No dia 29 de dezembro, o governo do Rio de Janeiro publicou o edital de privatização dos serviços de distribuição da água e de coleta e tratamento de esgoto da CEDAE pelos próximos 35 anos. A proposta de privatização, que já tinha sido aprovada em 2017 na ALERJ, sendo posteriormente suspensa em 2018, volta com toda a força para a pauta do governo.
No edital e na propaganda, o governo abusa dos argumentos que encontram paralelo em diversas privatizações: com a entrega do serviço para a iniciativa privada, esta irá aumentar a disponibilidade do serviço e reduzir o preço. No entanto, as experiências concretas dos casos de privatização dos serviços de água e esgoto no mundo todo mostram uma realidade diferente.
Um estudo do Instituto Transnacional (TNI) mostra que desde 2000 até 2015 houve ao menos 235 casos de reestatização em 37 países, afetando mais de 100 milhões de pessoas. O estudo mostra que reestatizações ocorreram em países europeus, como Itália, Alemanha e França, em países sul americanos como Argentina e Bolívia, mas também nos Estados Unidos, com 58 casos de reestatização do fornecimento de água e saneamento. Não só isso, o estudo mostra, citando uma pesquisa nacional realizada no país em 2012, que somente 6% das cidades dos Estados Unidos até aquele momento tinham entregue sua água e esgoto para empresas privadas.
Os motivos que o estudo fornece para a reestatização são a performance ruim, poucos investimentos na rede de água e esgoto combinado a preços cada vez maiores da conta de água, dificuldades de monitoramento, falta de transparência, cortes na força de trabalho e qualidade ruim. Ou seja, o descumprimento das mesmas promessas que agora estão sendo feitas para privatizar a CEDAE.
Mas não existem só casos internacionais. Em Tocantins (77 municípios) e em Itu também houve reestatizações de concessões de água e esgoto, levando o centro experimental de saneamento ambiental, da UFRJ, a comparar o país com o estudo da TNI e colocá-lo como vice-líder em reestatização da água. O caso do Tocantins é bastante exemplar pois lá foi privatizada a empresa estadual de água e esgoto, com a nova gestão gerando uma insatisfação tão grande que levou o governo a fazer uma nova empresa pública para atender os municípios abandonados pela empresa privatizada.
As privatizações no Rio de Janeiro
No Rio de Janeiro a privatização não é algo novo – Niterói teve o serviço privatizado, sendo concedido para a empresa Águas de Niterói, que utilizou de toda a infraestrutura montada pela CEDAE e o “privilégio” de obter a água da própria CEDAE a preços subsidiados, o que motivou uma disputa judicial que fez com que somente há alguns anos se tenha conseguido voltar a ajustar o preço. O grupo Águas do Brasil é dono também das empresas que exploram os serviços de água e esgoto em Araruama, Saquarema, Silva Jardim, Campos, entre outros.
Aliás, os acionistas majoritários da Águas do Brasil são os mesmos da Carioca Engenharia, que esteve envolvida nas delações premiadas da época da Lava Jato. Ricardo Backheuser, o dono de ambas as empresas, chegou a ser condenado em 2018.
O grupo Águas do Brasil é um dos cinco grupos que, juntos, concentram 85,3% do total de contratos de concessão de água e esgoto, conforme pesquisa revelada pelo Instituto Mais Democracia. A pesquisa mostra também a grande participação de instituições financeiras nas empresas neste setor.
Buscamos mostrar brevemente esses dados para evidenciar que nem a privatização vai permitir o efeito da “livre concorrência”, pois as empresas privadas concentram o mercado, nem os novos atores nesse mercado são tão “novos” assim. Pelo contrário, são os mesmos relacionamentos entre entes públicos e privados que já vimos em outros casos.
A privatização aumentará os preços
Os preços também tendem a aumentar. Isso porque, ainda que o estado controle em muitos casos o reajuste de taxas, ele o faz de tal forma que este fique acima da inflação e do que é praticado pelas empresas estatais. Em 2016, nas cidades onde o abastecimento já estava a cargo da iniciativa privada, os moradores pagavam de 15% a 70% mais caro do que os clientes dos 64 municípios atendidos só pela CEDAE. O cálculo foi feito pelo professor e engenheiro Roberto Moraes, do Instituto Federal Fluminense (IFF), a pedido do jornal EXTRA.
Ainda segundo o engenheiro Roberto Moraes, na mesma matéria, entre 2009 e 2014, por exemplo, a Águas de Paraíba registrou um reajuste acumulado de 61,02%, mas a inflação oficial do período tinha sido de 31,08%.
