“Numa sociedade em que permitimos – porque permitimos – que um deputado mande outra deputada para a sua terra porque ela é negra (…) não só estamos a negar um artigo fundamental da Constituição como estamos a, mais do que normalizar, institucionalizar aquele discurso. Isto é irreversível: banaliza o que não pode ser banalizado, normaliza o que não pode ser normalizado e institucionalizado. E tem outro efeito muito nocivo: se aquilo é banal, também as palavras opostas, as que defendem a democracia, as que defendem a igualdade, também essas se banalizam, no pior sentido.”
Tiago Rodrigues, Autor e Encenador de Catarina e a Beleza de Matar Fascistas e Mandatário Nacional da Candidatura de Marisa Matias
O veneno mais perigoso é o da neutralidade, da indiferença ou da apatia. Nas eleições presidenciais de 2021, o candidato neo-fascista quer consolidar o seu projecto de ódio. Tanto ou mais que Ventura e que quem o quer levar ao poder, serão mortais a apatia e a subvalorização do perigo pela esquerda. Que ninguém à esquerda caia no erro de beber desses venenos, mesmo que sob o pretexto do radicalismo. A menos de um mês das eleições presidenciais, recordamos o que já afirmamos sobre o assunto:
“O risco do desalento grassar entre quem trabalha é real. O neo-fascista André Ventura quer fazer da crise um terreno para o ódio, ao serviço dos poderosos. Nas eleições presidenciais, testará a força desse projeto. Em 2021, não é impossível que a direita se procure unir para tentar ser Governo. E se o Marcelo do primeiro mandato esteve ao lado de Costa, no segundo mandato, Marcelo terá menos pudor em auxiliar a direita. É isto que está em jogo. É demasiado arriscado deixar as eleições presidenciais serem decididas entre a velha direita de Marcelo e o neo-fascismo de Ventura. Por isso é tão grave o erro de Costa ao curvar-se perante Marcelo. À esquerda não pode haver omissões. Encaramos o reforço da esquerda como uma obrigação, para preparar as lutas que se seguem.”
Partindo desta avaliação, as linhas que se seguem procuram dialogar com aqueles e aquelas que, sendo de esquerda, estejam indecisos ou até ponderem abster-se ou votar branco ou nulo.
Ainda que esteja empenhado na campanha da Marisa Matias, respeito a opinião de quem não se reveja totalmente em nenhuma candidatura. Inclusive, entendo as e os activistas que nos últimos anos criticaram a aproximação da esquerda ao PS e, por isso, desconfiam das candidaturas da área do BE e do PCP – ainda que o primeiro, mais que o segundo, tenha adoptado nos últimos tempos uma postura de oposição ao Governo. Mas é um perigo enorme deixar que estas críticas levem à indiferença, abstenção ou à tentação de votar nulo ou branco nas eleições de janeiro.
O desprezo pelo combate eleitoral não é uma posição tão radical como possa parecer: é uma capitulação à alienação anti-política que o capitalismo fomenta. No actual contexto, em que uma candidatura abertamente racista e de extrema-direita quer usar as eleições para se posicionar como pretensa alternativa ao sistema, abster-se, votar branco ou nulo é fugir do confronto com Ventura. Não tem nada de radical, antes pelo contrário. A postura de organizações ou até partidos que caem nessa confusão merece ser questionada. Antes de mais pelos próprios.
Para quem luta contra o racismo não é indiferente que os candidatos da esquerda fiquem ou não à frente de Ventura – todos os activistas o sabem. Para quem apoia as lutas dos trabalhadores, não ajudar a esquerda a ultrapassar Ventura é indesculpável – todos os sindicalistas os sabem. O mesmo se pode dizer de todas e todos empenhados na luta feminista, climática, pela habitação ou outras. Achar que é indiferente, para o futuro destes combates, a força política obtida pelo neo-fascismo, por um lado, e pela esquerda, por outro, é, no mínimo, ingénuo. Quem está empenhado na luta anti-fascista sabe bem que o ânimo nas hostes neo-fascistas será completamente diferente caso Ventura fique à frente das candidaturas de esquerda – Marisa Matias e João Ferreira- ou caso seja ultrapassado. Ajudar a esquerda a ultrapassar Ventura nestas eleições é uma obrigação de todas e todos os antifascistas.
Esquerda, centro-esquerda e outros centrismos
Constatado o evidente, que o papel da esquerda é dar força à esquerda, há que pensar na melhor forma de o fazer. Para muitos, Ana Gomes seria o mal menor, uma espécie de “voto útil à esquerda”, seja pela sua retórica ou por aparecer nas sondagens como melhor colocada para a disputa do segundo lugar. Outros, vêm na sua candidatura uma espécie de substituto para uma unidade de esquerda inexistente. Também o contrário existe: a defesa de uma inexistente unidade de esquerda que coloca, erradamente, a militante do PS no mesmo patamar que Marisa Matias ou João Ferreira. Ora vamos por partes.
É positivo que Ana Gomes tenha rompido com o unanimismo pró-Marcelo que reinava no PS. Foi mais corajosa que António Costa mas , tirando a retórica inflamada, não se distingue muito deste. A sua carreira de diplomata ou de eurodeputada tem um traço de continuidade: a defesa dos direitos da “nação” ou da “Europa” como forma de diluir os antagonismos entre os que trabalham e os que enriquecem. A sua retórica anti-corrupção não só nunca foi “critica ao sistema”, como serve para disfarçar o carácter sistémico desse mal. Ainda que a sua postura pisque um olho à esquerda, o seu programa e percurso sempre piscaram o olho ao centro. Apoiante de Ramalho Eanes e apoiada por Francisco Assis, nem sequer se pode dizer que pertença a uma ala esquerda do PS. Pelo que, uma eventual candidatura unitária à esquerda nunca a poderia ter como protagonista. Nem se pode falar das candidaturas da esquerda colocando Ana Gomes no mesmo patamar que Marisa Matias ou João Ferreira. Sem querer entrar no debate infrutífero sobre se ela é, ou não, de esquerda, é evidente que as suas posições sobre a UE, a NATO, as leis laborais ou a nacionalização das empresas estratégias estão mais próximas de Costa ou de Marcelo que do BE ou do PCP.
