Segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021. Ninguém sabe o que vai acontecer neste dia em Argel. Uma chuva fina abate-se sobre os engarrafamentos típicos de um dia de trabalho normal. É ainda cedo e nada leva a crer que a manifestação convocada para assinalar o segundo aniversário da grande mobilização popular que abalou a Argélia durante quase todo o ano de 2019 e o início de 2020 venha realmente a acontecer. No centro da capital argelina, as ruas estão ocupadas por um enorme dispositivo: a polícia de choque, com os seus escudos e bastões, formada e à espera. As grandes carrinhas blindadas, de vidros protegidos por redes de aço, estacionadas lado a lado, parecem formar uma barreira inultrapassável.
O silêncio é quebrado, subitamente, por um canto ritmado, ainda longínquo. Vem do lado Oeste, de onde costumam afluir grandes massas humanas de bairros como Bab El Oued. Agora já se compreendem os gritos: “Não viemos aqui para festejar, mas sim para vos mandar embora!” E também: “Estado civil, não militar!”
De um momento para o outro, o centro de Argel já está cheio de manifestantes. De onde vêm? É a “magia do Hirak”, para usar as palavras do jornalista Makhlouf Mehenni, do site informativo TSA. “Quando, perto do meio-dia, a rua fica negra de gente, as últimas dúvidas dissipam-se. A marcha vai mesmo acontecer.”
De volta, e em força
Parece incrível, mas é verdade: o Hirak, o movimento popular iniciado há dois anos, e que parecia ter sido engolido pela pandemia de Covid-19, regressou em força. Em apenas uma semana, três manifestações tomaram as ruas de Argel, a capital, e das principais cidades da Argélia. A primeira, no dia 22 de fevereiro, o dia do aniversário; a segunda, dos estudantes universitários, logo na terça; e a terceira no dia 26, retomando o hábito das manifestações às sextas-feiras.
Voltemos, então, atrás, ao dia 22 de fevereiro de 2019, quando uma enorme mobilização popular ocorreu no centro de Argel. Era difícil de acreditar. A Argélia ficara indiferente às grandes mobilizações que compuseram a Primavera Árabe. As manifestações em Argel estavam proibidas. Mas o povo sentiu-se insultado ao tomar conhecimento de que o então presidente Abdelaziz Bouteflika se candidatava às eleições presidenciais, preparando-se para um quinto mandato. Como era possível que aquele ancião, que fora vítima de um AVC e que desde então não pronunciara em público sequer uma frase, estivesse ainda na Presidência do país e, pior, que se candidatasse mais uma vez?
Esta indignação detonou a grande contestação. Desde esse dia, chovesse ou fizesse sol, fosse Verão ou Inverno, todas as sextas-feiras os argelinos tomaram as ruas, em clima de festa, num movimento pacífico mas pujante, para pedir que não houvesse o quinto mandato e, conseguido esse objetivo, para exigir o fim do regime autoritário que governa o país desde a independência, sob a égide da Frente de Libertação Nacional (FLN). Foram 56 sextas-feiras de manifestações, sem interrupção.
O efeito Covid
Até que, em março de 2020, diante da pandemia de Covid-19, as vozes mais reconhecidas do movimento defenderam a suspensão provisória das manifestações diante da crise sanitária. “O Hirak é uma ideia e uma ideia não morre. Mas os seres que perdemos não regressarão nunca”, alertavam professores de medicina e profissionais de saúde, num apelo divulgado nessa altura defendendo a suspensão dos protestos para evitar uma explosão do contágio.
Depois dessa suspensão, que durou quase um ano, o movimento parecia ter sido derrotado. O governo do presidente Abdelmadjid Tebboune – eleito em dezembro de 2019 num processo boicotado pela oposição e ferido por inúmeras denúncias de fraude – lançou uma vaga repressiva contra os ativistas do movimento, ao mesmo tempo que promovia um simulacro de mudança de regime.
Dezenas de ativistas e jornalistas foram presos, processados e condenados a penas de prisão. A Amnistia Internacional denunciou que no momento em que “todos os olhares, a nível nacional e internacional, escrutinam a gestão da pandemia de Covid-19, as autoridades argelinas dedicam o seu tempo a acelerar os processos contra militantes, jornalistas e partidários do movimento Hirak.”
O governo mandou também bloquear sites informativos como Interlignes ou Radio M, afirmando que se tratava de meios informativos “estrangeiros” dedicados a atacar as instituições argelinas.
No dia 1 de novembro, realizou-se um referendo para aprovar ou não uma nova Constituição redigida por uma “Comissão de Especialistas”. Esta comissão foi alvo de muitas críticas e dúvidas e viu-se enfraquecida por demissões como a de Fatsah Ouguergouz, ex-juiz do Tribunal Africano dos Direitos Humanos, por considerar que o anteprojeto se inscrevia “no essencial, na continuidade da Constituição atual.”
