Pular para o conteúdo
BRASIL

Decretos armamentistas: um cavalo de Troia

Guilherme Bertassoni da Silva*
Agência Brasil

Os recentes decretos da presidência da República acerca de armas de fogo, munições e acessórios colocaram em alerta as entidades e cidadãos preocupados com a insegurança jurídica e real causada por estas medidas. Os decretos e seus temas são os seguintes:

  • Decreto nº 10627/2021: Regulamento de Produtos Controlados
  • Decreto nº 10628/2021: aquisição, cadastro, registro e posse de armas de fogo e de munição.
  • Decreto nº 10629/2021: registro, cadastro, e aquisição de armas e de munições por caçadores, colecionadores e atiradores.
  • Decreto nº 10630/2021: aquisição, cadastro, registro, porte e comercialização de armas de fogo e de munição e sobre o Sistema Nacional de Armas e o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas.

Ao facilitar sobremaneira o acesso às armas, a justificativa que nos aparece é a de liberdade e segurança pessoal, com a onipresente justificativa do direito individual à autodefesa.

Para uma discussão inicial, devemos nos lembrar do que nos aponta a Carta Magna sobre a temática da segurança. A Segurança Pública é um direito social fundamental e um dos objetos da função social do Estado. Prevista no artigo 144 da CF, é “exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, por meio do poder de polícia de diversos órgãos federais, estaduais e municipais (Polícia Federal, PRF, Polícia Civil, Polícia Militar, Guardas Municipais). Cabe a estas entidades a manutenção da ordem e preservação da vida, com policiamento ostensivo (preventivo e repressivo) e as ações de polícia judiciária (investigação, inquérito, oferecimento de denúncia).

Essa introdução é necessária para apontarmos o desvio que sofrem funções de segurança pública; são descaracterizadas na atual política armamentista, que entrega ao cidadão a responsabilidade (fictícia) por sua integridade física e patrimonial.

Ao relegar ao cidadão esta responsabilidade, com o pressuposto mantra liberal das liberdades individuais, o Poder Executivo comete uma sequência de desacertos no campo da segurança. Apontaremos para três situações que chamam especialmente a atenção.

A primeira e mais evidente situação diz respeito ao “vício de origem”, uma vez que tal temática deve passar por debates legislativos, em ambas as casas; deve sofrer emendas, ajustes, discussões, passar por audiências públicas, enfim, ter seu processo legislativo respeitado. É claro que a oposição já se manifesta e pede a suspensão de tais normas decretadas pelo Executivo.

Outro ponto importante é o caráter que nos remete ao “mito do herói”. Ao fantasiar sobre a autodefesa, o cidadão comum armado tem a ideia de se equiparar ao policial (especialmente o militar) altamente treinado no uso de arma de fogo. Veja-se que o treinamento policial militar – com ressalvas para todas as críticas sobre a metodologia deste treinamento – prepara estes profissionais para o exercício de uma guerra urbana. O manuseio da arma de fogo, o conhecimento sobre seus mecanismos e o uso desta arma em estandes de tiro, ainda que com regularidade, não qualifica o portador da mesma como um agente de segurança pública. O treinamento previsto para a formação de um soldado é de, no mínimo, 1600 horas (dados referentes ao Estado do Paraná). Para os oficiais, a formação tem previsão de cerca de 4000 horas – de acordo com o parecer nº 400/1982 do MEC, que equivale esta formação a uma formação universitária. Para ambos, há desenvolvimento de qualidades específicas de tipo físico, técnico, tático e de defesa pessoal. Qual seja, há todo um investimento do Estado na formação de um quadro específico, treinado e constitucionalmente responsável para as atividades de segurança pública.

