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BRASIL

Tomar partido hoje: a reinvenção da experiência política na juventude

Gabriel Santos, de Maceió, AL, e Vanessa Monteiro, de Niterói, RJ
Ilustração. Em um fundo amarelo, com um círculo laranja representando o sol, a silhueta de três pessoas, parlamentares do PSOL: Paula Nunes, Matheus Gomes e Iza Lourença. Iza está com a filha no colo.
Van Ilustra

Se pra eles comunismo é impossível
pra mim eles são a fonte do problema
Eu quero fazer a diferença
Construir um mundo onde ser preta, mulher
e bissexual não seja uma sentença
Onde a busca pelo lucro
Essa sim seja uma doença
Brenda Marques

Caso exista algum concurso para definir a palavra da moda, o termo crise seria um forte concorrente. Ela aparece diariamente em telejornais, em notícias políticas, econômicas e sociais. Qualquer um que passa no mercado para fazer as compras se choca com os preços sempre mais altos. Durante a pandemia, 13 milhões de brasileiros se encontram em situação de desemprego, a fome voltou a atingir lares destas famílias, que passaram a depender do auxílio emergencial para conseguir sobreviver. É a crise. Por outro lado, neste mesmo período, as 20 pessoas mais ricas do mundo acumularam 1,77 trilhão de dólares. Os bilionários tiveram sua fortuna aumentada em 31%, e foi esta mesma crise. Para uns a crise é sinônimo de desemprego e fome, para outros é sinônimo de crescimento de riqueza.

A pandemia escancarou o Brasil real que muitos insistiam em não ver, mas que sempre esteve ali. Somos um dos países mais desiguais do mundo, onde 1% dos mais ricos detém 30% da renda nacional e os 50% mais pobres acumulam apenas 13,9%. O bilionário Jorge Lemann, dono da maior cervejaria do mundo, AB InBev, tem um patrimônio de R$ 104 bilhões, ao mesmo tempo em que 54,8 milhões de brasileiros, mais de 25% da população, vivem na linha da pobreza com R$ 400 reais, e outros 40 milhões se encontram na informalidade.

A crise de hoje, com significados diferentes para grupos sociais diferentes, é mais que meramente uma crise, mas sim fruto de contradições da própria civilização. O martinicano Aimé Césaire já dizia que a civilização atual é uma civilização doente que criou problemas que ela não pode resolver. Uma civilização que vive de crises, guerras, descartando seres humanos, tratando estes como produtos, com enriquecimento gigantesco de uns poucos e empobrecimento injusto de milhares. Uma civilização que surge a partir do saque, assassinato e rapto de povos que habitavam na África para fazê-los trabalhar forçadamente do outro lado do Atlântico, não podia ser para todos. Uma civilização burguesa, colonial e patriarcal, que não oferece futuro para a imensa maioria da população, somente turbulências e incertezas.

Pelo direito ao futuro

A paisagem urbana oferece cada vez mais moradores em situação de rua, camelôs e ambulantes ocupando as calçadas e jovens trabalhando a serviço de aplicativos de forma precarizada e sem garantia de direitos, o que mostra que a fortuna desse 1% mais rico é construída sobre a exploração de 99% da população mais pobre.

Aqueles que adentraram na idade adulta nos últimos 10 anos anos tiveram com o passar do tempo, além do aumento da idade, uma relação íntima com a crise. É nossa geração que se encontra sem perspectiva de aposentadoria, com dificuldade para ingresso no mercado de trabalho, empregos cada vez mais precários, salários baixos, vai lidar de forma mais intensa com as consequências das mudanças climáticas, enfrenta a violência policial e abandono estatal nas periferias. Justamente por isto, é esta geração que diante das dificuldades e crise civilizacional que enfrenta diariamente, busca apresentar novas alternativas de confrontá-las. Dos cursinhos populares, aos slams, passando pelas batalhas de mc’s, chegando a rádios comunitárias e podcasts, são diversas formas de organização e de discussão política impulsionadas por jovens em todo o país, contrariando a visão de despolitização de muitas análises mais superficiais sobre a relação das novas gerações com a política.

As eleições municipais de 2020 registraram uma abstenção recorde entre eleitores de 17 a 24 anos; por outro lado, em números absolutos, foram também os mais jovens os que mais participaram do processo eleitoral. O índice crescente de abstenção entre jovens nas eleições nos remonta a junho de 2013, processo que transbordou não só inúmeras reivindicações mas também transformações na forma de se fazer política. Uma análise crítica da experiência de conciliação de classes durante os governos do PT, que se valeu da repressão contra a multidão que ia às ruas, é central para pensar as circunstâncias desta crise de representação. Ao mesmo tempo, a participação expressiva de jovens nas eleições passadas sinaliza para uma ocupação cada vez maior dos jovens na política. O golpe parlamentar e o aprofundamento da situação reacionária no país com a eleição de Bolsonaro em 2018 demonstraram que o antipartidarismo não contribui frente à necessária luta contra a extrema-direita.

