O capitalismo de mônadas: notas sobre a nossa subjetividade pandêmica

Edward Munch

Munchmuseet Aften på Karl Johan (1891)

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

O isolamento social, derivado das condições pandêmicas, acentuou, por suposto, as práticas e subjetividades solitárias. Graças a um nível extremo de cooperação social do trabalho, vivo e morto, os indivíduos em isolamento podem, muitas vezes solitariamente, e nos horários que bem desejarem, desfrutar das diversificadas, embora oligopolizadas, programações dos streamings, a mais nova tendência da indústria cultural, e que parece corresponder plenamente às – e ao mesmo tempo formatar  as-– nossas subjetividades. Ocorre que o isolamento pandêmico não fez senão deslindar e agravar um processo social que o antecede, no qual uma integração cada vez maior das forças sociais criativas sob o comando do capital produz, dialeticamente, vidas, relações e subjetividades cada vez mais desintegradas e dilaceradas.

A universalização cada vez maior das potências sociais, das forças intelectuais e criativas, gera progressivamente um maior particularismo dos sujeitos nela envolvidos. Exacerba-se, assim, a hobbesiana dimensão do homem da sociedade burguesa, do indivíduo atomizado e subjetivamente distanciado e mesmo oposto aos seus pares genéricos.  A fantástica reunião cosmopolita de tecnologias operadas pelas grandes plataformas que possibilita receber em casa, e rápido, um alimento que amalgama ingredientes produzidos nos quatro cantos do planeta traz na ponta – naquele que traz – o jovem trabalhador semialfabetizado, sem direitos e sem vínculos, que literalmente pedala e se arrisca entre os carros para comer, e o faz de um modo individual, com quase ou nenhuma cooperação, união e comunhão com seu igual, com o outro ciclista, com o qual parece então não possuir mais do que a “semelhança muda” das ostras de Feuerbach.

A hegeliana razão segue dando as caras, segue produzindo uma universalidade totalizante a partir de múltiplas e particulares ações de indivíduos sem consciência do processo no qual agem, só que agora, já sem sua astúcia de outrora (“a astúcia da razão”), os frutos dessa universalidade racional expressam limpidamente a irracionalidade do capital. Os frutos estão podres, e já não há mais, como nos tempos de antanho, um progresso histórico do todo que possa vir a justificar as “tragédias” individuais e coletivas, como o “rebaixamento da humanidade” em termos afetivos, culturais e da relação com a natureza. Agora, da “tragédia no ético” que Hegel vislumbrou ao investigar a aurora do capitalismo parece ter sobrado apenas a tragédia, individual e coletiva, desprovida de qualquer progresso, de qualquer eticidade à escala universal. Se a História já foi, como certa feita assinalou Engels, “a mais cruel de todas as deusas” pois costumava guiar “seu carro triunfal sobre montanha de cadáveres não apenas na guerra, mas também durante o ‘pacífico’ desenvolvimento econômico”, no mundo pandêmico e ultraneoliberal, onde parecem se suceder acontecimentos sem história, restam apenas as guerras, os vírus e os cadáveres, cuja montanha arranha um céu que já foi azul, mas agora é cinza. E, infelizmente, como pontuou o mesmo Engels, “nós, homens e mulheres, somos tão ineptos que não conseguimos encontrar a coragem necessária para realizar progressos dignos desse nome, a não ser quando somos levamos a isso por dores que nos parecem quase incomensuráveis”. Mas será que tudo ainda pode ser mais doloroso? – convém perguntar.

