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Os ambientes futebolísticos brasileiros e a grande lacuna da esquerda

Felipe Carlos Damasceno e Silva* e Kamilla Sastre da Costa**, de Belém, PA
Acervo Movimento Remo Antifascista

Movimentos Remo Antifascista e Frente 1914 – Paysandu Antifascista em ato contra a reforma trabalhista.

O ano era 2017, e um famoso professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e intelectual do campo progressista brasileiro ministrava uma conferência, a convite do sindicato dos bancários do estado do Pará, no salão de um hotel na cidade de Belém-PA, cujo objetivo era pensar em estratégias de defesa da democracia brasileira no pós-golpe parlamentar de 2016. No evento, estavam presentes cerca de 100 pessoas, sendo estes grandes nomes de partidos de esquerda militantes da cidade e uma parte do melhor da vanguarda da época. 

No final da exposição oral, foi aberto uma sessão de perguntas ao conferencista, e chamou atenção o fato da grande maioria delas já terem sido comtempladas durante a fala dele. Até que, já na última rodada de perguntas, alguém fez a seguinte análise seguida de pergunta: “Professor, as arquibancadas dos estádios de futebol são lugares com um potencial imenso de reinvindicação das nossas pautas, pois as câmeras e holofotes da grande mídia estão comumente voltadas ao grande público situado nelas durante as transmissões de jogos. Diante disso, você considera oportuno a tomada desses espaços pela esquerda brasileira?” Após término da pergunta, a plateia reagiu com um mar de gargalhadas e gritos com os nomes dos dois maiores clubes da cidade. Em seguida, o professor limitou-se a responder meio sem jeito que: “Sim! É importante se atuar nos referidos espaços, e acrescentou apenas que torce para o Corinthians”, já partindo para as respostas das outras perguntas. 

Anos se passaram e a esquerda brasileira continuou menosprezando a importância de se atuar nos ambientes futebolísticos. Porém, em meados de 2020, as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo despertaram para a realidade, após uma reunião estratégica de planejamento ao enfrentamento do governo Bolsonaro realizada entre elas. Desde então, os movimentos de torcidas antifascistas, presentes no Brasil há 16 anos, vêm recebendo inúmeras solicitações de ingresso de militantes orgânicos de partidos políticos da esquerda. Preencher a lacuna da esquerda nos ambientes futebolísticos é de suma importância, mas quem está chegando nos movimentos de torcidas antifascistas precisa entender as dinâmicas de atuação destes grupos, que não se limitam a agendas políticas partidárias. Neles, o combate ao neofascismo crescente na sociedade brasileira e às opressões sociais são feitas do futebol para a sociedade, através de agendas próprias construídas de forma horizontal e estratégica entre seus membros.

Posto isso, podemos avançar mais um pouco. Fortalecer somente os movimentos de torcidas antifascistas não basta, o grande desafio da esquerda brasileira é atuar nas torcidas organizadas, movimentos recreativos sociais, presentes do Brasil há quase um século, compostos em muitos dos casos por milhares de membros. Há diversas formas de pôr isso em prática, e a educação popular freireana uma das alternativas de construção que merece destaque. 

O fato de as opressões sociais serem naturalizadas nos ambientes futebolísticos brasileiros justifica a urgência desta demanda. É comum, por exemplo, um torcedor xingar o jogador do time adversário com frases homotransfóbicas e não se considerar um opressor, pois há um paradigma apontando que tais atitudes fazem parte do ‘espetáculo’. Isso ocorre, através de construções sociais de um ideal de torcedor, pautado em masculinidades tóxicas e consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Nesse sentido, propor novas formas de torcer contrárias ao modelo hegemônico dominante e naturalizado é um dos grandes desafios da esquerda brasileira. A luta de classes também pode ser travada dentro dos ambientes futebolísticos ao se reivindicar a democratização do acesso de torcedores pertencentes à classe trabalhadora aos estádios e dignidade para os funcionários dos clubes. 

A esquerda brasileira, demorou demais a entender a importância de se atuar dentro das igrejas evangélicas e nas redes sociais. E isso custou-lhe caro nas últimas eleições presidenciais. Com o futebol, apesar do tempo longo, a consolidação ainda é possível, ao se agir logo. 

Não se pode perder de vista que a extrema direita vem tentando avançar neste espaço. Jair Bolsonaro é uma prova disso, visto que se veste cotidianamente com camisas de clubes de norte a sul do país, e, recentemente, teve a ousadia de impor a rede de TV pública nacional a transmissão de uma partida de futebol em que disputou entre amigos e apoiadores. Portanto, se organizar para ocupar as arquibancadas quando os jogos com públicos retornarem, após a campanha nacional de vacinação contra o vírus do COVID-19, é uma tarefa central da esquerda brasileira. Mas, como já exposto, é preciso saber entrar em campo, pois já há grupos que estão há décadas disputando esse jogo, e que os que riram outrora, hoje possam contribuir com seriedade para que a vitória democrática e popular no futebol seja possível. 

 

* Cientista Social; Membro do movimento Remo Antifascista; Mestrando em Antropologia. E-mail: [email protected] 

** Cientista Social; Membra do movimento Remo Antifascista; Membra da Bancada Mulheres Amazônidas; Doutoranda em Sociologia e Antropologia. E-mail: [email protected]