poder de uma nova classe: a burguesia. A teologia cristã da época não tinha todas as liberdades e os desprendimentos necessários para o adequado funcionamento do sistema mercantil nascituro. Nesse sentido, o sistema precisava de uma nova base teórico-filosófica para sua expansão e sua adequação aos novos ditames e necessidades da burguesia. Max Weber relaciona essa mudança de pensamento oriundo de um cristianismo católico à sua visão ainda permeado com misticismo e com limitações para expansão do capitalismo florescente, como um dos pontos mais importantes para a expansão do capitalismo nas potências europeias em transformação protestante. A expansão foi conseguida e ampliada com a Revolução Industrial e a progressiva expansão do capitalismo, com sua guinada para uma fase de grande desgaste humano, devastação ambiental e expansão urbana.
As fases posteriores da expansão econômica e suas crises cíclicas, tanto financeiras quanto bélicas, proporcionaram um ambiente europeu que necessitou muitas vezes ser repensando e readequado às necessidades da estabilidade do sistema capitalista, já consolidado e enraizado na população. A dicotomia entre sistemas de livre mercado e de economia planificada durante os anos pós-segunda guerra foi atenuada na Europa capitalista com políticas do que que hoje chamamos Welfare state. Os anos seguintes, especialmente após os anos 50, debatidos por Lyotard em seus estudos de pós-modernidade, são caracterizados por um processo contínuo de atomização do indivíduo e de seu direcionamento para o processo de consumo com a dissolução de muitos direitos até então solidificados. Bauman, aprimorando as ideias de Lyotard, observa outros aspectos dessa pós-modernidade guiada pelo e para o capitalismo, entendendo, em sua metáfora da liquidez dos nossos tempos, que o capitalismo conseguiu se capilarizar em muitos pontos de nossa vida pessoal, de nossa produção artística, de nossos medos e de nossos anseios, de nosso desligamento com a temporalidade dos fatos e da historicidade das comunidades humanas, e, por conseguinte, da vida na terra.
Nessa prisão do que se vive, o presente se tornou ininterrupto e contínuo. Somos, quase todos, impossibilitados de perceber o mundo a devir, presos nas necessidades fetichistas do consumo quase sempre imediatistas. Ao mesmo tempo, o sistema de consumo vai se espalhando por outras partes até então distantes dos centros econômicos, degradando mais e mais o ambiente, urbanizando – aqui com todos os pontos descritos por Bauman do que é o ser urbano – florestas e matas, com o intuito ou de extrair delas algo para produção de bens de consumo ou para assentar consumidores produtificados.
Essa expansão caótica e desordenada acontece em nível global, interferindo em todos os sistemas internos de homeostasia planetária, e quebrando, através da ação antrópica, as cadeias biológicas. Desse ponto de vista, precisamos notar uma importante quebra e alteração no ciclo natural da vida na Terra, alterando o funcionamento dos processos evolutivos.
Inicialmente descrita como um processo para explicar a diversidade de formas vivas no planeta, a Evolução hoje pode ser entendida como a principal fonte da existência da vida. Desde os primórdios, quando toda vida não passava de um material genético com capacidade replicadora segregado do ambiente externo por uma camada de derivados fosfolipídicos, a vida é guiada pelo intuito único da preservação de informação através dos genes. Há cerca de 3.5 bilhões de anos, a epopeia da vida na terra se iniciou de modo sublime e misterioso. De lá para cá muitos seres passaram por esse nosso mundo, de diferentes formas e de diferentes tamanhos, mas as informações genéticas contidas nos genes variaram muito pouco – do ponto de vista comparativo – em relação a quantidade de formas vivas que já pisaram ou nadaram ou voaram pela Terra. Para efeito comparativo e ilustrativo, o ser vivo com o maior genoma já descrito é o Protopterus aethiopicus, com cerca de 130 bilhões de genes. Desse total de genes, aproximadamente 80% é de genes que não codificam informação (íntrons), leia-se proteínas, de modo que a espécie citada deve ter 26 bilhões de genes produtores de proteína (éxons). Por outro lado, há estimativas que indicam mais de 1 trilhão de espécies entre seres micro e macroscópicos. Com base no exposto, percebe-se que, a despeito da intensa divergência das formas de vida, apenas alguns genes se repetem e se perpetuam através do processo base da Evolução, a Seleção Natural.
Através de uma base biológica e evolucionista, podemos entender a Seleção Natural como uma condição que se desenvolveu na Terra que consegue proporcionar a manutenção de informação genética circulante. Esse princípio, muitas vezes, parece ser contrário à Segunda Lei da Termodinâmica, especialmente pelo não dissipação da energia que ocorre em sistemas vivos. Schrödinger, refletindo sobre o assunto, criou um princípio de entropia negativa para explicar esse processo; no entanto, hoje podemos dizer que não há conflito entre a Evolução e a Segunda Lei, tendo em vista que, diferentemente do que versa a última, o ambiente vivo é um ambiente aberto, onde pode haver troca de energia, de matéria com o ambiente externo – há aí algo biológico-termodinâmica do que muitos chamam de panspermia. Nesse sentido, a degradação proporcionada pela ação antrópica no planeta, a tendência de a Seleção Natural direcionar para a não dissipação de energia e a permanência de informação gênica circulante dentro do ambiente terreno proporcionam um antagonismo patente.
O entendimento do planeta como uma estrutura viva, mediada pela estabilidade dos ecossistemas e da circulação de genes através da biodiversidade são a base da Hipótese Gaia, a qual, formulada por Lovelock e Margulis na década de 70, defende a ideia de que o planeta vive em um equilíbrio dinâmico tal, que, à medida que há uma ameaça para essa homeostasia, os eventos desencadeados por esse desiquilíbrio conseguirão sanar o agente disruptivo.
O capitalismo parasitário que nos transmutou em um aglomerado de indivíduos atomizados, distanciados cada vez mais da ideia de uma comunidade humana única, que degrada e destrói a vida não humana na terra, através do ímpeto de acumulação infinita de lucros num mundo de recursos finito, é a Lança de Longuino a perfurar o equilíbrio biológico-termodinâmico do planeta. Nesse sentido, a reificação das outras formas de vida através desse especismo predatório e dilapidador é a força propulsora para a diminuição do movimento genômico, com a uniformização de poucas espécies – para não dizer apenas a humanização do material genético circulante –, e, consequente, diminuição da variabilidade genética. Como Dawkins debate em seu livro, o gene é extremamente autopreservador e egoísta, de modo que, num sentido evolucionista, é necessária uma variedade de genes circulantes para que haja uma menor vulnerabilidade conservativa.
Lutamos há mais de um ano contra uma pandemia cujo agente etiológico é o SARS-CoV2 mas que, indubitavelmente, tem na atomização da coletividade humana a principal causa. A nossa incapacidade de frear a disseminação do vírus e de diminuir a chance de os genes deste serem selecionados adaptativamente ao nosso mundo urbano tem se tornado um desafio muito maior do que o desenvolvimento de vacinas para o controle biológico do patógeno.
Traiçoeiramente, o mesmo capitalismo que nos separou para vivermos uma vida livre segundo o Mercado, agora nos juntou no carpir da morte.
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