Por: Danilo Georges[1]
O fenômeno das milícias no Rio de Janeiro, quase que invariavelmente, aparece descrito pela historiografia acadêmica, pela imprensa e mesmo pelas investigações de órgãos estatais como um processo datado do início dos anos 2000.
A palavra “milícia” foi incorporada ao vocabulário dos órgãos de imprensa no Estado do Rio de Janeiro em 2005, a partir de uma série de matérias de Vera Araújo para O Globo. Segundo a jornalista citada, a palavra era mais curta que “paramilitares” – expressão mais usada até então – e que, portanto, soaria melhor para estampar manchetes.
A expressão milícia ficou ainda mais consolidada após os atentados ocorridos no dia 28 de dezembro de 2006. Naquela noite, conhecida como a “madrugada do terror”, 18 pessoas morreram, quase todas agentes de segurança de delegacias e postos de policiamento que foram metralhados – ações tidas como parte de uma suposta represália de facções de traficantes à expansão das milícias.
No início de 2007, as novas autoridades do Estado do Rio se manifestaram publicamente sobre as milícias, antes denominadas também pela alcunha de “polícia mineira”, gíria usada para definir o policial que consegue identificar um criminoso endinheirado a fim de extorqui-lo. Para os policiais mineiros, não importa se o alvo é traficante, sequestrador, ladrão de banco ou de carga. Quanto mais rico, maior o potencial de lucro do policial com a extorsão. Pode-se dizer que o termo “milícias” ficou institucionalizado pelo Estado após investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) ocorrida nesse período, seguido do afastamento do inspetor da Polícia Civil, Félix dos Santos, acusado de chefiar a milícia na favela de Rio das Pedras.
Em dezembro de 2007, o vereador Josinaldo Francisco da Cruz, conhecido como Nadinho (DEM), é acusado pelo MP-RJ de ser o novo chefe da milícia em Rio das Pedras e de ter sido o mentor intelectual da morte do policial civil Félix dos Santos. No dia 14 de maio de 2008, dois jornalistas do jornal carioca O Dia, que tentavam produzir matérias sobre o tema, foram torturados por milicianos na favela do Batan, na zona oeste do Rio de Janeiro. O fato gera uma grande comoção pública, repercute em toda a mídia nacional e internacional, reacendendo a tentativa de instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que havia sido vetada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) em 2007.
No dia 11 de junho de 2008, após forte pressão social e midiática, foi instalada a CPI das milícias na ALERJ, presidida pelo deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL). A Comissão sugeriu ao MP-RJ o indiciamento de mais de 200 pessoas envolvidas na rede miliciana. Progressivamente, houve prisões de dezenas de autoridades públicas, policiais e civis acusadas de chefiar ou integrar milícias.
A partir da CPI, houve outra compreensão do fenômeno e uma alteração na opinião pública, onde até então predominava uma narrativa de que as milícias eram um “mal menor”, que combatia o tráfico de drogas, enfrentava a criminalidade e garantia ordem nas favelas da cidade. Narrativa histórica que é reproduzida desde os temos dos “justiceiros” como Tenório Cavalcanti, grupos de extermínio da polícia etc.
As milícias retornaram ao debate público somente em 2011, após o assassinato com 21 tiros de fuzil da juíza Patricia Acioly. No dia 14 de março de 2018, outro crime envolvendo as milícias chocaria o mundo: o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do seu motorista Anderson Gomes. Crime extremamente sofisticado, desnudou toda uma “indústria da execução”. Desde então, as “milícias” ganharam centralidade na conjuntura atual, além de investigações e denúncias da relação orgânica da atual família presidencial com milicianos.
No nosso entendimento, existem três obras balizadoras sobre as milícias no Rio de Janeiro que nos ajudam a iniciar um balanço bibliográfico desse tema. 1. Dos barões ao extermínio: Uma história da violência na Baixada Fluminense, do sociólogo José Cláudio Alves publicada em 2003. 2. A utopia da comunidade: Rio das pedras uma favela carioca, obra organizada pelo sociólogo Marcelo Burgos e publicada em 2002. 3. A República das milícias dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, do Jornalista Bruno Paes Manso publicada em 2020. Discutiremos cada obra mencionada separada, articulada em três textos nessa coluna.
Dos Barões ao extermínio
José Cláudio Alves, analisando a Baixada Fluminense, traça o fio histórico que conecta protótipos das milícias em décadas anteriores – a fusão entre grandes proprietários e grileiros de terras que subornavam a polícia militar ou contratavam jagunços para desapropriar lavradores e posseiros que em alguns casos resistiram de forma armada, transformando a região em um “barril de pólvora” como noticiavam os jornais da época.