Uma candidatura única à esquerda seria uma possibilidade interessante, que mereceria ter sido discutida atempadamente. Creio, ainda assim, que a defesa da unidade da esquerda e na luta política – a Frente Única, que é necessária – não tem de se expressar sempre em candidaturas únicas da esquerda. Nem tão pouco é certo que seria a melhor tática para forçar uma eventual segunda volta.
Porém, o debate sobre uma candidatura única de esquerda tem neste momento um valor meramente académico – serve para uma discussão diletante e não para uma acção militante. Porque no terreno real da luta política real, ela teria de ser preparada com meses de antecedência. Às vésperas das eleições, levantar essa “exigência” traz mais confusão que clareza. Até porque quem o faz, mesmo sem ter essa intenção, acaba por dar razão a quem defende uma espécie de “voto útil à esquerda”. Ou seja, a defesa de uma suposta unidade de esquerda nas presidenciais, neste momento, confunde-se com a defesa da candidatura de Ana Gomes.
Pragmaticamente à esquerda
Voltando ao início: qual a utilidade da esquerda numas eleições que parecem decididas à partida? Cito alguns critérios: 1) ajudar a retirar força a Marcelo Rebelo de Sousa, nomeadamente denunciando o seu projecto de ajudar a direita a regressar ao poder coligada com o neo-fascismo; 2) denunciar e desmoralizar André Ventura, nomeadamente impedindo-o de ficar em segundo ou terceiro lugar; 3) Defender no debate público uma saída para a crise diferente da do Governo, que defenda os interesses dos exploradores e oprimidos, assente na defesa do SNS; no combate à precariedade; no combate ao racismo sistémico; na defesa do apoio público à cultura; na exigência do fim dos apoios públicos à banca privada; em propostas feministas para a emancipação das trabalhadoras; na defesa dos direitos dos imigrantes; na defesa de uma transição energética com justiça climática, entre outros. No fundo, trata-se de defender que os capitalistas, e não as trabalhadoras e trabalhadores, paguem a crise económica, pandémica e climática. Trata-se de dar um “horizonte de esperança” e motivos de “força maior” aos movimentos dos explorados e dos oprimidos para se organizarem, unirem e saírem à rua. Em 2020, processos eleitorais na Bolívia, Brasil, EUA ou Chile mostraram que as eleições e as lutas não existem em mundos separados e a consciência dos trabalhadores avança quando a esquerda estabelece pontes entre ambos. Dedicar-se só a um lado da equação – lutas ou eleições – é oferecer a vitória aos representantes do Capital.
Por isso, não basta procurar, à esquerda, a candidatura que pode ter mais votos. Uma boa votação num projecto vazio não impulsiona as lutas. Tão pouco é útil apostar em projectos que são impolutamente revolucionários mas não têm força para influenciar as lutas, por serem marginais – já nem falo de apelos a candidaturas ultra-revolucionárias mas inexistentes. Com base neste critério, João Ferreira e Marisa Matias são as alternativas que abrem a perspetiva de um rumo à esquerda de Marcelo, Ventura e do Governo PS.
Sem desprimor pelo candidato do PCP, a candidatura de Marisa Matias é que expressa vários aspectos que são mais úteis à luta da esquerda. A Marisa consegue simultaneamente defender as posições mais à esquerda e ter a possibilidade de conseguir uma boa votação, nomeadamente de ultrapassar André Ventura, o que não é de somenos. Uma candidata de esquerda ultrapassar o neo-fascista é muito importante: só isso quase que já justifica o empenho na candidatura da Marisa Matias! Mantendo um diálogo com o movimento sindical, é a candidatura de esquerda que expressa as bandeiras do movimento negro, feminista, LGBT e Climático. Mais critérios poderiam ser apontados, mas o facto de tão ter como orientação ignorar o candidato fascista – que apelidou de “vigarista, cobarde e troca-tintas” – merece destaque. Acresce o facto de Marisa ser dirigente do Bloco de Esquerda, que com o voto contra o último Orçamento de Estado, se colocou abertamente como oposição da esquerda ao PS. Cada um pode apontar várias críticas a Marisa Matias e ao Bloco de Esquerda – eu tenho várias! – mas é objectivamente aquela que melhor pode apontar uma alternativa à direita e ao PS e ao mesmo tempo golpear o neo-fascismo.
Falta menos de um mês para as eleições presidenciais. Mas o essencial da campanha, nas ruas, na TV e nas redes sociais, ainda não começou. A disputa é dura e pode haver surpresas, boas ou más. A irrupção de uma tema fracturante, uma afirmação polémica, uma vaga de fundo ou outro acontecimento imprevisível, podem desequilibrar a campanha para um lado ou para o outro. O duelo entre a esquerda de combate e a extrema-direita fascista não pode deixar ninguém indiferente. Escrevi estas linhas com antecedência, não tanto para convencer eleitores a votar, como para convencer gente, organizações e partidos de esquerda a empenhar-se nesta luta. Se és um/a de nós, não fiques a ver!
Publicado em Semear o Futuro
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