Tanto as mídias ligadas aos movimentos e partidos de esquerda, quanto a imprensa tradicional, foram bastante eficientes ao analisar os números das eleições municipais de 2020. Em resumo, de fato, houve uma pulverização e consequente encolhimento do bolsonarismo como força política, em grande medida pela incapacidade deste movimento em organizar um partido político “oficial” para participar das eleições municipais. As primeiras análises dos aspectos quantitativos do resultado das eleições indicam um claro avanço dos partidos ditos de “centro” e “centro-direita” em números absolutos de votos e em cargos conquistados. Os dados quantitativos são uma ferramenta importante para a compreensão geral do processo, contudo, esses precisam ser complementados com outros elementos de análise que possam refletir a respeito do tamanho, força e capilaridade do movimento neofascista no Ceará e no Brasil.
A análise política do dito “centro” e da “centro-direita” demarca que essas forças sempre estiveram ao lado do poder no Ceará, assim como no Brasil. São a base de apoio do governador Camilo Santana, do PT (Que é a mesma base política dos Ferreira Gomes no Estado), tem partidos que a nível nacional apoiam o bolsonarismo na Câmara de Deputados e no Senado, como o PP, PL, PTB e o PSD. O chamado “centrão” são partidos de direita, alguns mais claramente associados às pautas conservadoras, conteúdo esse que esteve mais presente entre suas principais figuras nos últimos anos. Contudo, são partidos marcados por uma prática “fisiológica” que pode ser traduzida em projetos pragmáticos de aproximação dos poderes executivos nas diferentes esferas do estado brasileiro, prevalecendo à ausência em muitos deles de um projeto de constituição de partidos nacionais. A grande maioria dos partidos do “centrão” foi criado por lideranças que vieram do ARENA, antigo partido de suporte à ditadura civil-militar no Brasil, e acabam cumprindo um papel de recepcionar lideranças regionais com a liberdade de se vincular as forças de plantão nos estados e municípios, sem comprometimentos com as posições desses partidos em relação ao governo federal. O resultado desses partidos pode servir de termômetro para entender a dinâmica da política local nessas eleições.
Antes das eleições deste ano, algumas das principais cidades do estado já tinham prefeitos ligados a esta base política do chamado “centrão”, como Caucaia (PSD), Juazeiro do Norte (PTB) e Sobral (PDT), à exceção era Maracanaú que é dirigida por um grupo político opositor dos FG, o grupo do ex deputado e atual prefeito Roberto Pessoa, mas, mesmo assim, do PSDB, ligado ao senador Tasso Jereissati. O bolsonarismo não existia como força política tradicional em 2016, data das últimas eleições municipais, o que dificulta as comparações com a dinâmica política para as prefeituras no estado. Ainda assim, as eleições de 2016 já trouxeram para a câmara municipal a conservadora Priscila Costa (à época no PRTB), ligada à igreja pentecostal Assembleia de Deus, o apresentador de programas policiais Evaldo Costa (PRB), Dr. Porto (à época no PHS), bem como Paulo Martins (PRTB), do partido conservador da vereadora eleita. Apesar disso, no curso do mandato, os últimos 3 citados migraram para a base do governo municipal, deixando Priscila Costa como a única representante declarada do conservadorismo político na câmara municipal. Vale ressaltar que o vereador mais votado em 2016, Célio Studart, tinha como pauta principal a questão ambiental e os cuidados com animais domésticos.
Em 2018, o tsunami da eleição de Bolsonaro pareceu, de certa forma, ter tido pouco impacto a nível local, já que o atual governador foi eleito no primeiro turno com uma votação expressiva e o próprio Bolsonaro não iria nem para o segundo turno se o resultado dependesse apenas do Ceará. O domínio político dos FG e da ala do PT que os apoia parecia inabalável. A base de apoio do governador era tão grande que incluía até grupos conservadores como o da Dra. Silvana (PR), também ligada à AD, bem como o deputado Nizo do partido Democracia Cristão. Este último migrou para o PSB, base de apoio dos FG no Estado, enquanto no curso do mandato Silvana formou um bloco conservador de oposição com os eleitos André Fernandes e Delegado Cavalcante, ambos à época no PSL de Bolsonaro. Apesar do tsunami, Bolsonaro elegeu apenas 2 deputados estaduais e moveu uma deputada já conservadora para um futuro bloco de oposição conservadora. Vale ressaltar um outro elemento, o “mudancismo” na política local em 2018, que foi capturado em parte pelo bolsonarismo, levando à derrota do tradicional político Eunício Oliveira e a vitória do conservador Eduardo Girão (à época no PROS), ex dirigente de futebol e ligado ao grupo Shalom da Igreja Católica, na eleição para a vaga ao Senado. Girão tem se mostrado um apoiador “tímido” do presidente no congresso.