Assim, ao mesmo tempo em que a crise também se dá no terreno da representação política, com nítido recorte geracional, dela emergem novos programas e demandas. Ao longo do ano passado os principais processos de luta tiveram como protagonistas jovens negros e periféricos, mostrando que a crise e a pandemia atinge de forma brutal este grupo social. O #BrequedosAPPs, paralisação nacional de entregadores de aplicativos, trouxe a demanda por reconhecimento e valorização de um serviço essencial – mas precarizado – que é composto majoritariamente por jovens negros. Os atos anti racistas que denunciavam o genocídio da juventude negra e o descaso do governo federal com a população negra durante a pandemia trouxeram o tema do racismo estrutural para o centro do debate nacional. Pauta que é a prioridade número um para jovens negros, segundo o estudo realizado pelo Google em parceria com o Instituto Datafolha e Mindset-WGS.

A mesma pesquisa aponta também como maior urgência sentida entre as mulheres mais jovens o tema do feminismo negro. A questão LGBTI+ foi destaque também nas últimas eleições municipais, com um número recorde de candidatos LGBTIs e um fenômeno de eleição de candidaturas trans. Importante destacar a luta por visibilidade e direitos para a população bissexual, cada vez mais pautada pela juventude.

O papel das redes sociais como local que estes jovens adquirem informação e se formam politicamente não pode ser reduzido. Através das redes muitos tem os primeiros contatos com temas e campanhas que os fazem adentrar em outros debates. A geração atual que adentra na idade adulta e a próxima que vêm, tem linguagens, gírias, modo de comunicação particulares, e isto precisa ser observado. Buscam novas formas de se organizar que superem vícios e erros anteriores, que os conectem com a ação direta, e trazem também questionamentos e reflexões que não foram resolvidos, aprofundados pela geração anterior. A importância do feminismo negro, como combater o racismo estrutural, como enfrentar a emergência climática, o ecossocialismo, a relação entre horizontalismo e organização vertical, são questões que a nova geração de ativistas que surge desde 2013 traz a tona e busca debater com centralidade cada vez maior, bebendo de ativistas e pensadores que elaboraram e atuaram sobre anteriormente para buscar construir um novo futuro.

A reinvenção da experiência política na juventude 

A arte e a cultura hoje nos trazem muitos elementos para pensar as emergências políticas levantadas nestes tempos de crise. A clássica “Voz ativa”, música de autoria do grupo Racionais MC lançada em 1992, foi regravada e lançada em agosto de 2020 com interpretação dos rappers Dexter, Djonga e Coruja BC1. Sua letra – um diálogo de Mano Brown com a obra do ativista antirracista Malcom X – é um chamado ao inconformismo frente ao racismo, a injustiça e a desigualdade e, ao mesmo tempo, um recado: a juventude negra agora tem voz ativa. Emblemático que tenha voltado à tona no ano da pandemia, onde vimos tanto o aprofundamento das desigualdades quanto a reação protagonizada pelo movimento negro nos Estados Unidos ressoando em todo o mundo. Diz muito também o fato de que uma nova geração de rappers tenha resgatado a mensagem de “Voz ativa” no momento em que vivemos. O mineiro Djonga, por exemplo, tem 26 anos e é uma grande referência de resistência contra hegemônica entre a juventude hoje.

Assim como o rap foi nos anos 1990 uma importante manifestação política e cultural na juventude de periferia, na última década somaram-se ao movimento uma série de outras formas de ativismo periférico como os slams, saraus e batalhas de rima que demonstram a radicalidade e potência criativa desta geração. Poderíamos aqui citar muitas outras “novas formas” de ativismo político, como a Greve pelo Clima e a Greve Internacional de Mulheres, passando pela inserção cada vez maior das redes sociais em nosso cotidiano, mudanças na linguagem e estética de movimentos sociais comparados aos “chavões” tradicionalmente utilizados pela esquerda entre outros. Todas essas transformações sinalizam para um processo de reorganização em curso, para o qual nós que somos da esquerda socialista – incluindo jovens – devemos olhar, intervir e aprender; cientes de que há muita coisa sendo dita (ainda que de outras maneiras).

