Férias pra que te quero | Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola: uma epopéia de enlouquecer os sentidos

No primeiro verão da pandemia, que desejamos que seja o último, considerando que muitas pessoas estão de férias, mas estão em casa, respeitando as recomendações das autoridades sanitárias e dos estudiosos do assunto, abrimos uma coluna para indicar filmes, séries e livros para os nossos leitores. Através de textos curtos, traremos sugestões que acrescentem um pouco de arte, diversão e também algum conhecimento aos que nos acompanham e acompanham o Esquerda Online. Querem saber o que temos pra hoje? Vem comigo, no caminho eu explico!

Carlos Zacarias
Divulgação

Considero Apocalypse Now não apenas um grande filme, mas o melhor filme da história do cinema. Essa é uma opinião pessoal, é claro, mas é também a posição de muitos estudiosos da sétima arte. A produção de 1979, de Francis Ford Coppola, que tem com um elenco estrelar com Marlon Brando, Martin Sheen, Robert Duvall, Dennis Hopper, Harrison Ford e Laurence Fishburne ainda púbere, consta de 10 em cada 10 listas dos melhores filmes do cinema de muitas conhecidas associações. A realização de Coppola, que anos antes havia colhido um estrondoso sucesso com O poderoso chefão, é cinema de alta qualidade, num dos melhores momentos de sua centenária história, uma proposta de uma profunda e consistente experiência sensorial.

Na história retratada no filme, baseada no celebrado romance Coração das trevas, de Joseph Conrad, o capitão Willard (Martin Sheen) recebe a missão de subir um rio durante a guerra do Vietnã para eliminar o coronel Kurtz (Marlon Brando). Dado como louco, Kurtz é um desertor do exército e comanda uma legião heterogênea formada por vietcongues, cambodjanos e estadunidenses que deixaram suas vidas para seguirem o coronel que exercia profundo fascínio sobre um imenso séquito. No percurso rio acima, o expectador vai experimentando os horrores de uma guerra jamais vista, cujo grau de espetacularização, que seria recorrente nas aventuras bélicas imperialistas das décadas posteriores, apenas se iniciava, provocando estupor. Enquanto a guerra se desvela como pano de fundo da aventura, o capitão Willard mergulha na história e na psiquê do coronel Kurtz, tentando entender o personagem, através dos relatórios que leva consigo, pondo em dúvida os aspectos tidos por loucura e sanidade que envolvem toda a empreitada bélica e a sua missão.

Apocalypse Now foi lançado em diversos versões até que, quatro décadas depois de sua chegada aos cinemas, ganhou a versão definitiva de Coppola, chamada Apocalypse Now Final Cut. A primeira versão do filme, lançado depois de cinco longos anos de produção, tinha pouco mais de duas horas de duração. Já a versão seguinte, chamada Redux, ganhou quase 50 minutos a mais, que são mantidos em Final Cut, que, com pequenos ajustes, está disponível ao público em HD. Na versão de Coppola, assiste-se o encontro de Willard com uma família francesa, remanescente da ocupação imperialista da Indochina pelo país europeu (a Indochina, antiga designação da região do sudeste asiático e que compreende, atualmente, o Viatnã, Laos, Cambodja, Tailândia e Myanmar). Neste encontro, percebe-se a dimensão de passado durante a conversa ocorrida num jantar, oferecido pela família de franceses à Willard, sob a metáfora de um imperialismo do passado, o francês, que não se resigna em ser superado por outro, o norte-americano.

A obra que inspira o filme, Coração das trevas, também merece uma menção especial. Em verdade, a narrativa em off de Willard, que conduz a película, apesar de conter elementos tomados do personagem Marlow da obra de Conrad, é, na verdade, de um outro livro, escrito pelo jornalista estadunidense Michael Herr, um escritor fascinado pelo livro Coração das trevas. Herr, que cobriu a Guerra do Vietnã, publicou seu relato no livro Despachos do front (agradeço a Wellington Freire pela informação), que é uma das referências para a realização de Coppola. Mas é mesmo o enigmático e profundo texto do escritor polonês Joseph Conrad, que aprendeu inglês aos 23 anos e se radicou na Inglaterra, tornando-se um dos mais importantes escritores de língua inglesa de todos os tempos, que inspira o filme.

