“No ano passado, escrevi que os comunistas, em sua luta contra o fascismo, eram obrigados a entrar em acordos práticos não só com o diabo e sua avó, mas até com Grzesinsky*.
“(…) Em todo caso, sempre existe uma diferença entre a situação em que Grzesinsky, sentado em sua fortaleza, mandava divisões da polícia contra os operários revolucionários para defender a ‘democracia’, e aquela em que o salvador bonapartista do capitalismo metia o próprio sr. Grzesinsky na cadeia. Será que não devemos fazer nosso cálculo político baseado nesta diferença e utilizá-la?”.
* Albert Grzesinsky, membro do Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), foi chefe da polícia prussiana de 1922 a 1924, chefe da polícia de Berlim de 1925 a 1926, ministro do Interior da Prússia de 1926 a 1930 e, de 1930 a 1932, novamente chefe de polícia de Berlim. Grzesinsky se tornou conhecido pela repressão à manifestação de 1º de Maio de 1929, na qual morreram 33 operários comunistas, enquanto as manifestações nazistas mantinham a sua legalidade.
(TROTSKY, Leon. “O Único Caminho”, 13 de setembro de 1932. Em Revolução e contrarrevolução na Alemanha”, Editora Sundermann, São Paulo, 2011. PP 293 e 294)
A prisão do deputado Federal Daniel Silveira (PSL-RJ), a mando do ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal (STF), na Quarta-Feira de Cinzas, foi o fato político deste Carnaval que fez a água transbordar o copo das relações perigosas entre bolsonarismo e as instituições do chamado Estado democrático de direito. Mas a prisão de Silveira não caiu como um raio no céu azul de um dia de verão. Ela foi precedida, pelo menos, de quatro factoides que estão intimamente ligados. São eles:
- As declarações do General Villas-Boas, publicadas em livro, que admitem explicitamente a participação do Alto Comando do Exército no golpe parlamentar e na prisão de Lula;
- Os recentes decretos de Bolsonaro flexibilizando ainda mais a compra, importação e porte de armas para supostos atiradores esportivos e caçadores;
- As declarações do próprio deputado Daniel Silveira, exigindo o fechamento do STF, ameaçando ministros da instituição e fazendo apologia ao AI-5;
- E, não menos importante, o fato do Arcebispo militar do Brasil, Dom Fernando Guimarães, se negar a participar da campanha da fraternidade de 2021, cujo tema deste ano é “Fraternidade e Diálogo: compromisso de amor”, que denuncia a violência contra negros, indígenas, mulheres e a população LGBTQI+, destacando a importância das políticas em defesa dos direitos humanos.
A sincronia quase imediata desses quatro factóides, ato seguido à eleição de Arthur Lira (PP-AL) para presidência da Câmara dos Deputados, não indica que se trata de atos atabalhoados e desesperados de Bolsonaro e de seus apoiadores, explícitos ou velados, nas Forças Armadas. Está cada vez mais nítido que uma significativa fração do capital financeiro no Brasil resolveu tocar fogo no parquinho, para usar uma expressão corrente, e dar corda em Bolsonaro e nos bolsonaristas, particularmente na ala bolsonarista das Forças Armadas, para testar a fundo a reação das instituições da democracia liberal à escalada de uma série de provocações coordenadas, cujo alvo prioritário é o STF.
Por que o STF foi escolhido como alvo prioritário?
A resposta a esta pergunta parece óbvia. Na medida em que Bolsonaro e o bolsonarismo controlam o Executivo, têm respaldo na cúpula das Forças Armadas e avançam sobre o Legislativo, com a eleição de Arthur Lira, buscam acuar os ministros do STF para que não se atrevam a criar empecilhos políticos e jurídicos, por mais tímidos e covardes que sejam, à sua estratégia golpista.
Isso é demonstrado pelo problema criado na iminente e provável votação da suspeição de Sérgio Moro, que representaria os pregos no caixão da Lava Jato, e um efeito cascata cujo resultado seria a explícita confissão de culpa de participação do próprio STF no golpe institucional de 2016 e na grande fraude que representou a prisão e a cassação dos direitos políticos de Lula. Ainda que o STF não restabeleça plenamente os direitos políticos de Lula e não o permita concorrer às eleições de 2022, o anterior representa um problema de grande magnitude, não somente para Moro, Deltan Dallagnol e todos os envolvidos na finada Lava Jato, mas uma ameaça à construção da hegemonia autoritária do bolsonarismo sobre as instituições da República.
Some-se a isso, ainda que a passos de cágado, a continuidade das investigações do escândalo das Fake News, do chamado Gabinete do Ódio e do envolvimento direto dos filhos de Bolsonaro e de um sem-número de deputados bolsonaristas nos ataques ao STF e no patrocínio dos atos em favor do AI-5 e de uma suposta intervenção militar, ou seja, de um autogolpe de Bolsonaro apoiado pelas Forças Armadas.