Mas as urnas de 2020 nos mostraram não apenas um desgaste do grupo dos FG, como também uma fissura em seu domínio que não se via há pelo menos 14 anos. E, o mais importante, esta fissura se movimentou para a direita. Em Fortaleza, o grupo liderado pelo Capitão Wagner (PROS) formou um amplo arco de alianças, atraindo parte deste “centro”. Apesar do discurso moderado, a campanha do PROS recebeu apoio explícito do presidente e, por vezes nas entrelinhas, outras de forma mais explícita, o seu programa se mostrou absolutamente alinhado com o bolsonarismo (vide a proposta de construção de escolas cívico militares nas periferias) e sua votação foi muito mais expressiva do que se esperava. Fortaleza elegeu uma base conservadora bem superior a 2016. Priscila Costa agora tem a companhia de Ronaldo Martins, ligado à IURD (REPUBLICANOS), o vereador mais votado da capital), Carmelo Neto (REPUBLICANOS) e Inspetor Alberto (PROS). Todos os 4 abertamente bolsonaristas. Também do grupo de apoio ao Capitão Wagner, mas não declaradamente apoiadores de Bolsonaro, temos uma base que veio dos movimentos grevistas da Polícia Militar do Estado em 2020, como o Sargento Reginauro (PR), da Polícia Civil, como Julierme Sena (PROS), bem como novos conservadores como Erialdo Xavier (PSC).
Em Maracanaú, a oposição aos FG levou o PSDB local a uma aproximação definitiva com o presidente. O prefeito eleito segue abertamente uma linha “Bolsodória”, chegando inclusive a criar uma “Secretaria de Assuntos Religiosos” no ato da posse. Caucaia elegeu um ex-apresentador de programas policiais e deputado federal, bolsonarista de primeira hora, Vítor Valim (PROS). Juazeiro do Norte empossou um ex-policial civil, Glêdson Bezerra (PODEMOS), que, apesar de ter tentado se afastar da figura do presidente, como o candidato de Fortaleza, defende um programa bolsonarista para a cidade.
Entre as 5 principais cidades do Estado, o domínio dos FG se manteve apenas em Sobral e Fortaleza, aonde, mesmo com a vitória de um candidato ligado ao grupo emerge uma oposição de direita muito bem articulada com os seus 12 vereadores eleitos.
O mapa político após o fim do pleito mostra um “cinturão” conservador ao redor de Fortaleza que não existia em 2018, com as duas principais cidades da Região Metropolitana nas mãos de bolsonaristas. Na câmara municipal de Fortaleza, também se apresenta uma renovada oposição de direita que não aparece em mapas políticos de eleições anteriores. O mapa da votação nos bairros da capital não é menos preocupante, a nova oposição de direita venceu nas áreas periféricas da região oeste da cidade, mais pauperizadas, nos territórios mais violentos e com menos acesso à infraestrutura da cidade. Em azul temos os bairros aonde o candidato bolsonarista venceu, em amarelo o candidato dos Ferreira Gomes.
Como é possível determinar que o projeto bolsonarista saiu enfraquecido das eleições municipais desse ano nestes termos? No Ceará ele saiu do nada, da inexistência em 2016 e da inexpressividade em 2018, para atingir a desarticulação, o desgaste e a fissura do poder de um grupo que governou quase sem oposição por 14 anos. Em Fortaleza, as áreas mais violentas e com a infraestrutura mais precária ajudaram a eleger uma oposição de direita com 12 vereadores, muitos deles ex-policiais ou ligados a igrejas neo pentecostais.
A vitória dos FG em Fortaleza, bem como em sua maioria de partidos do chamado “centro-direita” por todo Brasil, não nos parece uma derrota do bolsnarismo. Principalmente se levarmos em consideração a trágica gestão da pandemia no nosso país, com centenas de milhares de mortos, o desemprego, a crise econômica e a carestia. Parecia um cenário perfeito para a derrocada final do projeto neofascista, mas não é isso que a realidade vem mostrando. O sinal não nos parece regressivo.
A chamada “onda conservadora” aparentemente perdeu força apenas por que ela veio de uma explosão, de um tsunami em 2018, mas é muito claro que ela continua progredindo e empurrando todo o espectro político para a direita. Além disso, e até mais importante, nem o projeto liberal-conservador que se associou ao bolsonarismo enfraqueceu, muito menos a esquerda conseguiu se articular para apresentar um programa que fizesse frente a esse avanço.
É um erro brutal confiar a oposição ao bolsonarismo à política tradicional. Mais ainda com um dito “centro” e “centro-direita” fortalecidos pós eleições municipais. As duas últimas eleições (2018, 2020) mostraram isso. O embate acontece em um nível muito mais próximo, o problema é muito mais profundo, como já mostrava uma pesquisa de 2017 da Fundação Perseu Abramo, onde se mediu os valores políticos da população das periferias de São Paulo, bem como se demonstrou também na recente pesquisa do Datafolha sobre o perfil ideológico do eleitor na cidade de Fortaleza. Junte-se a isso a mudança no caráter da exploração capitalista, a “uberização” do trabalho, o impacto das reformas sindical e trabalhista nos sindicatos e as novas formas de resistência que emergem dessas contradições e temos algo para estudar que necessita ser compreendido, se quisermos obviamente superar os desafios que se apresentam.
*Rafael Rabelo é militante da Resistência/PSOL em Fortaleza
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