O mundo todo viu, o Capitólio foi invadido. Na verdade, o mundo continua vendo, todos os dias, pelos vídeos do YouTube, as mesmas cenas se repetindo. Porém, o que se revela por detrás das cenas vem se repetindo não apenas durante os últimos dias de 2021. Perdura há mais de 150 anos.
A invasão do Congresso norte americano é o mais recente reflexo da raiva e da violência que perduram e se repetem, geradas pela parte mais retrógrada e atrasada dos capitalistas, os reacionários que expressam seu desprezo pela clássica democracia burguesa, aspirando um retorno ao período histórico onde o Congresso representava e defendia abertamente a supremacia branca escravagista na América do Norte e seu modo de produção.
A Guerra Civil dos EUA, também conhecida como Guerra de Secessão, apesar de ter abolido a escravidão, abriu caminho ao desenvolvimento do capitalismo baseado na escravidão assalariada e, portanto, não conseguiu resolver os problemas da maioria da população na sociedade norte americana. O atraso se combina e se expressa ao lado do avanço capitalista que, pelo esgotamento de sua capacidade de resolver os mais agudos problemas da humanidade, vive em permanente choque com a reação e as forças que desejam se libertar.
A população negra continua oprimida e excluída e os defensores da supremacia branca, apesar de derrotados no período revolucionário da Guerra Civil, ainda encontram canais de expressão para suas aspirações supremacistas e seu moralismo conservador. Atualmente encontraram uma válvula de escape na representação oferecida pelo presidente Trump. Essa extrema direita continua tendo oxigênio para sobreviver e, de tempos em tempos, mostrar sua cara. O dia 6 de janeiro foi um desses momentos, e o Congresso dos EUA, sustentado como símbolo da democracia participativa, foi palco da demonstração do desprezo da direita americana pela democracia burguesa, quando esta não representa suas identidades ou ideologias. Esses reflexos supremacistas continuarão assombrando a sociedade e desafiando a democracia burguesa enquanto não forem enterradas de uma vez por todas pelo movimento da classe trabalhadora, fundamentada na luta dos negros que já venceram uma vez enquanto lutavam ao lado dos capitalistas contra os escravagistas. Porém após anos de experiência no capitalismo, muitos se mostram dispostos a avançar de modo independente pela defesa de suas vidas e por um lugar digno na sociedade que construíram, pois o capitalismo e sua democracia burguesa nem ao menos cumpriu o pagamento de uma mula e quarenta acres aos que foram escravizados, como prometido ao final da Guerra Civil.
A extrema direita
Entre os seguidores de Trump da extrema direita que invadiram o Capitólio, estavam representantes de milícias saudosos da primeira revolução dos EUA, defendem com unhas e dentes a posse de armas e o direito de não pagar impostos ao governo, além de adeptos dos movimentos QAnon, Blue Lives Matter e Proud Boys. A manifestação foi incitada por Trump através das redes sociais, marcada para o dia em que se consolidava a vitória do Partido Democrata sobre os Republicanos na presidência, e com maioria no Congresso.
Durante o período após as eleições, o presidente Trump se agarrou ao poder com unhas e dentes. Tentou de tudo para manter sua posição de comandante chefe da maior artilharia de guerra do mundo. Trump tentou usar todas as ferramentas possíveis para evitar sua derrota, desde as mídias sociais até o poder judiciário. Não funcionou, o Colégio Eleitoral garantiu a vitória do democrata assim como o controle do senado. Seu último ato simbólico, antes de conceder a transição, foi a convocação dessa manifestação que deixou claro que, apesar do governo de Trump ter chegado ao fim, este capítulo da história dos Estados Unidos ainda está sendo escrito. A supremacia branca é personagem deste capítulo, às vezes coadjuvante, às vezes protagonista de cenas violentas, e continuarão aterrorizando a sociedade com atos violentos individuais, como normalmente fazem, e às vezes em grupo, como a invasão do Capitólio.
A entrada dos manifestantes de direita no Congresso não é representativa de sua força ou dos números de manifestantes. O ato contou com a permissão, e pode-se dizer até com a colaboração das forças de segurança. É possível ver vários vídeos onde a polícia dá passagem aos manifestantes e muitos membros de algum setor das forças armadas dos EUA, fora do trabalho, também participaram, e alguns estão entre as pessoas que foram atingidas e mortas durante a invasão.