Por fim, não podemos esquecer o pavor que Bolsonaro e seus filhos mantém diante da investigação do escândalo das rachadinhas, do seu envolvimento com as milícias e de, no mínimo, sua cumplicidade silenciosa com o assassinato de Marielle Franco.
Tudo isso, vem transformando o STF na instituição mais “indisciplinada” do regime político aos olhos da estratégia golpista de Bolsonaro. E isso não ocorre porque os ministros do STF tiveram, como quase que por encanto, uma iluminação divina que os levou a defender a ferro e fogo as instituições democráticas contra o bolsonarismo.
A reação dos ministros do STF tem a ver muito mais com a preservação de sua autoridade política e institucional, frente ao achincalhamento da Suprema Corte, do que com a defesa propriamente dita das liberdades democráticas contra intentos neofascistas.
Mas, contraditoriamente, com a prisão de Daniel Silveira e a posterior votação do pleno da Corte em favor da manutenção desta mesma prisão por 11 votos a zero, ao reagirem de maneira altiva em defesa do seu prestígio político e institucional, os ministros do STF acabaram, ainda que por um curto período e utilizando-se apenas do expediente de um bode expiatório, enquadrando a estratégia golpista do bolsonarismo.
Crise nas alturas e correlação de forças
Derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais estadunidenses, guerras das vacinas e pelos mercados da tecnologia 5G entre Estados Unidos e China, aumento das contaminações e mortes na pandemia da Covid-19, estagnação econômica, inflação dos preços internos, desvalorização do real, crise orçamentária do Estado brasileiro, tudo isso é motivo de disputas entre as diferentes frações do capital financeiro que atuam no país e tem suas repercussões distorcidas na superestrutura estatal. A crise do capitalismo no século XXI vem fazendo com que diferentes projetos de distintas frações da classe dominante passem a disputar a hegemonia não só entre as grandes potências econômicas, como Estados Unidos e China, mas dentro de cada país, como o Brasil.
Para entendermos o significado da atual crise nas alturas, que beira uma crise institucional, é preciso considerar que a presente situação política, social e econômica está potencializando e acelerando o choque entre instituições do regime político, atravessada pela disputa diferentes projetos, choque este que pode gerar uma dualidade de poderes no âmbito da própria superestrutura estatal entre Executivo e Judiciário, Judiciário e Legislativo, Forças Armadas e Judiciário. Percebam que o Poder Judiciário segue no centro da crise desde o golpe parlamentar de 2016, só que agora com um sinal invertido, na defensiva, acuado pelo Executivo e pela estratégia golpista do bolsonarismo.
Por outro lado, na medida em que os movimentos sociais e as massas encontram-se ausentes como protagonistas das grandes disputas na atual situação política do país, o jogo jogado na superestrutura do Estado, particularmente nas articulações e choques entre as instituições do regime político, ganha um peso de grande importância para analisarmos os possíveis cenários nos curto e médio prazos.
É que a classe dominante, seus partidos e altos funcionários se sentem à vontade para mostrar as vísceras de suas disputas intestinas na busca de uma saída para a presente crise capitalista, exatamente porque os movimentos sociais e as massas estão confusos, desorganizados e na defensiva e não representam, nem de longe, uma ameaça imediata à sua hegemonia.
Assim, as diferentes frações e grupos de interesses dos super-ricos mobilizam seus políticos e representantes em todas as instituições estatais, inclusive nas Forças Armadas, para testarem seus distintos projetos políticos e fazer experiências em carne viva com o choque público dessas divergências, sem temerem imediatamente a ascensão do movimento de massas.
Somente a entrada em cena do movimento de massa no Brasil, como ocorreu recentemente nos Estados Unidos e no Chile, poderia mudar radicalmente o caráter da presente luta política superestrutural e apontar uma saída anticapitalista. Mas, desgraçadamente, não é o que temos para hoje. Apesar disso, os ingredientes estão fermentando, ainda que lenta e contraditoriamente, e mais cedo do que tarde, os movimentos sociais e as massas podem detonar uma fagulha e irromper na cena política como um poderoso e incontrolável vulcão.
STF, Lei de Segurança Nacional e combate ao neofascismo: um debate imprescindível na esquerda
Muitos militantes honestos da esquerda socialista têm se perguntado se não seria um erro apoiar a prisão de Daniel Silveira pelo STF, que se utilizou inclusive do expediente da Lei de Segurança Nacional (LSN), herdada da ditadura militar, para decretar a prisão do deputado.
Não é preciso repetir que a LSN é um estorvo herdado da ditadura militar e junto com a nova Lei Antiterrorismo servem essencialmente para intimidar e reprimir os movimentos sociais e as massas em luta por suas reivindicações. A rigor, somos pela revogação incondicional destas duas leis draconianas que visam, acima de tudo, criminalizar a esquerda, os movimentos sociais e as ações de massas contra o capitalismo.
No entanto, é o óbvio ululante que a LSN foi utilizada excepcionalmente, neste caso, contra um deputado neofascista, não contra os movimentos sociais e as ações anticapitalistas das massas. Defender o direito a liberdade de expressão à Daniel Silveira é não só um erro, mas uma grave capitulação política ao neofascismo.