A propósito, a obra de Conrad, publicada em três partes separadas em periódicos em fins do século XIX e depois lançada em livro em 1902, inspira sentimentos antagônicos em razão da forma racista e eurocêntrica como se enxergava a África, onde se situa a trama de Coração das trevas, no século XIX (o rio percorrido por Marlow, que vai ao encontro de Kurtz, é o Rio Congo). Em vista disso, uma recente edição da Antofágica traz ótimos posfácios de Christian Dunker, Ana Maria Bahiana e Sílvio Almeida que nos ajudam a entender o contexto da obra, algo da narrativa envolta em brumas e de caráter difuso, além de parte das polêmicas sobre o celebrado livro. Silvio Almeida, por exemplo, chama a atenção para a necessidade de se conhecer a obra de Conrad, em que pesem as discussões sobre o eurocentrismo, o imperialismo e o racismo que o permeiam. Para Almeida, que discute as influentes filosofias de Kant e Hegel na conformação de uma visão da África no século XIX, Coração das trevas é um “Livro absolutamente fundamental pelos seus valores estético-literários, mas também porque traz consigo profundas contradições e dilemas que ainda chegam a nosso tempo na forma de normalização do racismo, da morte e da miséria”.

E se o livro é imperdível, não obstante não seja uma leitura fácil, o filme não deixa por menos, muito especialmente pela mitologia que envolveu a produção prevista para durar 16 semanas e que levou 16 meses. Sobre o assunto, a esposa de Coppola, Eleanor, preparou um excelente documentário, lançado em 1991, chamado O apocalipse de um cineasta (Hearts of darkness: a filmaker’s apocalypse). Neste documentário Eleanor retrata as agruras de uma produção feita nas Filipinas, a convite do ditador Fedinando Marcos, que disponibilizou helicópteros e boas condições para a filmagem, menos no que tange às intempéries climáticas e às contingências do percurso. Por conta disso, além das tempestades que destruíram os cenários, um infarto que acometeu Martin Sheen e quase o levou àmorte, além do enfrentamento que a ditadura de Marcos fazia a grupos rebeldes, o que levou o governo a requisitar os helicópteros para combates reais, quase enlouquecem Coppola, que chegou a pensar em suicídio. Também a história em torno do astro Marlon Brado, que recebeu um milhão de dólares por semana de filmagem, com previsão para fazer sua participação em três semanas, e apareceu com 130 kg, sem ter lido o livro de Conrad ou o roteiro do filme, quase enlouquecem o diretor. Coppola também precisou lidar com atores chapados, como Dannis Hopper (que interpreta um fotojornalista fanático por Kurtz) e Sam Bottoms (que interpreta o surfista Lance Johnson, que integra a tripulação de Willard). Tais circunstâncias, dificultaram demasiadamente o trabalho de Coppola que, entretanto, extraiu desses grandes atores intepretações fantásticas, captando monólogos, quase sempre, improvisados.

Para completar, a cena épica em que um destacamento de cavalaria, formada por mais de uma dezenas de helicópteros e comandada por um tenente-coronel surfista, chamado Bill Kilgore (Robert Duvall, simplesmente fabuloso!), investe contra um vilarejo vietnamita, enquanto toca em alto-falantes A cavalgada da Valquírias, de Richard Wagner, é qualquer coisa de enlouquecer os sentidos. Kilgore faz essa investida como forma de limpar o terreno para que Lance, que é um surfista profissional, possa surfar nas ondas do Vietnã, em meio a bombas que caem por todo lado. Também a sequência final em que a canção The End, do The Dors, ilustra a derradeira caminhada do capitão Willard até o encontro com o coronel Kurtz, é de arrepiar, fechando com as palavras do coronel “O horror! O horror!”.

Por tudo isso, Apocalypse Now é um filme simplesmente fantástico, uma superprodução que estourou todos os orçamentos, mas terminou por arrecadar cinco vezes mais do que foi gasto, além de levar a Palma de Ouro em Cannes em 1979. Se você não assistiu essa obra-prima do cinema, pare tudo o que está fazendo e corra para fazê-lo. Se puder, também, leia o livro de Conrad. Você não vai se arrepender e diante da tela não vai conseguir desgrudar até o final. Não tenho dúvida de que todos os seus critérios sobre aquilo que vem a ser um bom filme serão automaticamente atualizados.