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COLUNISTAS

André Ventura é o ‘Bolsonaro’ português?

As eleições presidenciais portuguesas vistas por um imigrante brasileiro, recém chegado

André Freire, direto de Lisboa

As pessoas mais próximas já sabem que estou a viver em Lisboa, desde outubro de 2020. E, está nova morada, me possibilitou acompanhar mais de perto as eleições presidenciais portuguesas, que acabaram de acontecer, no dia 24 de janeiro. Estou a pouquíssimo tempo no país, o que me impede de ter uma visão razoavelmente séria sobre o cenário político português, digna de ser apresentada num artigo, mesmo que breve.

Mas, a evolução dos acontecimentos e os resultados do referido processo eleitoral me levaram a fazer reflexões acerca de possíveis analogias em relação aos acontecimentos políticos brasileiros dos últimos anos e os que vieram à tona neste país europeu, mais recentemente.

É sempre bom marcar, desde o início, a noção que tenho sobre os perigos do uso abusivo de analogias sobre a política de países tão distintos, unidos atualmente, mais fortemente, apenas pelo idioma.

Para começo de conversa, o próprio sistema político dos países são bem distintos. No Brasil, se consolidou um sistema presidencialista (embora o congresso nacional tenha ganho muito peso de decisão, sobretudo nos últimos anos) e em Portugal existe um sistema parlamentarista bem consolidado.

Esta diferença é deveras relevante. Pois, por exemplo, não dá as eleições presidenciais o mesmo peso de importância em Portugal do que elas possuem no Brasil.

Em Portugal, o voto não é obrigatório, o que normalmente amplia a abstenção, ainda mais em tempos difíceis da pandemia da Covid-19 e da vigência de medidas sanitárias e de restrição de circulação.

No país da Península Ibérica existe um governo do Partido Socialista (PS), que podemos considerar – superficial e criticamente – de centro-esquerda, e no Brasil persiste o governo de extrema direita do neofascista Bolsonaro.

Em Portugal, os candidatos presidenciais se apresentam de forma pessoal a Justiça Eleitoral, os partidos podem apoiar estes candidatos, mas existem também candidatos que não são apoiados por partidos e concorrem de forma independente ou semi independente. Este fator torna a campanha ainda mais personalista. Enfim, são muitas diferenças que separam os dois países, sobretudo no campo da política institucional.

Entretanto, alguns elementos políticos merecem sim uma comparação e uma reflexão mais apurada. O que pretendo fazer neste texto. Nem que seja para entender as possíveis diferenças e semelhanças e, principalmente, sacar algumas conclusões políticas significativas para quem participa da luta política numa perspectiva anticapitalista.

A reeleição de Marcelo e a política do PS

As eleições presidenciais portuguesas terminaram com a reeleição do atual presidente, Marcelo Ribeiro de Sousa, na primeira volta, com cerca de 60% dos votos válidos.

Marcelo é um político da direita tradicional portuguesa, filiado ao PSD (Partido Social Democrata), que a muitos anos já aderiu a agenda neoliberal e da política de austeridade da Troika. Ele gosta de se apresentar como de centro, “o presidente de todos os portugueses”, mantendo uma relação de colaboração com o atual Primeiro-Ministro (PM), Antônio Costa, do PS.

Esta aliança tácita, provocou uma situação curiosa, mas que já aconteceu outras vezes na política portuguesa. O PS mesmo sendo o partido que governa, afinal é o maior partido no parlamento e constituiu uma “maioria” frágil, abdicou de apresentar um candidato a Presidente da República. Embora uma Eurodeputada do próprio PS, Ana Gomes, fosse também candidata presidencial.

A cúpula do PS liberou seus parlamentares, dirigentes e filiados a apoiarem o candidato que entendessem ser o melhor. Enquanto, na verdade, o PM Antônio Costa e a maioria da direção do PS trabalhavam pela reeleição de Marcelo, fato tranquilamente comprovado durante a campanha eleitoral e numa análise rápida sobre os resultados eleitorais.

Ana Gomes obteve cerca de 13% dos votos válidos, chegando em segundo lugar, enquanto as sondagens (pesquisas) para as próximas eleições legislativas (as que mais importam, pois formam governo), o PS chega a aparecer com 39% de intenções de voto. Ou seja, a maioria deste eleitorado que ainda acompanha o PS e seu governo, votou em Marcelo – mesmo ele sendo um filiado ao PSD, principal partido de posição de direita em Portugal.

Mais do que idiossincrasias portuguesas, este elemento revela de fato o acordo político de governo entre Antônio Costa e Marcelo, celebrado na imprensa como a força do centro político.

A candidatura de Ana Gomes acabou servindo menos como uma representação do PS nas presidenciais e mais como um dique de contensão regressivo para o crescimento eleitoral das candidaturas à esquerda – dos também eurodeputados João Ferreira, do Partido Comunista Português (PCP), e Marisa Matias, do Bloco de Esquerda (BE).

O crescimento de André Ventura

Mas, apesar da reeleição em primeira volta de Marcelo, sem dúvida, o principal fato político destas eleições foi o crescimento de André Ventura, deputado do Chega, partido de extrema direita neofascista em Portugal.

O Chega elegeu apenas um deputado nacional nas últimas legislativas, o próprio Ventura, não chegando a obter 2% dos votos. Agora, nas presidenciais, Ventura chegou em terceiro lugar, com cerca de 12% dos votos (quase meio milhão de votos) e o Chega já aparece com 9% em algumas sondagens (pesquisas) para as próximas eleições legislativas. Ameaçando ocupar a posição de terceira força política nacional, lugar até então ocupado pelo BE.