Não há por que defender o direito à liberdade aos inimigos da liberdade. Da mesma forma que denunciamos os governos, a justiça, a polícia e a própria LSN quando atacam os movimentos sociais e as massas em luta, devemos exigir mais dessas instituições para que enquadrem o neofascismo, utilizando-se de todo o seu cabedal político e institucional em defesa do seu tão caro e louvado Estado democrático de direito.
Isso não significa semear confiança nas instituições corruptas da democracia liberal, no STF ou na própria LSN. Mas, se estas se voltam contra os neofascistas, como nos ensinou Trotsky: “Será que não devemos fazer nosso cálculo político baseado nesta diferença e utilizá-la?”
Isto porque o STF não está utilizando-se da LSN no presente momento contra os movimentos sociais, a esquerda, até a mais reformista, como o PT, ou mesmo contra uma fração burguesa democrática, ou ainda contra figuras burguesas democráticas como Ciro Gomes, por exemplo. Neste caso, haveria que denunciar que o STF estaria a serviço do bolsonarismo e sendo cúmplice de um brutal ataque às liberdades democráticas. Entendem a diferença?
Aqui não se trata da luta de duas frações burguesas normais, quer dizer, no marco do chamado Estado democrático de direito, ou das frações majoritárias da burguesia contra os reformistas no governo ou ainda contra as ações das massas em luta, mas do enfrentamento ao fascismo, que está sempre buscando avançar, aproveitando-se de vitórias parciais, como a eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara, com a intenção de radicalizar seus discursos e ações.
Contra os fascistas, a esquerda socialista sempre defendeu o uso de todas as armas, inclusive de todo aparato legal e, até mesmo, leis reacionárias como a LSN. Manter Daniel Silveira preso, custe o que custar, é uma paulada política, institucional e legal no bolsonarismo. Só um completo míope político não entende que a principal ameaça contra as liberdades democráticas, na presente situação da luta de classe no Brasil, não vem do STF, mas do bolsonarismo que quer, inclusive, fechar o STF.
Afirmar que, com a prisão de Daniel Silveira, o STF está atacando as liberdades democráticas é fazer o jogo do neofascismo, quando é o bolsonarismo que representa cada vez mais, e particularmente desde a eleição de Arthur Lira para presidente da Câmara, e não o STF, a maior ameaça às liberdades democráticas.
Mas, perguntam-nos os honestos militantes que ainda tem dúvida sobre a análise acima: E se depois da prisão de Daniel Silveira, a classe dominante utilizar o próprio STF e a LSN contra os movimentos sociais e as ações das massas em luta? Isso é, mais uma vez, óbvio e ululante. Se o STF vai usar depois a LSN contra o movimento de massas, o que é líquido e certo, isso independe da utilização agora dessa mesma lei reacionária contra o bolsonarismo. Até porque, desde a queda da ditadura militar, a LSN foi e continuará sendo utilizada como aparato legal contra os trabalhadores e o conjunto dos movimentos sociais, mantendo-se até hoje como expediente legal, nos marcos da Constituição de 1988. E justamente agora, que ela é usada excepcionalmente contra os fascistas, nós seremos contra? Sinceramente, não faz sentido essa lógica política.
Se fôssemos resumir essa polêmica numa palavra de ordem ela seria: “STF, mantenha Daniel Silveira preso!” E não: “STF, solte Daniel Silveira!”. E foi isso que o STF fez por 11 X 0 na tarde desta mesma Quarta-Feira de Cinzas. Mas devemos exigir mais: STF e Congresso mantenham o fascista preso e cassem imediatamente seu mandato!
Nesta quinta-feira, o conselho de líderes da Câmara dos Deputados vai se reunir e debater se a prisão de Daniel Silveira é legítima ou não. O Conselho de Ética, que estava suspenso desde o início da pandemia, foi acionado. Dependendo do que a Câmara dos Deputados votar, o sinal verde, para a continuidade ensandecida da escalada golpista do bolsonarismo, continuará aberto e com uma avenida pavimentada. Ou, a classe dominante pode escolher pela prudência e segurar um pouco mais forte as coleiras de seus cachorros loucos, sem deixar de mantê-los com uma ameaça permanente sobre nossos corpos.
Os super-ricos jogam com Bolsonaro o jogo do estica e puxa, do morde e assopra, e assim vão testando as possibilidades de diferentes projetos, estratégias e táticas políticas ao vivo e em cores. A esquerda socialista, os sindicatos e os movimentos sociais organizados não podemos continuar como meros expectadores desse teatro de horrores. Precisamos intervir e intervir rápida e decididamente como um projeto anticapitalista, estratégias e táticas de propaganda e agitação presenciais e virtuais, bem como um plano de ação para disputar as consciências de milhões de trabalhadoras e trabalhadores, de negras e negros, das LGBTQI+ e da juventude pobre das periferias das grandes cidades. Fascistas, não passarão!
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