“Que saudades da professorinha
Que me ensinou o beabá.”
Meus tempos de criança (Ataulfo Alves)
Há décadas, o ótimo artista brasileiro Ataulfo Alves compôs a música “Meus tempos de criança”. Os versos acima pertencem à canção gravada em 1956. Ataulfo sabia do que falava. Sabia da importância da carinhosamente chamada “professorinha”. Quando criança e adolescente em Minas, trabalhou como lavrador, engraxate, marceneiro para ajudar a sustentar a família. Mais tarde, foi ajudante de farmácia já no Rio de Janeiro. Ele, como a maioria das crianças pobres brasileiras, teve pouco acesso à escola. Mesmo assim tornou-se um dos maiores compositores da história da nossa música com a ajuda da professora que lhe ensinou o beabá. E prestou singela homenagem a ela.
Lembrei-me dessa música e da história de seu compositor ao me deparar com várias matérias na imprensa recentemente. Há uma campanha em curso. Tem muito espaço na mídia e vários porta-vozes. Tem o apoio do Governo Federal e também de governos estaduais, a começar por João Dória. É a campanha exigindo a volta às aulas imediatamente.
Um movimento autointitulado “Escolas Abertas” está à frente dela. Entraram com ação judicial em São Paulo para exigir a reabertura imediata das escolas privadas e públicas. Cerca de 22 pessoas assinaram ação. Quinze mulheres e sete homens. A ampla maioria formada por mulheres empresárias residentes em bairros como Cidade Jardim, Jardim Paulista. Várias com sua prole em algumas das principais escolas da elite paulistana, inclusive na Saint Paul School, na qual estão matriculados os filhos de Dória. Detalhe: valor da mensalidade de 7 a 8 mil reais.
Entre seus componentes estão uma herdeira do banco Itaú, um ex- dono do Banco Cruzeiro do Sul e Ilona Becskeházy, ex-diretora executiva da Fundação Lemann, que foi secretária de educação básica no MEC do governo Bolsonaro durante a gestão do “ultra-democrata” Abraham Weintraub. São bem atuantes nas redes sociais e a imprensa lhes dá muito destaque. Engraçado que se intitularam representantes não só de todos os pais das escolas privadas, mas, pasmem, também das escolas públicas. Isso está virando moda, cara de pau não tem limites.
Levantam dois argumentos: o primeiro é que crianças e adolescentes não transmitem o vírus como os adultos; o segundo, crianças e adolescentes vêm adoecendo por falta de escola. Portanto o custo de escolas fechadas seria maior do que escolas abertas. Rossieli Soares da Silva, secretário de educação do governo de São Paulo, tem sido uma das estrelas dos vídeos do seu site. Uma excelente matéria escrita pelas professoras Ingrid Ribeiro, Ana Paula Corti e pelo professor Fernando Cássio publicada na Carta Capital de 21 de janeiro disseca bem este movimento “social”.
Mas a campanha não se limita ao movimento “Escolas Abertas”. Há muitas vozes na imprensa que a ribombam. Num artigo publicado na Folha, 23 de janeiro, Demétrio Magnoli, faz uma defesa enfática da volta imediata às aulas presenciais e um ataque duro a quem se opõe. Mesmo, na maioria das vezes, discordando das suas opiniões, reconheço que entre os liberais Magnoli costuma levantar bons argumentos na defesa do que defende. Dessa vez foi lamentável.
Como se quisesse fechar seu artigo com um xeque mate, esgrime um ataque que se volta contra a ideia da individualidade tão sagrada para os liberais – incoerência total. Carimba de “aristocracia sindical docente” qualquer dirigente e ativista que se oponha à volta às aulas sem condições sanitárias. A generalização superficial é o alicerce do preconceito. O preconceito é a antessala da discriminação. Não é preciso recorrer à filosofia para argumentar. Podemos ficar no cancioneiro popular.
O tema generalização preconceituosa versus individualidade é tratado poética e brilhantemente em um diálogo imaginário entre as músicas “Dom de iludir” de Caetano Veloso e “Pra que mentir” do genial Noel Rosa e seu parceiro Vadico. Nesta última, a personagem masculina diz para a personagem feminina: “Pra que mentir, se tu ainda não tens a malícia de toda mulher”, generalizando que toda mulher é maliciosa, como se a malícia estivesse no seu DNA. Caetano Veloso adorava a canção do poeta da Vila Isabel e seu parceiro do Bixiga e muitos anos depois fez a música em que a personagem feminina responde à personagem masculina com o argumento da individualidade de cada pessoa: “Não me venha falar na malícia de toda mulher, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
A finalidade do carimbo preconceituoso e discriminatório foi tentar desqualificar as posições de quem se opõe à volta às aulas já, particularmente combater dois textos publicados na própria Folha, o primeiro, mais antigo, assinado pelo Professor Celso Napolitano, presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo, o segundo, mais recente, escrito pela Professora Bebel, deputada estadual e presidente da Apeoesp. Ambos se posicionam contra a volta às aulas presenciais sem garantia sanitárias para a comunidade escolar. Demétrio, bastante polemista, poderia buscar responder os sólidos argumentos apresentados. Preferiu buscar desqualificá-los com a generalização preconceituosa obviamente extensiva a toda categoria docente.
Outro argumento apresentado pelo articulista é a comparação com países africanos que reabriram as escolas em outubro. Ao citar Benin, Burkina Faso, República do Congo, entre outros, objetiva criar um impacto. Se até países bem mais miseráveis que o nosso retornaram, por que aqui não? Rossieli, o secretário de educação do governo Dória, repetiu a mesma comparação esta semana, 26 de janeiro, na reunião de planejamento com os professores do estado de São Paulo.