A verdade segue estando no todo, mas este, vetusto, envilecido e decadente, produz cada vez mais sujeitos particularistas, atomizados e egoístas, cuja ações, nada astutamente, conduzem cegamente ao apocalíptico fim do todo. “Não te matarão mais, por já seres cadáver”, escreveu Rimbaud. Os sujeitos seguem fazendo sem saber que fazem, é verdade, só que agora, quando a universalidade burguesa mórbida faz grassar um individualismo quase solipsista, a imensa maioria deles, confinados ou não, já não querem nem saber, pois agora lá fora (das redes, das suas casas) todo mundo é uma ilha. Aglomerados em praias ou festas, ou isolados cada qual em seu apartamento e seu smartphone, a solidariedade e o espirito de coletividade já não passam de máscaras de um individualismo fóbico que vertebra a subjetividade ultraneoliberal, sobretudo daqueles que se recusam a usar máscaras em espaços públicos. Se, quando agrupadas num saco, batatas não são mais do que batatas num saco de batatas – “simples adição de grandezas homólogas”, disse Marx –, pouca diferença faz agora, do ponto de vista de uma consciência coletiva, se nossos indivíduos leguminosos optam por se isolar ou por se encontrar nos sacos de um espaço urbano em ruínas. Se para o velho liberalismo contratualista a conformação da sociedade implicava uma dolorosa, porém necessária, redução dos indivíduos, os quais abdicavam de parte ou da totalidade de seus poderes naturais em nome da segurança e bem estar a serem garantidos pelo Estado, para o ultraneoliberalismo é a própria sociedade que aparece como um fardo quase desnecessário que os indivíduos “competentes” têm que carregar, e o Estado, para estes, deve existir apenas para massacrar os “incompetentes” e garantir as regras políticas e as condições sociais que fazem a fortuna dos primeiros e as covas dos últimos. Assim, se o universalismo do Estado capitalista sempre foi abstrato, ainda que uma abstração jurídico-política necessária para que outra abstração, a do trabalho, pudesse ser efetivada e produzir valor, hoje é como se até mesmo a formalidade abstrata do Estado, seu universalismo formal (cidadania), devesse ser dispensado para que, sem esse inconveniente e não mais necessário disfarce, ele pudesse melhor funcionar como o que é e sempre foi, um Estado de classe. A agenda de contrarreformas e austeridade não pretende senão continuar o baile, só que agora, parafraseando Florestan Fernandes, sem máscaras, tal qual na festa da vitória de Arthur Lira, semana passada.

“Não creio no inferno, pois estou nele”, disse aquele mesmo poeta maldito, amante de Verlaine. No Brasil, durante a pandemia, a intensificação dos serviços uberizados de entrega de comida coincide, sordidamente, com o aumento da fome no país, como que em um exemplo dramático do desenvolvimento desigual e combinado no país em um momento histórico universal no qual as contradições entre o avanço das forças produtivas e as relações de produção, entre uma produção social cada vez mais coletiva e a apropriação cada vez mais privada da riqueza, parece atingir seu fastígio. Em um país sob a égide de um neofascismo capitaneado por lumpens genocidas, a dialética entre o universal e o particular assume novas e tétricas formas, levando ao paroxismo as mazelas de capitalismo periférico e declinante cujo odor pútrido vem junto com a água encanada no Rio de Janeiro.

Em meio à fumaça, violência, vírus e caos, a vida da sociedade brasileira caminha, célere, para se tornar “a vida do que está morto movendo-se dentro de si mesma”, nas palavras do então jovem Hegel quando alinhavava a temática da alienação. O automatismo, a rotina, a cotidianidade vazia de vida e cheia de morte exerce uma força de atração sobre os cidadãos médios tal qual a Terra – redonda, claro – sobre os corpos que adentram seu campo gravitacional. A mesmice, a ignorância, o imediatismo, o pragmatismo, a vontade de “fazer” e o medo de ler, o individualismo em massa, o particularismo em geral, o espírito gregário carente de espírito comunitário, tudo isso parece prevalecer sobre a razão, a ciência e o coração em um país que há muito parece desprovido de um, tamanha a insensibilidade e irracionalidade de sua classe dominante. Temos, assim, nas ruas, “cegos guiados por cegos”, como consta nas escrituras. Talvez resida aí a maior vitória ideológica do bolsonarismo, que é a de elevar ao poder e, por conseguinte, espraiar no povo, por meio de uma guerra cultural inclemente, a subjetividade tacanha do “cidadão de bem” decadente.

Pari passu ao avanço no país das pesquisas e da possibilidade de produção das vacinas para a covid-19, cresce o número de mortes causados pela doença e o abandono de quaisquer pudores em se realizar aglomerações sociais. Destarte, a negação do isolamento por parte dos indivíduos, suposta ruptura prática com a postura solitária e misantropa, longe de exprimir algum retorno consciente à universalidade, à vida comunitária, acaba por, do contrário, se converter no auge do individualismo, na medida em que o risco individual que a postura “corajosa” encerra é diretamente responsável pela proliferação do vírus para seus pares sociais, cada vez mais tomados como ímpares. Em um país distópico, os empreendedores de si mesmos, sem emprego e futuro à vista, preocupam-se uns com os outros tal qual os personagens de Mad Max, e a coesão social que o neopentecostalismo pode oferecer a um mundo sem coração não passa de um coração fragmentado, inorgânico, odioso e miliciano.