Férias pra que te quero | The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood, o livro e a série: quando a vida imita a arte (ou quase)

No primeiro verão da pandemia, que desejamos que seja o último, considerando que muitas pessoas estão de férias, mas estão em casa, respeitando as recomendações das autoridades sanitárias e dos estudiosos do assunto, abrimos uma coluna para indicar filmes, séries e livros para os nossos leitores. Através de textos curtos, traremos sugestões que acrescentem um pouco de arte, diversão e também algum conhecimento aos que nos acompanham e acompanham o Esquerda Online. Querem saber o que temos pra hoje? Vem comigo, no caminho eu explico!

Carlos Zacarias
Reprodução

Assim como não se pode dizer que nenhuma pessoa ou obra pode ser dita como estando à frente do seu tempo, não se deve ignorar que, por vezes, um produto cultural encontra eco muito depois de ter sido lançado. Esse é o caso, por exemplo, do livro The Handmaid´s Tale (O conto da Aia) da escritora canadense Margaret Atwood. Publicado em 1985 em plena era Reagan-Thatcher, o livro se inspirou em acontecimentos relacionados à ascensão do conservadorismo e do fundamentalismo cristão nos Estados Unidos, através do televangelismo, que chegava ao poder com Reagan, mas também ao que havia sucedido em países tão distintos como a Argentina, Romênia, Filipinas, África do Sul e Irã, mergulhados em ditaduras militares ou burocráticas, teocracias ou apartheid nos anos 1970 e 1980. Tais realidades terminaram por sugerir a dimensão distópica que seria incorporada ao livro de Atwood, um libelo feminista contra a opressão.

Passados pouco mais de 30 anos da publicação do livro, e ainda considerando-se que as realidades das ditaduras mencionadas acima, do ultraliberalismo da era Reagan-Thatcher e do apartheid sejam agora partes da história, o retorno da ameaça da barbárie fascista, novamente sustentado em novas formas de fundamentalismo, tornam a obra mais atual que nunca. Dado que o trumpismo parece sobreviver ao próprio Donald Trump, apeado do poder nas eleições de 2020 após um mandato repleto de medidas improváveis, estúpidas e ultra-autoritárias, devemos nos perguntar o que a obra de Atwood tem a nos dizer sobre o mundo contemporâneo.

A começar pelo fato de que o fundamentalismo, travestido de discurso sobre uma suposta “cristofobia”, é cada vez mais ameaçador, não deixa de ser espantoso que as correntes mais reacionárias sejam protagonistas de episódios inimagináveis mesmo na década de 1980, como a invasão do Capitólio nos Estados Unidos, ocorrida em 6 de janeiro de 2021, que imediatamente nos remete à dimensão quase profética da utopia negativa de Margaret Atwood. Com efeito, mesmo que a tentativa de golpe ou a limitada revolta da patuleia trumpista tenha sido frustrada, seria impossível não se arrepiar com o que foi visto nas telas das Tvs de todo o mundo. Na ocasião, além de militantes neonazistas e supremacistas brancos diversos, destacaram-se uma plêiade de figuras masculinas paramentadas com referências explícitas a uma espécie de tribalismo supremacista de gênero, cujos princípios corresponderiam, segundo a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, a grupos que se movem pelo “ódio às mulheres, uma ideia de que as mulheres são objetos para reprodução humana simplesmente.” Para a antropóloga brasileira, que falou ao repórter Ricardo Senra para a BBC Brasil, chama a atenção o conteúdo machista desses segmentos: “Muitos dos grupos masculinistas norte-americanos defendem que as mulheres têm que ser caçadas, literalmente, e que nós só servimos para reprodução”.

À parte os acontecimentos recentes, que quase nos dão a impressão de que é vida que imita a arte, a distopia de Atwood voltou a entrar no circuito popular em função da série produzida em 2016 e lançada em 2017 pelo pouco conhecido canal de streaming Hulu. Fielmente baseada na obra da escritora canadense, que é também produtora da peça televisiva, The Handmaid´s Tale, que nos anos seguintes faturou vários prêmios Emmy, é estrelada pela excelente Elisabeth Moss, que faz o papel principal da Aia Offred (June) e traz ainda Joseph Finnes, como o Comandante Fred Warterford, Yvonne Strahovsky, como Serena Joy, Ann Dowdd, como Tia Lydia, entre outros.

A história se passa num futuro não muito distante, que poderia ser o nosso presente, visto que não há tecnologias inovadoras mas, ao contrário, um profundo retrocesso nas comunicações. Neste futuro/presente, uma ditadura fundamentalista cristã foi instaurada depois de um golpe nos Estados Unidos, que transformou parte do território do país na República de Gilead. Na narrativa, a personagem Ofrred, que tem esse nome constituído pela junção da preposição “of” (“de”) como o nome de seu Comandante que se chama Fred, quer dizer “de Fred”, é Aia da casa dos Warterford, onde reina o patriarca Fred Warterford que vive com sua esposa Serena Joy. Serena, que como outras mulheres socialmente importantes constituem a casta das “Esposas”, vive o infortúnio de ter sido vitimada por uma epidemia de infertilidade que atingiu o planeta. Impossibilitada de ter filhos, Serena e as demais mulheres da casta das Esposas gozam do privilégio de terem uma Aia para lhes conceder um filho, além de dispor do conforto de ter empregadas domésticas, que são chamadas Marthas, além de motoristas particulares.

Em Gilead as mulheres cumprem o dever de servir aos homens, todas elas, não apenas as Aias. Portanto, um dos argumentos centrais do livro e da série é o de que as mulheres perderam o direito à palavra. Por conta disso, são proibidas de ler ou escrever e caso venham a ser pegas no ato infracionário, são passíveis de severas punições, que vão da amputação de um dos membros do corpo, até a morte.