Apesar de haver anseios por uma representação organizada, a tentativa de criação de um partido de cunho fascista, como o Partido Patriota, não tem ainda uma expressão que apresente uma ameaça real com liderança e organização. Depois do ato no Capitólio, até mesmo o aplicativo Parle, que a direita utilizava para sua comunicação, foi banida dos canais de comercialização como o Google Store e está a ponto de falir. Mesmo assim, os supremacistas não estão completamente derrotados com a vitória de Biden. Trump recentemente declarou sua intenção em se dedicar a construção desse novo partido de direita, após sua saída do cargo de presidente. E mais importante é que não se pode descartar o crescimento de atos violentos no atual terreno de crise capitalista com perspectiva de austeridade. Enquanto escrevo este artigo não estamos nem na metade de janeiro e já houve mais de 15 atentados em locais públicos nos EUA. No entanto, a invasão do Capitólio foi apenas mais uma cena deste espetáculo onde as instituições burguesas norte americanas revelaram para o mundo a fraqueza de suas suturas, que foram feitas para remendar as lesões adquiridas quando os EUA dividiram-se pela última vez em dois grandes campos que se enfrentaram na sua Guerra Civil. E de tempos em tempos, sangram.
Colégio eleitoral, um compromisso da Guerra Civil
O dia 6 de janeiro foi escolhido para o ato na capital porque nesse dia consolidava-se o controle do Executivo e do Congresso nas mãos de um partido só, o Democrata. Isso não é novidade. Obama em seu primeiro mandato ocupou a mesma posição e ainda assim não proporcionou nenhuma medida de melhoria fundamental na vida dos trabalhadores norte americanos. Porém, o Colégio Eleitoral é um compromisso histórico entre os Estados do Norte e do Sul após a Guerra Civil. A população de cidadãos dos Estados do norte era maior que a do sul antes da libertação dos homens e mulheres negras escravizadas, porém, contando com as novas pessoas livres, os Estados do sul teriam muito mais peso no Congresso. Daí saiu a lei dos três quintos que foi adicionada à Constituição, onde os negros contavam como apenas ⅗ de uma pessoa branca para definir o número de delegados ao colégio eleitoral que cada estado teria como representação na escolha da Presidência e dos congressistas. E como os negros ainda não poderiam votar, sua existência era apenas para dar maior peso aos fazendeiros brancos dos Estados derrotados no sul. Portanto, o colégio eleitoral nos EUA representa o compromisso entre a classe dominante dos estados capitalistas da União e a classe dominante dos estados escravagistas Confederados.
Apesar dessa camaradagem, esses dois campos estão constantemente em uma guerra ideológica de valores. De um lado, a ideologia liberal com valores da democracia burguesa com seu individualismo extremo e a imagem do self-made man, autossuficiente, empreendedor, que defende a ideologia de “ensinar a pescar”. Toda essa retórica serviu (e ainda serve) para garantir proteções do Estado aos capitalistas, ao mesmo tempo em que não dava nenhuma reparação às pessoas que tinham sido escravizadas. Por outro lado, a ideologia conservadora com ilusões da superioridade branca, de linhagem europeia, com direito ao território, pois “eles civilizaram” (leia-se cometeram genocídio) e construíram o país, e têm o direito de submeter indígenas e afro-americanos, além de acreditarem que precisam defender o território contra “novos invasores e criminosos” do México, como se os mexicanos estivessem tentando coloniza-los e sufocar suas identidades culturais, e não o contrário.
Em resumo, a União representada pelos estados do Norte defendia o capitalismo baseado na escravidão assalariada e saiu vitoriosa da Guerra Civil contra os Estados Confederados do sul, que defendiam a escravidão. A rivalidade entre democratas e republicanos e as contradições na sociedade norte-americana apresenta resíduos dessas disputas ideológicas que se enfrentaram em sua última revolução.
Em tempos de intensificação da luta de classes, ocorrem atos que buscam a consolidação das ideologias representadas pelos Estados do Norte capitalista e do Sul escravagista. Mas além desses dois campos, a população negra trava uma luta contínua pelo seu próprio direito de existir dignamente nos EUA apesar desses dois campos os excluírem. Os defensores da ideologia conservadora toleram os defensores da ideologia liberal, porém ficam enlouquecidos a cada avanço da luta dos negros, pois a vitória deles significa a derrota total de seus ideais supremacistas.
