A construção do Brasil está consolidada no contexto histórico do colonialismo europeu. Esta dominação colonial foi um processo fundamental para o fortalecimento do capitalismo, que surge com desenvolvimento de práticas econômicas e comerciais, o chamado mercantilismo ou ainda capitalismo comercial.
Geograficamente falando, implica dizer que se soma a outros territórios que também tem suas histórias de formação marcadas por este fenômeno de dominação, a saber: todos os países das Américas (do Sul, Central, do Norte e Insular).
Entender isso a partir do conceito de Amefricanidade, nos permite admitir as influências dos povos africanos, as contribuições destes na formação da nossa cultura, não de forma pejorativa ou inferior, mas sim reconhecendo a importância da influência desses povos na formação da nossa cultura, na nossa sociedade. Que foi negada por estar pautada no desprezo da cultura africana advindas da negação da humanidade desses povos, por isso escravizados e se expressa na totalidade da construção das relações sociais. Durante muito tempo, ciência e mentalidade racista não reconheciam essa influência, culturas massacradas, desde a perda de línguas às práticas, sendo a resistência, elemento principal para manter alguns elementos da cultura africana e indígena ainda que de forma subalterna, em virtude da demonização destas.
Tudo isso com o propósito de perpetuar a superioridade da classe dominante, proteger os privilégios brancos e fazer a elite se manter na condição de exploradores, ou seja, permanecer hierarquicamente sendo superior através da manutenção da extração do trabalho e do enriquecimento. Historicamente no nosso país, ser negro significou ser escravo, marca das nossas relações de trabalho, diferente do branco, que apesar de existir a possibilidade dele ser pobre, fazer parte da classe explorada, não traz a condição histórica de escravo. Por isso que no Brasil, a condição social se expressa na pele.
Para Lélia Gonzalez o racismo aqui se mantém na condição disfarçada, velada, com a negação de sua existência tendo como respaldo a democracia racial, aqui entendemos como mito, que inclusive se consolidou com a ajuda de nomes importantes, como por exemplo Gilberto Freyre que abordava em seus escritos o que podemos chamar de a romantização das relações entre brancos e negros. E mesmo com a conquista da Constituição de 1988, dentre as 7, ser a primeira a mencionar, repudiar e considerar o racismo como crime e afirmar que todos somos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, a nós ainda está reservado o lugar de subalternidade desde as profissões ao status: diarista, jardineiro, segurança, babá, ladrão.
Forma tão eficaz que ainda coloca negras, negros e povos originários, na condição de alienação, a ponto de nos manterem oprimidos, subalternos, a margem da sociedade, com números altíssimos em índices que se referem as piores estatísticas: população carcerária, jovens assassinados, violência contra a mulher, desempregados, desabrigados. Ou seja, um formato que dá conta de manter cada um no “seu lugar”, visto que fomos colonizados pelos Portugueses e estes trazem consigo a marca da hierarquia social, da classificação social, portanto racial e sexual também.
Crescemos acreditando que o currículo ocidental, as afirmações, os valores dos homens brancos, são a verdade, o ideal, a perfeição. Os meios de comunicação e a educação institucionalizada cumpriram de forma fundamental a tarefa de universalizar essa verdade e como afirma Gonzalez os efeitos disso é a negação de nós mesmos. Em outras palavras, essa construção é naturalizada em razão da manutenção das relações de opressão.
Diferente de países em que o racismo continua descarado, assumidamente segregador, o nosso processo de resistência requer ainda mais esforço, tendo em vista que nossa luta começa desmascarando o racismo, desvendando os olhos dos oprimidos, parafraseando Paulo Freire, utilizando a educação libertadora.
Reconhecer o Brasil como um dos territórios da Amefricanidade, é olhar para este país à luz da perspectiva afrocentrada, sendo assim, fortalecendo a nossa identidade étnica, e reconhecendo a descendência dos desafricanizados trazidos nos navios do tráfico negreiro. Nos permite ir de encontro a história que durante décadas foi a oficial e só selecionava o sofrimento e humilhação vividos pelo nosso povo negro, de forma naturalizada, sem problematizar a crueldade da dominação colonial, escondendo as histórias de luta e resistência contra a escravidão, sobretudo de mulheres negras que foram guerreiras, protagonistas no que diz respeito desde a organização de quilombos a estar à frente nas batalhas, a qual nos orgulhamos e nos inspiramos.
Entender a importância desse conceito na luta contra as opressões, é antes de tudo entender o processo que originou a desigualdade social no Brasil, portanto entender que não há como falar em luta de classes, sem atrelar a luta antirracista, bem como falar do antirracismo sem atrelar a luta de classes, visto que o racismo ainda nos submete. É se envolver na luta como protagonista, é olharmos para nossa realidade, perceber as desigualdades e dizer o queremos fazer para mudar isso, sabendo ainda que estamos inseridos numa conjuntura global, que tende a nos inferiorizar.
Para além de contribuir com a afirmação da nossa identidade étnica e cultural, nos impulsiona para unirmo-nos para organizar a luta, ocupar espaços de decisões, não apenas pela representatividade, mas para garantir diretos, justiça, saúde, educação, lazer, trabalho, moradia, tudo aquilo que dá dignidade a vida humana, que o capitalismo opera, precarizando e a muitos negando, dando continuidade a escravidão, hoje de forma atualizada, desde a utilização da tecnologia digital para comercializar mulheres de diversas nacionalidades a flexibilização dos direitos e exploração de trabalhadoras e trabalhadores, mantendo a desigualdade social entre os grupos sociais e os povos.
*Pedagoga e Mestra em Educação pela UFPE. Militante da Resistência-PSOL.
[1] GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de Amefricanidade. In: Tempo Brasileiro: Rio de Janeiro, nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.
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