Os homens mais importantes de Gilead, e que possivelmente lideraram o golpe que instituiu a república fundamentalista, são chamados “Comandantes”. As mulheres que são entregues a essas famílias, depois de passarem por um duro processo de reeducação, repleto de constrangimentos e torturas, com as chamadas “Tias”, tornam-se aptas a serem Aias, as servas que vão funcionar com receptáculos desse homens para a procriação. A alternativa a essa vida é a morte ou o envio para as “colônias”, unidades de trabalho forçado em condições absolutamente inóspitas.

Apesar do privilégio de terem Aias, serviçais e segurança constante oferecido pelo Estado, as famílias dos Comandantes não são famílias comuns, posto que o casal nuclear não pode usufruir de nenhuma espécie de afeto e o sexo entre o casal é interditado, já que em Gilead sua única função é para fins de reprodução. Neste caso, o ato sexual do Comandante com a Aia, que constitui uma espécie de estupro institucionalizado, reveste-se de um tom ritualístico, chamado de “Cerimônia”. Nesta, o Comandante reza e recita o trecho bíblico do livro 30 de Gêneses, quando Raquel, esposa de Jacó, que é uma mulher infértil, diz ao marido que este deve deitar-se com sua serva Bila, para que ela lhe dê filhos. Na Cerimônia, em que estão presentes as pessoas da casa, a Aia deita-se vestida ao pé da cama, por entre as pernas da Esposa, que segura seus punhos enquanto esta é penetrada pelo Comandante. No livro de Atwood, a cena descrita por Offred, é pungente e ao mesmo tempo repleta de fria indignação:

Minha saia vermelha é puxada para cima até minha cintura, mas não acima disso. Abaixo dela o Comandante está fodendo. O que ele está fodendo é a parte inferior de meu corpo. Não digo fazendo amor, porque não é o que ele está fazendo. Copular também seria inadequado porque teria como pressuposto duas pessoas e apenas uma está envolvida. Tampouco estupro descreve o ato: nada está acontecendo aqui que eu não tenha concordado formalmente em fazer. Não havia muita escolha, mas havia alguma, e isso foi o que escolhi.[1]

Em Gilead as hierarquias são identificadas pelas cores das roupas usadas pelas mulheres. As Esposas vestem azul, as Marthas marrom, as econoesposas, de nível social mais baixo, que eventualmente podem ter filhos e que não aparecem na primeira temporada da série, mas constam das temporadas seguintes e estão no livro, usam saias coloridas, simbolizando o não enquadramento em nenhuma das castas. As Aias, por sua vez, vestem um vestido vermelho e usam um chapéu branco, uma reprodução dos gorros puritanos, com longas abas laterais que as impedem de olhar para os lados, evitando-se que se desviem do caminho.

Pela simbolismo das cores em profusão aludidos no livro de Atwood, a série contém uma fotografia belíssima, como variados contrastes, especialmente explorados a partir do vermelho vivo usado pelas Aias. Apesar da beleza estética, a obra de modo algum pode ser considerada leve. Não obstante, a personagem de Offred é uma mulher independente e resoluta que de pronto sugere uma imensa empatia do leitor e do espectador que acompanha a sua história e torce para que ela logo encontre sua filha, que lhe foi arrancada e entregue à família de algum Comandante. Offred, também luta para reencontrar o seu companheiro Luke (O. T. Fangbele), que conseguiu fugir para o Canadá em seguida ao golpe de Estado. Na saga de Offred, acompanhamos suas relações de perigosa amizade e amor com variados personagens, como o enigmático motorista Nick (Max Minghella), de quem desconfia que pode ser um “Olho” (uma espécie de espião), além de suas amigas Moira (Samira Wiley) e Emily/Ofglen (Alexis Bledel) e mesmo Serena Joy, que mesmo sendo Esposa, não pode deixar de ser mulher e viver a contradição entre ser oprimida e opressora.

The Handmaid´s Tale ganhou versões para o teatro e também para o cinema. Na pouco conhecida versão cinematográfica, dirigida pelo alemão Volker Schlöndorff e levada às telas em 1990, cujo título brasileiro é A decadência de uma espécie: a história da Aia, Natasha Richardson faz o papel de Offred, Robert Duvall é o Comandante Fred Warterford e Faye Dunaway interpreta Serena Joy. Nem de longe a versão do cinema se equipara em qualidade à série televisiva, que ganhou três temporadas e tem a promessa de uma quarta e uma quinta, que estão em produção.

De tão importante que se tornou a série televisiva, o livro de Margaret Atwood passou a ter novas e sucessivas edições, o que reinseriu a autora no circuito das escritoras mais importantes do momento, lhe provocando a necessidade de escrever uma continuação da obra através do livro Os testamentos, publicado em 2019 e que se passa 15 anos após os acontecimentos descritos em The Handmaid-s Tale.

Em tempos distópicos como o que vivemos, muitas pessoas tem dificuldades de assistir uma série, ver um filme ou ler um livro recheado de opressão. Contudo, a experiência estética que se pode extrair de obras que já podem ser consideradas clássicas, além dos ensinamentos possíveis que se recolhe do conhecimento e da capacidade de discernir entre a realidade e a ficção, são elementos transcendentais. Por tudo isso, recomendo fortemente aos que não conhecem tais obras, que assim o façam. Nenhum ser humano permanece o mesmo se se depara com histórias de dor, superação e liberdade da vivência de mulheres e homens que lutam por justiça e por um mundo melhor.

[1] ATWOOD, Margaret. O conto da Aia. Rio de Janeiro, Rocco, 2007