Como exemplo do que pode ocorrer com a sua conta, vejamos abaixo um quadro comparativo entre as tarifas das principais empresas privatizadas da região e a CEDAE:
O governo alardeia neste processo de privatização que o preço à população será reajustado apenas pela inflação, mas basta ver o contrato que é anexo ao edital para perceber que a inflação não é a “nossa” inflação, IPCA, mas sim um cálculo de índices de mão de obra e custos de produção, calculados pela FGV. Além disso, no contrato de concessão já está previsto a partir do terceiro ano a incidência de um “indicador de desempenho”, que serve como aumento da tarifa a partir do atingimento de metas pela concessionária – ou seja, a promessa do governo tem vida curtíssima. Importante frisar que se esse valor será subsidiado pelo governo ou se irá diretamente para a conta é irrelevante, no sentido de que o contribuinte terá que de toda forma arcar com um aumento na conta acima da inflação.
Inclusive, o modelo de licitação feito pelo governo do RJ mantém a lógica de que a CEDAE fará a captação e tratamento de água, fornecendo a água já tratada para a concessionária realizar a distribuição (além da coleta e tratamento de esgoto). No contrato está previsto o pagamento de R$ 1,7 por m³ de água tratada até o quinto ano, quando ele passa a ser R$ 1,63. No entanto, segundo entrevista do presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Saneamento, Humberto Lemos, ao jornal O Globo, o custo de produção na Estação de Tratamento do Guandu fica entre R$ 1,80 e R$ 2 por m³. Ou seja, o subsídio que a CEDAE deu à Águas de Niterói (que foi atenuado pela ação judicial) agora vai existir também para a vencedora da licitação. Até que se torne impraticável e privatizemos o que sobrou da CEDAE.
Saneamento básico como proteção a doenças
Existe uma última dimensão sobre a importância do saneamento básico ser público que ainda não foi tratada apesar de ser de grande importância, que é a saúde pública e a qualidade de vida da população.
Sobre a qualidade de vida, não é difícil entendermos: afinal, ter distribuição de saneamento básico deveria ser algo garantido para todos. No entanto, segundo dados oficiais do SNIS – Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 35,6% da população do estado do Rio de Janeiro não tem atendimento com rede de esgoto. Esse número contrasta com o número de pessoas atendidas com atendimento à rede de água, bem maior – 92,9%.
Os pesquisadores Lucas Oliveira, Paulo Sérgio Ferreira e Amilton Scavassini em um artigo sobre a importância do saneamento para erradicação de doenças observam que é possível traçar uma correlação entre o aumento da cobertura dos serviços de saneamento básico e a melhoria das condições de saúde, econômicas e ambientais da população. Segundo o Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS, citando dados da OMS, a falta de saneamento responde por uma alta proporção das doenças no mundo, representando 2 milhões das mortes e 120 milhões das doenças preveníveis em todo o mundo. Crianças com menos de cinco anos são desproporcionalmente atingidas: 13% de todas as mortes e 12% das doenças nessa faixa etária estão relacionadas ao saneamento precário.
Para garantir o atendimento, a coleta e tratamento de esgoto para todos e nos permitir avançar na saúde coletiva é preciso que o governo continue controlando esse setor. A privatização irá privilegiar áreas de maior “retorno”, mantendo os marginalizados com atendimento precário ou sem atendimento. O exemplo do Tocantins, citado acima, mostra isso. Outro exemplo, da já citada pesquisa do Instituto Mais Democracia, é o exemplo da Zona Oeste do Rio de janeiro, da empresa concessionária de esgoto Zona Oeste Mais Saneamento, controlada pela Saab e BRK. Seus investimentos excluem favelas não urbanizadas. Lá, quase a metade da meta de ampliação da rede nos primeiros cinco anos de contrato (2012-2017) foi executada pela prefeitura (228 km ante 500 km no total).
Defender o direito à água é lutar contra a privatização
O debate de privatização da CEDAE não é simples, e não significa que hoje a empresa tem a qualidade que precisamos. É necessário, sim, que o governo invista para que ela se torne tudo o que pode ser, e avance no saneamento da população do Rio de Janeiro. No entanto a privatização não irá resolver nosso problema, e tende a criar novos problemas como o aumento da tarifa, negociatas entre poder público e privado, redução do atendimento e da qualidade, entre outros. Enfim, privatizar significa negar o acesso à água enquanto direito público e universal, por isso processos de reestatização são cada vez mais comuns.
Defender a CEDAE é crucial para que possamos ter uma ferramenta capaz de fornecer qualidade de vida para a população mais pobre e prevenir doenças decorrentes do saneamento. Por isso lançamos o chamado: divulgue a informação e vamos juntos lutar por investimentos para a CEDAE, contra a privatização e pela democratização da sua gestão construindo conselho de trabalhadores e usuários!
* presidente do Sindagua
** Diretora do Sindipetro RJ e FNP
*** Diretor do Sindipetro RJ
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