Foi nesse contexto histórico que se assegurou os interesses de proprietários que dispunham do uso da violência oficial do Estado, tanto na forma policial quanto no acionamento de mecanismos jurídicos, ações combinadas com a formação de bandos armados no qual policiais e capangas se tornaram prestadores de serviços. Desse processo surgiram figuras proeminentes na política da região. O mais célebre seria o jagunço Tenório Cavalcanti que, embora vindo empobrecido do interior de Alagoas, possuía um tio/padrinho endinheirado no Rio de Janeiro, o Industrial e deputado Federal Natalício Camboim de Vasconcellos que obteve cinco mandatos consecutivos.
Segundo Alves, foi por intermédio das relações familiares e de parentesco que Cavalcanti foi introduzido nos círculos políticos e econômicos na Baixada Fluminense, antes de se tornar o famoso “Homem da Capa Preta”, por conta do uso de uma metralhadora apelidada de Lurdinha, por baixo de uma capa preta e de um colete a prova de bala. Foi em meio as disputas por terras na região que ele se destacou pela violência liderando um grupo de 40 jagunços rápidos no gatilho e dispostos a enfrentar qualquer adversidade. Tornando-se o responsável pela segurança particular do presidente Washigton Luis, quando da sua visita as obras da estrada Rio-Petrópolis.
Em 1936, Cavalcanti entrava para a vida política, representando o distrito de Duque de Caxias na câmara de Nova Iguaçu. Posteriormente, assumiu o cargo de fiscal de obras da prefeitura de Nova Iguaçu, nomeado pelo então prefeito, Ricardo Xavier da Silva, que intercedeu a várias prisões de Cavalcanti acusado de diversos homicídios. A lista de prestação de serviços do “homem da capa preta” era extensa, ele fazia a segurança privada de cassinos, hotéis e grandes propriedades, dessa forma enriqueceu e matava alegando a permanência da ordem e a autodefesa frente a seus adversários políticos, discurso reproduzido hoje por milicianos ou por parlamentares que defendem milicianos.
Como demonstra Alves, Cavalcanti exerceu três mandatos como deputado entre 1951 e 1964. Sua trajetória demarca, portanto, um possível “embrião” da relação entre violência, voto, milícia e política. Foi nesse período que atuou como o primeiro parlamentar que andava com armamento pesado dentro do Congresso. Sempre acompanhado de “Lurdinha”, o “homem da capa preta” possuía uma licença especial do general Pedro Aurélio de Góis, que foi duas vezes ministro da Guerra e chefe do Estado Maior do Exército.
Em síntese, Cavalcanti surge como um grande capataz de proprietários da região, agindo como um segurança privado, se tornando um dos maiores matadores do país que se metamorfoseou em herói nacional ao utilizar-se da violência para garantir a ordem contra a ameaçadora violência dos de baixo. Não é de hoje que matadores, jagunços, pistoleiros, grupos de extermínios, paramilitares agem em diferentes tempos históricos como domesticadores dos subalternos – matam, saqueiam, extorquem, expropriam em nome da ordem, da moral e recentemente do cidadão de bem.
Na Obra de Alves, Cavalcanti aparece como uma espécie de “avô” das milícias.
Como ironizou o brilhante sociólogo Chico de Oliveira na arguição da tese de Doutoramento de José Cláudio Alves, dialogando com o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda: “Quem mais cordial que Tenório Cavalcanti? Até sua metralhadora era tratada com carinho: Lurdinha”.
Um destaque importante na análise da trajetória política do “homem cordial” de Duque de Caxias é sua flexibilidade partidária. Indo da UDN ao PCB em três décadas, ele foi do combate ao Getulismo e da narrativa contra a corrupção defendendo a iniciativa privada à defesa da reforma agrária, estimulando as ocupações de terras. Para Alves, sua tática eleitoral se alterava na medida que os votos migravam na região, sua “conversão a esquerda” ocorre na ascensão das lutas dos camponeses naquela área, mostrando uma faceta política fisiológica. Talvez essa seja uma distinção importante entre Cavalcanti e as atuais milícias alinhadas organicamente ao espectro conservador. Foi somente com o golpe de 1964, que Cavalcanti foi amputado politicamente, tendo seu mandato cassado. Posteriormente tentou voltar para a política pelo PDS, mas não obteve sucesso.
O fio condutor da obra de Alves desnuda a violência do andar de cima em múltiplas formas. De Cavalcanti, que encarnou a violência legitimada pelo Estado à formação de grupos de extermínios formados por policiais na ditadura empresarial-militar, que substituiu em grande medida o bando armado do “homem da capa preta”, formando um caldo de cultura que mescla política, violência policial e militar com a contravenção.
Desse “caldo”, parecem ter se consolidado associações “clandestinas” que combinam negócios lucrativos, diversas formas de expropriações, estrutura do Estado com a violência paramilitar que estão na origem dos modelos milicianos contemporâneos. Dessa forma, Alves entende a violência como poder constitutivo do Estado e das classes dominantes, tese, cujo grande precursor é Karl Marx.
[1] Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense-UFF e militante do PSOL.
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