Movimento dos Direitos Civis
Apesar de vários episódios de enfrentamento, o maior ato após a Guerra Civil foi orquestrado pela população negra. O movimento dos direitos civis foi a maior batalha, resultado das contradições de que a população negra ainda continuava como cidadãos de segunda classe, vivendo sob a Lei Jim Crow, também resultado dos acordos de camaradagem entre a União e os Confederados. Ambas as partes não se opuseram em implantar um sistema de exclusão sistemática da população negra sem direito às mínimas condições de dignidade humanas, como habitação, educação ou trabalho, ainda que livres.
Nessa ocasião, quando o movimento começava a tomar forma de luta de classes com solidariedade internacional, unida pelo exemplo da barbárie imperialista no Vietnã, a repressão com a criação da CIA e a destruição sistemática das comunidades de resistência negra calou as vozes mais revolucionárias e reforçou o forte estado de “lei e ordem”. Claro que, para evitar uma revolução, e pela forte luta dos negros e negras americanos, era necessário atender a certas demandas e foi neste momento, por exemplo, que a lei Jim Crow foi derrubada e o direito ao voto e à educação foram conquistados.
Mais uma vez, os capitalistas tentam ludibriar a causa dos negros em seu favor ao tentar cooptar a figura de MLK {Martin Luther King Jr] como um pacificador ao invés de um ardente líder por direitos humanos e apagando qualquer referência aos Panteras Negras que tinham organizações de autodefesa de suas comunidades e vários programas sociais que poderiam representar um modelo real e possível ao sistema capitalista. Até hoje, a cada manifestação do BLM, há vários que tentam usar palavras de MLK como lição de moral contra as manifestações, sugerindo que os manifestantes usem métodos pacíficos, como o voto para mudar o governo.
Liberais e conservadores apoiam-se uns aos outros quando necessário para garantir seus privilégios. Para reprimir as manifestações do BLM, toda força armada é mobilizada. A ideologia dominante entre o braço armado do Estado é a supremacista, que participou da invasão do Congresso. Aliás, a existência das forças armadas é basicamente sustentada pelo racismo. Como seria possível invadir países na América do Sul e no Oriente Médio e reprimir as comunidades negras e árabes em favor da gentrificação e especulação imobiliária se os policiais e militares vissem os oprimidos como irmãos ou até mesmo como humanos? Simplesmente não seria possível. Logo, a classe capitalista necessita da ideologia supremacista amplamente infiltrada nas forças armadas para sua sobrevivência e defesa de seus interesses.
Ao mesmo tempo em que a cada eleição tenta se mostrar antirracista para garantir votos dos mais oprimidos apelando para a opção “o outro lado é pior” para manterem-se no poder. Obviamente que quando estão no poder, como Biden agora e Obama anteriormente não usa o aparato do estado para melhorar as condições de vida dos trabalhadores, especialmente dos mais oprimidos. Logo, perdem o poder e assim por diante. Deste processo chegamos ao Trump e à invasão do Capitólio.
Este ciclo vicioso deve ser quebrado. Por enquanto, a batalha entre o direito do povo historicamente escravizado à participação equitativa na sociedade e os supremacistas brancos é um ritual que está subentendido em vários momentos na luta de classe nos Estados Unidos e tem expressão, inclusive a cada eleição, mas não somente nessa ocasião. A democracia capitalista tida como ideal para a classe dominante está vestida de “participativa” por fora enquanto mantém, financia e acoberta a ideologia da supremacia branca por dentro. Essa parceria não fica só na ideologia, o método de livre mercado é leniente e garante, por exemplo, recursos públicos a latifundiários que são subsidiados pelo governo.
Apesar deste contrato, desde a Guerra Civil um lado tenta consolidar suas ideologias e seus interesses sobre o outro lado. Os seguidores de Trump representam a contrarrevolução, que aspira voltar ao tempo de privilégio incontestável, onde a palavra do homem branco vale mais que a vida de homens e mulheres negras. Sem essa demente superioridade, o que resta? É triste a cegueira dessa parcela da população norte-americana que depende da superioridade sobre outros seres humanos para validar a si mesmos.
Alguns ativistas do movimento antirracista entendem esses fenômenos como “salário psicológico da branquitude”. É uma pena que o sentido mais radical de liberdade no capitalismo ainda seja um “salário”. A próxima revolução virá para quebrar esse ciclo e desmistificar essas ideologias atrasadas. A nova revolução virá possibilitando a cada ser humano explorar o significado do que é ser livre. Quando? Ainda não sabemos. Mas virá.
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