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MUNDO

Vacinas para a Covid: o exemplo mais mortal da desconsideração pelas vidas palestinas

Shannon Maree Torrens | Tradução: Waldo Mermelstein

Como no Brasil, o tema da vacinação domina o debate e as expectativas em todo o mundo. A imprensa repercutiu muito a informação que Israel é, neste momento, o país mais avançado na vacinação contra a Covid no mundo, tendo chegado a 20% de sua população. No entanto, como já questionou a Anistia Internacional, o grande problema é a extensão dessa operação para a população palestina dos territórios ocupados, o que foi negado pelo governo israelense, até agora. Mais de 160 mil casos já foram registrados nessa população de cerca de 4,5 milhões de pessoas, incluindo 1663 mortes. Como se não bastasse, como denunciam as organizações de suporte aos presos palestinos em Israel, o ministro da segurança pública israelense, Amir Ohana, declarou ainda no final de dezembro que os cerca de 5 mil presos palestinos não serão vacinados até que a população israelense o seja, o que é o mesmo que colocar uma sentença de morte sobre um número grande deles. Inclusive, várias organizações de direitos humanos de Israel entraram hoje com ação contra essa decisão na Suprema Corte do país.

Nada justifica que Israel tenha essa atitude, pois, como potência ocupante tem essa obrigação definida claramente pela legislação internacional, como a Convenção de Genebra. Em especial em Gaza, em que as condições de vida são mais precárias e que não foi desocupada por Israel, que a controla totalmente, mantendo-a hermeticamente isolada por ar, mar e terra. Esses fatos são mais uma demonstração do caráter excludente e discriminatório do regime imposto por Israel sobre os palestinos há décadas. É urgente uma pressão mundial seja exercida sobre o governo israelense para mudar totalmente essa política.

 

Vacinas para a Covid: o exemplo mais mortal da desconsideração pelas vidas palestinas (artigo publicado originalmente no jornal Haaretz, em 10/01/2021)

Enquanto muitas pessoas no mundo que possuem o privilégio de decisão, autonomia e movimento estão debatendo se irão ou não se vacinar contra a COVID-19, quando e se estiver disponível para elas, para outros a questão não é quando irão ser vacinados, mas se e como a vacina será a elas disponibilizada.

Este é o caso para a população em Gaza.

As violações de Israel com relação aos palestinos são muitas vezes justificadas como medidas para proteger a segurança e os interesses nacionais de Israel. No entanto, não fornecer vacinas para os palestinos nos Territórios Ocupados não tem nada a ver com a segurança e pouco a ver com a proteção do Estado de Israel. Tem mais a ver com um completo desrespeito com o caráter de seres humanos e com as vidas dos palestinos.

Enquanto as pessoas em Gaza e no restante dos territórios palestinos ocupados continuam a contrair a Covid-19 e dela morrer, Israel continua a negar que tenha qualquer responsabilidade com relação ao fornecimento de vacinas, apesar de que isso seja totalmente falso de acordo com a legislação humanitária internacional e a legislação internacional sobre os direitos humanos.

Uma coisa é bloquear um povo por supostos propósitos de segurança, como Israel tem feito com relação a Gaza desde 2007, o que é já um ato inumano com pouca justificativa, mas é outro nível de comportamento deplorável negar àqueles que são por ele ocupados e bloqueados uma vacina que salva vidas em uma pandemia única no último século e que matou mais de 1,9 milhões de pessoas no mundo.

O pior de tudo é que isso está perfeitamente dentro das capacidades de Israel fornecer essa vacina.

De fato, estamos vendo Israel liderar o mundo na vacinação contra a COVID-19, tendo cerca de dois milhões de israelenses, 20% da população já recebido a primeira dose, mas fracassar em avançar e vacinar os palestinos. Supostamente, Israel deu acesso à vacina para os palestinos de Jerusalém Oriental, embora o restante dos palestinos dos palestinos que vivem na Cisjordânia e em Gaza são ignorados.

Israel nega inclusive a mais básica e vital disponibilização de vacinas para os palestinos. A OMS pediu que Israel disponibilize a vacina para os trabalhadores de saúde palestinos, mas Israel recusou, argumentando que não tem vacinas em quantidade suficiente, mesmo tendo ultrapassado o resto do mundo no índice em que está vacinando sua população.