Ao agir individualmente, o civil portador de arma de fogo carece de todo este treinamento. Muitas vezes desconhece os mecanismos de funcionamento de sua arma de fogo. Não tem capacidade técnica de corrigir uma pane, um incidente de tiro. É comum vermos notícias de mortes relacionadas a acidentes domésticos envolvendo armas de fogo, em momentos em que a pessoas fazia a limpeza do instrumento, demonstrações de exibição e atos correlatos. Ainda, é comum que o cidadão perca sua arma em furtos ou roubos (como aconteceu com o então deputado Bolsonaro, em 1995– esta arma normalmente vai alimentar a ilegalidade e as milícias. Reside aí o perigo do engodo provocado pelas alterações normativas: a sensação de segurança de um sujeito armado que, de fato, coloca sua vida (e de seus coabitantes) em risco, além de fornecer equipamentos para aqueles que visam à subtração de bens alheios.

Não menos relevante, temos a situação específica do decreto nº 10627/2021. Neste, há a determinação de redução dos produtos controlados pelo Exército Brasileiro. Segundo a Portaria nº 61/2020 do Comando Logístico do Exército Brasileiro (Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados), deve haver uma marcação na base dos cartuchos (no estojo metálico, que serve de “embalagem” para o projétil que será lançado). Esta marcação é um código de rastreabilidade, que visa à identificação de fabricante, lote e órgão que o adquiriram. Esse achado investigativo e pericial se dá quando do recolhimento de estojos nas cenas de crime e o envio para a Seção de Balística Forense para sua identificação e possível exame de confrontação balística – caso haja elementos de padrão (armas suspeita) para efetuar tal comparação. A supressão da marcação, alterações, constatação de calibre nominal e confronto balístico são funções inerentes à perícia criminal visando a materialidade probatória: é a produção da prova material, o elemento comprovante do crime que faz a ligação da cena do crime com a possível autoria (identificação indireta de arma de fogo – no caso do confronto balístico). Se o entendimento jurídico indicar que essa normativa não é mais aplicável, a o caminho retrospectivo da origem da munição, já difícil nos dias de hoje, será nulo.

Trouxemos três pontos que indicam para perigos e desacertos elencados nas alterações da regulamentação de armas de fogo, munições e acessórios. Não podemos nos deixar ludibriar pelas intenções que subjazem estas alterações, compreendendo desde já uma liberação armamentista voltada à mesma ideologia, por exemplo, que tomou de assalto o Capitólio estadunidense em janeiro deste ano. Esta ideologia representa o cidadão revoltado com a classe política tradicional, que opta por um discurso que tem algo de outsider, mas que se coloca numa conjunção do paternalista com o personalista. Sem partido, sem “política”, aproveitando para disseminar o medo, apontando para seus moinhos de vento: os inimigos falseados e imaginários, entre indivíduos e grupos tidos enquanto minoritários. Estes tem grande espaço amostral, estendendo-se no espectro dos indígenas, “comunistas”, movimento LGBTQIA+, ambientalistas, movimentos ligados a Direitos Humanos, movimentos de luta por terra e moradia, entre outros. A eleição do inimigo também demonstra a relação com este, que se verifica no contexto político atual: devem ser tratados “na bala”. Não há diálogo, entendimento, espaço para ceder. Há a ideia do extermínio daquele que discorda, com a vertente autoritária típica dos governos ditatoriais. É esse apoio que o atual governo busca e incentiva por meio de sua política armamentista.

Uma ideologia que privilegia o individual sobre o coletivo, passa por cima dos representantes legislativos, incentiva o engodo da autodefesa, dificulta a investigação de crimes e traz todos em si todos os elementos já verificados em regimes autoritários, antidemocráticos e populistas, com a identificação do mandatário como um salvador da pátria. Nós sabemos como esta história termina.

 

*Guilherme Bertassoni da Silva, psicólogo (CRP 08/10536), especialista em Saúde Mental, mestre e doutorando em Psicologia. Perito Criminal desde 2009, com atuação em Balística e Psicologia Forense.

 

LEIA MAIS

Com decretos, bolsonarismo dá mais um passo para armar a sua base social

Marcado como:
armas / Bolsonaro