No clipe da regravação de “Voz ativa” aparece o recado “28 anos depois pouca coisa mudou”, se referindo ao homicídio contra jovens negros. E o que mais pouco mudou? A música denuncia também o individualismo (“Se acomoda então, não se incomoda em ver/ Mesmo sabendo que é foda/ Prefere não se envolver/ Finge não ser você/ E eu pergunto por que?/ Você prefere que o outro vá se foder.”), tema mais atual que nunca. Apesar de politizada, nossa geração também é acometida pela razão dos tempos em que vivemos. Em um mundo neoliberal, somos incentivados a competir cotidianamente e a ceder a lógica do sujeito como empreendedor de si. Nas redes sociais estamos a todo momento expostos a essa forma de relação mercadológica, onde investimos e desinvestimos em pessoas através de nossos likes e “unfollows”, onde cada pessoa parece ter poder e controle sobre si (e sobre outros?) enquanto nas estatísticas “pouca coisa mudou”.

A reinvenção da experiência política na juventude passa também por resgatar a solidariedade como valor e prática sem a qual não seremos capazes de subverter a barbárie, ainda mais em tempos de crise global acelerada pela pandemia do coronavírus. Neste sentido, 2020 também foi um ano em que os mais jovens tiveram papel ativo na auto organização e ações de cooperação mútua. Segundo a pesquisa sobre juventude e pandemia realizada pela CONJUVE, mais de 80% das jovens mulheres entrevistadas participaram de alguma forma de ações de solidariedade, sendo estas as mais atuantes apesar de terem sofrido mais consequências emocionais e financeiras neste período que os homens.

Tomar partido é ter voz ativa 

É tempo de PSOL. Filie-seAs várias lutas em curso são o sintoma (e caminho para cura) para a doença que atinge a todos nós: a sociedade capitalista. O colapso ecológico causado pelo aquecimento global, desmatamento das florestas e poluição do meio ambiente; o crescimento do desemprego e da fome nos países da periferia do mundo; a violência que cada vez mais tomba corpos negros, indígenas e assassina lideranças politicas como foi Marielle Franco, vereadora do PSOL e ativista dos direitos humanos; a crise da reprodução social que estafa mulheres sujeitas a super exploração; a falta de perspectiva para a juventude mesmo após sua inserção no ensino superior; tudo isso elevado a máxima potência frente a pandemia da COVID-19 escancaram um sistema cujo modo de produção está pautado no lucro e um modo de vida onde a marca é o individualismo.

As novas gerações têm transformado a política, seja nas ruas ou no parlamento, como vimos nas eleições municipais de 2020. Não foram poucas as campanhas-movimento que envolveram ativistas, movimentos sociais e lideranças comunitárias, provando que é possível ir além das urnas e pautar um programa de transformação social. O PSOL, neste sentido, tem sido a principal expressão deste processo, a exemplo da eleição de Edmilson em Belém e da campanha de Guilherme Boulos em São Paulo, apostando em uma nova forma de fazer política, com grande alcance nas redes sociais e diálogo com a juventude, a população periférica e trabalhadores precarizados. O crescimento da representação negra na política também se manifestou com a eleição de jovens lideranças ligadas ao ativismo social, como Matheus Gomes em Porto Alegre e Iza Lourença em Belo Horizonte, ambos do PSOL e do movimento Afronte!, para citar apenas dois exemplos. A busca por novas formas de representação político-partidária foi demonstrada também pelo boom de candidaturas coletivas, a exemplo da Bancada Feminista do PSOL em São Paulo, a candidatura coletiva mais votada do país com 46.267 votos.

A renovação da política e o surgimento de uma alternativa radical e anti capitalista é fundamental para enfrentar a face mais reacionária do neoliberalismo hoje representada pelo negacionismo de extrema direita, presente em nosso país e em outros lugares do mundo. Como disse Boaventura de Sousa Santos, “a esquerda tem de ser partido e movimento porque nem um nem outro isoladamente sobreviverão à degradação da democracia causada pelas forças de direita”. A crise de hoje ameaça o nosso futuro e estamos todos convocados a enfrentar a indiferença, a tomar partido. Em tempos onde cotidianamente lutamos pela nossa sobrevivência, onde a cada instante estamos convocados a nos posicionar sobre uma atrocidade diferente, pedimos uma mudança de olhar: que olhemos para o futuro, que voltemos a sonhar coletivamente com o mundo que queremos construir.

 

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Referências 

https://esquerdaonline.com.br/2020/06/19/as-lutas-sociais-no-brasil-da-pandemia-sinais-de-re organizacao/

https://www.nexojornal.com.br/colunistas/tribuna/2021/O-avan%C3%A7o-da-representa%C3% A7%C3%A3o-negra-na-pol%C3%ADtica

https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/boaventura-a-politica-em-tempos-de-colera/ https://esquerdaonline.com.br/2016/11/18/lembrando-o-partido-dos-panteras-negras/