Apesar dos elogios, não é possível ver o programa de vacinação israelense como um êxito se não vacinar um grande número de pessoas – os palestinos – que Israel tem uma obrigação de vacinar. Na verdade, isso representa o grande fracasso do programa de vacinação israelense.

Mesmo que Israel não fosse uma potência ocupante, o que o obriga juridicamente a vacinar as pessoas às que submete ao confinamento, sendo um país claramente com capacidades para comprar e distribuir vacinas – como o primeiro-ministro disse, “Israel é o campeão mundial em vacinas” – Israel deveria ajudar aqueles que estão com dificuldades para obter vacinas.

A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Arden, garantiu vacinas em número suficiente para assegurar que todos que vivem nas nações das Ilhas do Pacífico serão cobertos. A Austrália também fez planos para assegurar o acesso à vacina às Ilhas do Pacífico – e nem a Nova Zelândia nem a Austrália estão ocupando militarmente esses países.

Isso é o que deve ser feito em tempos de necessidade como em uma pandemia. Os países devem prestar atenção aos que, em sua vizinhança e no mundo, necessitam de ajuda, pois estamos todos juntos nisso, – e isso antes de mesmo considerarmos que Israel está de fato obrigado a fazê-lo sob a legislação internacional com relação aos territórios ocupados.

Se a Autoridade Palestina é capaz de obter vacinas, o que difícil pela falta de fundos – há relatos que ela pode receber a vacina da Rússia, mas isso foi paralisado–, então pelo menos Israel deve assegurar que essas vacinas não sejam impedidas de entrar em Gaza, devido ao fechamento da fronteira e ao bloqueio de suprimentos médicos.

Se Israel não intervier como deve para distribuir vacinas aos territórios ocupados, cabe à comunidade internacional assegurar que os palestinos tenham acesso à vacina. O plano Covax da OMS só irá cobrir 20% da população dos territórios ocupados e essa será a cobertura total ao final do programa, que levará tempo para ser oferecido. Portanto, isso deixa de fora um número considerável de pessoas vulneráveis que não irão receber a vacina.

Em particular, as duas milhões de pessoas que residem em Gaza, que foi considerada inapta para a vida humana por especialistas da ONU, devem ser vacinadas com urgência, considerando o caráter do bloqueio a que o encrave está submetido, que resultou em uma falta de atenção médica e de remédios. A população em Gaza também precisa ter um alto nível de proteção, não somente os 20% oferecidos pelo programa Covax para proteger a comunidade.

A Organização Mundial da Saúde declarou que está se coordenando com as agências das Nações Unidas para assegurar a vacina para Gaza, mas a extensão dessa assistência é incerta neste momento, particularmente sem a cooperação do estado de Israel.

No vácuo do apoio real de Israel, outros países como os Emirados Árabes Unidos têm fornecido assistência para Gaza em seu esforço para responder à COVID-19, incluindo o fornecimento de suprimentos médicos e kits de testagem – e, potencialmente, vacinas. Isso é um evento interessante em uma período em que os Emirados assinaram um controvertido acordo de normalização com Israel. Recentemente, o Qatar também forneceu alívio suplementar par a Faixa de Gaza.

Israel declarou que se tiver vacinas suficientes irá “considerar ajudar a Autoridade Palestina.” Essa é uma declaração estranha e lamentável, pois prover a vacina para os palestinos não é uma escolha para Israel nem será um ato benevolente que deva ser aplaudido se Israel ajudar a Autoridade Palestina com a provisão de vacinas – é uma obrigação de acordo com a legislação internacional.

Israel está ignorando suas obrigações de vacinar aqueles que estão mais além de sua própria população, tornando seus índices “exitosos” de vacinado que não incluem os palestinos um exemplo da negligência completa que tem com as vidas palestinas. Não é somente no melhor interesses dos palestinos, mas também de Israel, a inclusão de forma urgente e abrangente os palestinos em seu programa de vacinação em cooperação com as autoridades palestinas.

 

Shannon Maree Torrens é uma advogada internacional e de direitos humanos de Sydney, Austrália. Ela trabalhou nos tribunais e cortes criminais Nações Unidas sobre a Iugoslávia, Ruanda, Serra Leoa e Camboja e com o Tribunal Penal Internacional. Possui doutorado pela Universidade de Sidnei.