O discurso ultra reacionário, racista, machista, lgbtfóbico, xenófobo e mentiroso de Ventura polarizou a maior parte da campanha presidencial. Repetindo os fenómenos de extrema direita que ocorreram em várias partes do mundo. Por isso, considero justo chamar o Ventura de projeto de “Bolsonaro” em Portugal.

Não é mera coincidência, inclusive, os apoios recebidos por Ventura vindos de outros famigerados políticos de extrema direita europeia, como italiano Salvini (Liga) e a francesa Marie Le Pen (Frente Nacional). Está última, chegou realizar atividades de apoio a Ventura em solo português, fato que foi combatido e repudiado por uma importante manifestação antifascista em Lisboa, no dia que Le Pen estava no país.

No seu discurso de encerramento, Ventura cravou, com ares de vitorioso: “não há um novo governo de direita em Portugal sem o Chega”. Muito se apoiando num acordo construído recentemente nos Açores, que levou a um governo regional chefiado pelo PSD, em acordo político com o Chega. Ou seja, direita tradicional e extrema direita abertamente num acordo de governo, ainda que regionalmente.

A ascensão de Ventura e do Chega não se compara em grau de intensidade as ondas ultra-reacionárias que levaram ao governo Trump nos EUA (2016) e Bolsonaro no Brasil (2018). Mas, evidentemente é motivo de justíssima preocupação da esquerda e dos movimentos sociais portugueses. Ou, pelo menos, deveriam ser. Afinal, ninguém em sã consciência quer um “tipo” como Bolsonaro governando ou co-governando Portugal.

Um crescimento ainda maior do Chega nas próximas eleições legislativas e a possibilidade de um novo governo de direita, com a participação – de alguma forma – de André Ventura e do Chega, seria um dura derrota para o conjunto dos trabalhadores portugueses, especialmente para os imigrantes, os negros e negras, as mulheres e a população LGBTQI.

Mas, esta terrível possibilidade não é inexorável. A última palavra ainda não foi dada. E ela virá das ruas, das lutas em defesa dos direitos sociais e democráticos.

Enfrentar a extrema direita, apresentando uma saída pela esquerda

Portanto, a mais importante analogia política entre Brasil e Portugal atualmente é a centralidade da tarefa de derrotarmos a extrema direita e seu projeto ultra recionário de destruição dos diretos sociais e democráticos.

No Brasil, essa tarefa consiste prioritariamente em derrubar, o quanto antes, o governo do neofascista Bolsonaro. E, em Portugal, evitar a hipótese de um novo governo de direita aliada a extrema direita neofascista, que ataque ainda mais os trabalhadores, sobretudo suas parcelas mais exploradas e oprimidas.

Neste sentido, não custa lembrar que na esquerda brasileira existiram aqueles setores que durante os anos de 2017 e 2018 (até mesmo na campanha do primeiro turno das eleições presidenciais) relevavam a segundo plano ou mesmo ignoravam a importância do combate prioritário a Bolsonaro. Se combate a extrema direita combatendo-a frontalmente, e não a ignorando sua existência. Este exemplo brasileiro, talvez seja útil também para esquerda portuguesa.

Entretanto, segue sendo também fundamental, e ainda mais importante na grave crise ambiental, sanitária, económica e social que vivemos, a afirmação de uma alternativa política e programática de esquerda e anticapitalista.

Afinal, seja a direita tradicional, dita liberal, ou mesmo a chamada centro-esquerda, não representam sequer um oposição minimamente consequente ao projeto ultra reacionário da extrema direita. Não são iguais, afinal defendem regimes políticos diferentes. Mas, estão comprometidos em essência com o mesmo projeto econômico de ataques aos direitos sociais dos 99%, buscando a atender sempre os interesses e privilégios das grandes empresas, bancos e dos 1% super ricos.

Portanto, a defesa de distintos regimes políticos, não transformam a direita liberal numa alternativa política que deva ser abraçada pelos trabalhadores para derrotar a extrema direita. Justo ao contrário.

A grave crise que vivemos, deve ser compreendido pela esquerda e pelos movimentos sociais como um momento fundamental para a apresentação de sua saída política e programática, sem negar a possibilidade de unidades em ações concretas com todos os setores que se oponham de fato a extrema direita.

Portanto, acerta PSOL no Brasil quando centra seu combate na luta pelo Fora Bolsonaro, sem deixar de apresentar a candidatura de Guilherme Boulos a Prefeitura de SP ou quando lança a agora a candidatura de Luiza Erundina no primeiro turno das eleições para a presidência da Câmara dos Deputados, para ficar apenas em dois exemplos bem recentes.

Ou, em Portugal, acerta o BE, quando transformou sua campanha presidencial, através da candidatura de Maria Matias, numa das trincheiras de combate a Ventura e ao Chega, sem deixar de apontar os evidentes limites do atual governo do PS no combate a pandemia a grave crise social, que se intensifica a cada dia. Política expressa, por exemplo, no voto contrário dos deputados do BE em relação ao insuficiente Orçamento de Estado para 2021, apresentado pelo atual governo.

Se esconder atrás da direita liberal ou de governos de conciliação de classes, nada ajudam no combate concreto a extrema direita. Nada de baixarmos nossas bandeiras e propostas. Nossa saída deve ser construída a partir de uma frente única composta pela esquerda e pelos movimentos sociais, pelos 99%.

O momento exige da esquerda um forte comprometimento e conexão com os movimentos sociais da classes trabalhadora, sobretudo dos seus setores mais oprimidos e explorados (negros e negras, mulheres LGBTQI e imigrantes) e a ousadia de apresentar uma saída política e programática radicalmente contra a extrema direita, mas que seja também distinta e demarcada das várias alternativas da direita liberal, e também dos que capitulam a ela, principalmente quando chegam ao governo.

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