O que os dois não disseram é que, em outubro, o continente africano tinha uma das menores taxas de infectados e também de mortalidade comparativamente com os outros continentes. Segundo o Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (África CDC) o continente africano tinha 125 casos por 100 mil habitantes até outubro. O Brasil tinha, no mesmo período, 2.258 casos por 100 mil habitantes. O número de óbitos também era bem menor: 36 mil em todo o continente africano, pouco superior ao número de mortos em São Paulo à época e muito inferior ao do Brasil. Detalhe, a população do continente é de mais de um bilhão de pessoas, muito superior aos 210 milhões do Brasil e aos 46 milhões de São Paulo. O ponto fora da curva no continente é a África do Sul. Augusto Paulo da Silva pesquisador do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Osvaldo Cruz diz que “há um consenso mundial de que a situação do Covid-19 na África é peculiar e surpreendente.” Se a situação no Brasil fosse similar ao continente africano poderia se discutir a reabertura das escolas como parte deles fizeram.
A tese defendida pelo “Escolas Abertas” e seus porta-vozes de que as crianças e adolescentes não transmitem covid, logo é seguro reabrir as escolas não se sustenta. A Inglaterra, Portugal, Alemanha e outros países fecharam novamente as escolas devido à segunda onda. Por aqui dados recentes da Secretária de Saúde de São Paulo e do Paraná indicam que aumentou a contaminação das pessoas entre 10 e 29 anos e por tabela o número de pessoas contagiadas. Além disso, não seria preciso atravessar o atlântico até a África. Bastaria ir a Manaus. Amazonas reabriu as escolas em agosto. Ali a irresponsabilidade converteu-se em tragédia com circunstâncias de crime contra a humanidade. Inúmeras vidas foram perdidas entre profissionais da educação e comunidade escolar.
Como é público, a direita liberal é defensora do ensino remoto como modelo educacional. Mas coerência não é o seu forte. Agora, em plena segunda onda, com as taxas de contaminação e mortes no topo da pirâmide querem, a qualquer custo, a volta das aulas presenciais. Meu saudoso e querido pai bem que dizia: “pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Não precisa ser cartomante para saber o resultado disso: mais mortes O ogro fascista miliciano de Brasília diz: “não sou coveiro”. A elite paulista com seu perfumado “laissez-faire” diz: “são os custos necessários.”
É fato que a ausência de aulas físicas devido à pandemia e ao isolamento social traz muito prejuízo aos jovens e crianças. A UNESCO, ao defender que educação é prioridade, coerentemente defende que os profissionais da área sejam parte do primeiro grupo de vacinados. A conclusão de que devemos então reabrir as escolas a qualquer custo é absolutamente falsa. A questão aqui é qual o custo maior. Qual permite possibilidade de ser reposto e qual não. O conhecimento pode ser reposto. A história da humanidade nos fornece uma série de exemplos disso. Vidas não se repõem. Que o diga os familiares e amigos de Adélcio Ferreira Dias, Suzeth Maciel, Madalena Souza, Marília Romão, Juracema Pereira, Izabel Queiroz, Antonieth Maciel, Maria Helena, Ivana Mara Arcos, Beatriz, Tânia Fleury -profissionais da educação do Amazonas e do Estado de São Paulo. São algumas pessoas queridas entre centenas. Para Bolsonaro, todo mundo vai morrer mesmo. Para o “Movimento Escolas Abertas”, é o preço a pagar. Para nós, perdas irreparáveis.
O argumento de que educação pública deve ser prioridade é absolutamente correto. Há anos vários movimentos sociais, a começar pela maioria das entidades sindicais docentes, lutam por esta pauta. Defendem mais investimentos em educação, nas escolas, nos salários e condições de trabalho dos profissionais do ensino. Só com prioridade permanente na educação as crianças e adolescentes, filhas e filhos da classe trabalhadora, poderão ter oportunidade na vida. Isso somado a várias outras necessidades do conjunto da população: moradia, transporte, saúde, saneamento, emprego, renda. Hoje, na sua ampla maioria, estão condenadas a um ensino precário dentro de uma sociedade absolutamente desigual, em que pese o esforço hercúleo da maioria daqueles e daquelas que trabalham na educação. A educação pública foi sucateada em nosso país. A direita liberal é uma das maiores responsáveis pelo sucateamento que aumentou imensamente o número de analfabetos funcionais.
Defender que educação é prioridade apenas durante a pandemia para reabrir escolas tem nome. O nome disso é oportunismo. Tinha razão Carlos Drummond, genial poeta, ao afirmar que as palavras têm vida. O “Escolas Abertas” com sua campanha na verdade quer “reabrir” a economia. Reabrir as escolas, não importa as condições, é parte fundamental para isso, mesmo com mais de 1000 mortes por dia. Há um cordão umbilical que une a direita liberal ao miliciano e seus asseclas do Planalto: Paulo Guedes e seu plano neoliberal. As mortes – dos mais pobres, lógico – a mais que virão, serão perdas inevitáveis na visão deles.
“Que saudade da professorinha” relembrava saudosa e carinhosamente Ataulfo Alves. É seguro que a maioria dos alunos e das alunas esteja agora com esta mesma saudade da sua professora, esperando a hora de poder voltar com segurança e tranquilidade às escolas. Porque, se não for assim, a saudade que as crianças sentirão será da professora, da merendeira, do inspetor de aluno que tiveram suas vidas ceifadas pela covid. Nós defendemos o direito à vida. Queremos todos vivos porque, vencida a pandemia, queremos que a educação seja verdadeiramente prioridade. E vamos lutar por isso.
*Mauro Puerro é professor
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