Ao final do processo seletivo conhecido como ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), o presidente do INEP do governo Bolsonaro veio a público bradar aos quatro ventos que a realização do exame fora uma vitória. Mesmo ante ao maior percentual de abstenção de candidatos da curta história do Exame, de aproximadamente 51%. Ora, engana-se aquele que ao ler estas primeiras linhas pensará que o presente autor irá discordar do presidente do INEP. Decepcione-se, não irei. De fato, a realização do ENEM fora – incontestavelmente – uma vitória. Todavia, a pergunta que vem a seguir talvez seja mais importante do que a assertiva proferida de forma honesta e parcial: vitória de quê e de quem?
Ora, se pensarmos brevemente no histórico do governo Bolsonaro, que nunca escondeu sua aversão à classe trabalhadora e sua predileção pelo empresariado, sendo em suas falas, sendo em suas ações, como:
“É melhor ter emprego sem direitos do que ter direitos sem emprego”.
Nunca passou pela sua cabeça ou na de seus brilhantes mentores – seja na cabeça de Olavo, seja na cabeça de seus filhos – que o que desejamos- a grande maioria do povo brasileiro, trabalhador- é uma combinação de ambos os fatores: emprego e dignidade?
Ou quando colocou em votação a contrarreforma da previdência, tornando inacessível o direito à aposentadoria a grande maioria da população?
Ou mesmo o desejo- reiteradamente manifestado- de intervenção política e orçamentária no aparato de produção científica e de conhecimento nacional: as escolas e universidades públicas?
Ou quando bloqueou o auxílio emergencial de R$600 reais mesmo com a vigência dos mesmos problemas de outrora que motivaram (em grande parte por iniciativa do parlamento) o benefício?
Isso sem falar na tratativa do governo ante a pandemia, nos atrasos, nas interferências, na profusão de inverdades, na deslegitimação das vacinas onde ficava patente que pior do que odiar um governo é um governo odiar você.
Ou que o Brasil, para além da pandemia, convive com a disparada do preço do petróleo e da gasolina e do transporte público, disparada do preço do gás, disparada do preço do arroz, inflação, desmonte da PF, da saúde, da educação, desemprego recorde.
Bem, poderia gastar aqui laudas e laudas apresentando aspectos que referendam um argumento central: que o compromisso deste presente governo com as elites nacionais e internacionais passa pelo aprofundamento da desigualdade social. E este compromisso não se trata de um traço maquiavélico ou psicopata dos representantes do governo. Embora seja impossível negar que o maquiavelismo e a psicopatia andam de mãos dadas com o governo federal.
Mas, fundamentalmente, de observação- por parte dos intelectuais orgânicos do capital assentados na sociedade política- que para a retomada do crescimento do capitalismo global, um país periférico e dependente como o Brasil deve tratar de precarizar profundamente a sua classe produtora (sim, os trabalhadores, não se enganem com a terminologia liberal) como forma de aumentar a taxa de lucro do capital aqui investido. E, nesse sentido, também não podemos negar, o governo Bolsonaro tem sido exemplar.
Ora, se reconhecemos no governo Bolsonaro um verdadeiro inimigo dos direitos da classe trabalhadora e, com isso, seu compromisso com o aumento da desigualdade social, não se torna difícil entender o grau de honestidade do presidente do INEP. Mesmo que por ventura sua ida a mídia tenha o objetivo justamente ao contrário. Este é, certamente, um daqueles “atos falhos” onde o não-dito revela tanto ou mais do que o que fora dito.
Não é possível, no momento em que escrevo, extrair cientificamente os dados que sugiro serem possibilidades a seguir. Mas qualquer cidadão com maior sensibilidade haverá de ver credibilidade no que afirmo. Além de cidadão sensível, sou também professor de escola pública com 18 anos de experiência profissional e 13 anos como servidor público da educação. A maior parte destas abstenções é de estudantes da rede pública, pobres, pretos, periféricos. Nestes termos, para nós, educadores comprometidos com a educação transformadora, emancipatória foi uma derrota; foi uma derrota para os movimentos estudantis e populares, uma derrota para cada uma e cada um que não conseguiu acessar o local de prova seja pela pandemia, seja pelo ano letivo deficitário.
Mas a escola pública- não nos enganemos- não é o lugar que idealizamos, é um lugar concreto, material e sob intensa disputa marcada pela luta de classes e os interesses divergentes acerca da escola pública pelas distintas classes sociais. Mormente, reproduz as desigualdades, embora seja prenhe de possibilidades.
Querendo ou não, o presidente do INEP não pode ser acusado de desonesto.
Portanto, a realização do ENEM fora sim uma vitória! Uma vitória das escolas e universidades particulares, uma vitória dos tubarões da educação, uma vitória da regressão ao acesso ao ensino superior, uma vitória aos detratores das políticas de cotas e, indubitavelmente, uma vitória do governo que- diuturnamente- se esforça em tornar o Brasil um país ainda mais desigual. Neste sentido, o ENEM/2020 com índice recorde de abstenção, cumpriu com o seu papel.
*Marco Lamarão é doutor em Educação, professor da Licenciatura de História e Ensino Médio do IFFLuminense – Campus Macaé
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