Realizado o referendo, o anteprojeto foi aprovado, mas apenas 23% dos eleitores foram às urnas. Destes, ainda houve 11% de votos brancos e nulos e 33% de votos contra. Assim, a reforma da Constituição foi aprovada por pouco mais de 3,3 milhões de argelinos, de um total de 24,4 milhões de eleitores inscritos.
Teria a mobilização popular condições para ser retomada? A situação sanitária da Argélia poderia permitir que se realizassem novas manifestações?
Até ao dia 28 de fevereiro, a pandemia de Covid-19 na Argélia somava 113.092 casos confirmados de infeção e 2.983 óbitos. Num país de 44 milhões de habitantes, estes números configuram uma incidência relativamente suave da doença. A Argélia está em 128º lugar por número de casos no mundo e 94º lugar em número de mortes por cem mil habitantes. No continente africano, a Argélia é o 8º país em número de casos e o 17º em número de mortes por cem mil habitantes.
Quando o movimento popular foi suspenso, estava no início a primeira vaga. Das três vagas claramente distinguíveis, a terceira foi a pior, com picos de pouco mais de mil casos diários em novembro de 2020, mas com um número de óbitos abaixo de abril de 2019. No dia 22 de fevereiro, quando o Hirak renasceu, foram registados 173 novos casos e 3 mortes.
Um acontecimento inédito
O reinício da mobilização popular, quase um ano depois de ter sido suspensa pelos próprios organizadores é, para a politóloga Louisa Driss Aït Hamadouche, ouvida pelo site TSA, um facto inédito. “Não existe, que eu saiba, uma situação similar em que um levantamento popular começa, dura durante mais de um ano, decide interromper por uma razão objetiva e decide retomar as suas manifestações um ano mais tarde”.
Para a politóloga, este regresso significa duas coisas: “maturidade e determinação. O Hirak é dotado de uma maturidade que lhe permite fixar as prioridades (a saúde pública está à frente das reivindicações políticas); e está muito determinado.”
E não há dúvidas de que o movimento regressou mantendo intacta a sua visão de futuro para a Argélia: uma mudança radical que afaste do poder os que lá estão e promova uma transição realmente democrática. As palavras de ordem gritadas nas manifestações enviam uma mensagem clara ao presidente Abdelmadjid Tebboune, que, aliás, o movimento considera ilegítimo. O seu “roteiro” para uma mudança de regime não convenceu ninguém, o regime continua intacto.
Mais repressivo que Bouteflika
Na verdade, como explica Hakim Addad, dirigente da Associação Ação Juventude, entrevistado pelo Middle East Report Online, em certa medida, o governo atual demonstrou-se ainda mais repressivo que o de Bouteflika.
E explica: “Desde que Tebboune chegou à Presidência, a repressão dirigiu-se a vários setores da sociedade, inclusive aos que respeitam a lei. No passado, sabíamos quando púnhamos em risco a nossa liberdade. As poucas centenas de ativistas que denunciaram Bouteflika e seus acólitos estavam ameaçados. Mas raras vezes foram mandados para a prisão. Hoje em dia, não só os ativistas como também os cidadãos comuns que publicam uma mensagem inadequada no Facebook ou que filmam uma situação delicada sem autorização num hospital ou espaço público podem ser processados pelo chamado sistema judicial. Todos somos alvos potenciais.”
O reinício das manifestações mostra também que a sua suspensão não representou o fim do Hirak. Os e as militantes e ativistas, sem poderem encontrar-se presencialmente, foram para os fóruns da Internet, e organizaram atividades como uma campanha solidária para apoiar famílias pobres e trabalhadoras e trabalhadores da Saúde. Houve reuniões e encontros online.
Mas, explica Addad, a polícia também frequenta as redes sociais e qualquer comentário no Facebook pode representar a prisão do seu autor, como aconteceu com uma organizadora sindical e militante do Partido dos Trabalhadores que, por ter denunciado a brutalidade da polícia contra as mulheres, foi condenada por “atentar contra a Instituição do Estado”.
O objetivo deste tipo de ações repressivas é espalhar o medo e tolher as iniciativas militantes, já de si limitadas pela pandemia.
O Hirak e a representação política
O regresso da mobilização nas ruas volta a levantar a questão da representação política. Movimento decididamente basista, o Hirak nunca quis ter porta-vozes, o que permitiu que a polícia não conseguisse decapitá-lo, mas também recusou-se persistentemente a formar uma organização própria e independente. Os recados ao poder são dados nas manifestações; mas ninguém tem autorização para negociar em nome do movimento, avançar propostas, apresentar alternativas, participar em fóruns.
Hakim Addad reconhece um défice de organização no Hirak. “Há uma diferença entre a organização e ter porta-vozes. A primeira é necessária, o segundo não é”.
Seja como for, o reinício das manifestações volta a pôr em xeque um governo cujas iniciativas, como o referendo constitucional, se demonstraram um enorme fracasso. E que deve estar a meditar como, depois de toda a repressão que desencadeou contra os ativistas, pôde ouvir, das ruas, na última sexta-feira, 26 de fevereiro: “Estamos de volta, vocês estão perdidos!”
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