Quem não canta seus males espanta

Matheus Gomes e Fernando Seffner*, de Porto Alegre, RS
Partitura hino Rio Grandense

O Hino Rio-Grandense teve sua primeira versão composta na conjuntura da Revolução Farroupilha, com data provável sendo 1838. Estávamos em plena vigência do regime escravocrata. Embora os Farrapos tenham se servido da população escravizada negra como recrutados ao combate, prometendo que ao final seriam libertados, a rigor tal não aconteceu. Há farta documentação a comprovar o Massacre de Porongos, episódio que mostra uma opção explícita de eliminação física dos soldados negros, ao invés de sua eventual libertação. Tal episódio precisa ficar claro. Entre os generais farroupilhas e as forças do Império houve um acerto de opinião, e o assassinato dos soldados negros foi considerado a melhor alternativa.

Hinos são compostos em uma dada conjuntura histórica, cultural e social, e refletem os valores não apenas desse contexto, mas particularmente do grupo social que compôs sua letra. O Hino Rio-Grandense foi composto por homens brancos, profundamente inseridos em uma ordem escravocrata, a qual não pensavam em abolir. A população negra não foi chamada a opinar sobre a letra desse hino, nem na primeira versão, nem nas seguintes. Hinos têm uma outra característica, depois de compostos, passam a ser cantados de modo muitas vezes mecânico, e poucas vezes se reflete sobre eles. Para muita gente, os hinos são eternos, uma vez feitos, jamais poderemos modificar uma vírgula que seja neles, pois estaríamos cometendo um atentado às tradições.

Os valores sociais e as tradições se modificam, e são sempre objeto de disputa política. É o que ocorre com o Hino Rio-Grandense. Ao invés de simplesmente cantar, pedimos que se preste atenção ao que está sendo cantado. A estrofe “Mas não basta pra ser livre / Ser forte aguerrido e bravo / Povo que não tem virtude / Acaba por ser escravo” estabelece duas relações causais evidentes no contexto cultural e social da época e com repercussões até aos dias de hoje. A primeira delas é afirmar que ter sido bravo, forte, aguerrido na luta não é suficiente para ser alguém livre. Os homens negros que lutaram ao lado dos farrapos na Revolução Farroupilha foram reconhecidos em muitos momentos como fortes, aguerridos e bravos, e isso está registrado em documentação histórica. Aliás, se assim não fosse, nem teria ocorrido aos farroupilhas pensar em recrutá-los para o combate. Ninguém recrutaria covardes e fracos para lutar a seu lado. A segunda parte da estrofe estabelece uma conexão mais perversa ainda, ao dizer que se um povo não tem virtude (embora possa ser forte e aguerrido e bravo), ele acabará por ser escravo.

Mesmo tendo lutado de modo exemplar auxiliando as forças farroupilhas, essas quatro frases deixam claro que os negros não têm direito à liberdade, pois supostamente não tem virtude. E efetivamente não foram libertados, preferiu-se sua eliminação física, em um acerto entre exércitos absolutamente vil. Essas quatro frases são uma óbvia tentativa de colocar a culpa da escravidão nos próprios escravizados. Mais ainda, fazem lembrar aos escravizados que, mesmo tendo lutado como lhes foi pedido, ainda assim não alcançaram os méritos suficientes para sua libertação, pois lhes faltou virtude. Essa afirmação tem repercussões na vida da população negra até aos dias de hoje.

Como pedir a uma bancada de vereadoras e vereador negras e negro, em pleno século XXI, que cantem isso em plenário? Só faltava lhes pedir que aplaudissem ao final da execução! Não seria mais adequado mirar em outra referência cívica do Rio Grande do Sul, Liberdade, Igualdade e Humanidade, as três palavras da nossa bandeira, e a partir delas pensar um efetivo regime antirracista nos dias de hoje? Não seria esse o compromisso de uma Câmara de Vereadores decididamente envolvida com a produção de uma cidade democrática, igualitária e educadora, a partir de um valor das nossas tradições? A tarefa de cada geração é debruçar-se sobre as tradições, e perceber seu sentido para os tempos contemporâneos.

As críticas recebidas ao ato protagonizado pela bancada negra de vereadoras e vereador são, no mínimo, de quem canta sem prestar atenção ao que canta. Pedimos apenas isso, cante menos, e reflita mais na letra que está cantando. Mais ainda, busque saber em que condições tal hino foi produzido, e se ele ainda representa os valores que nos cumprem defender nesse momento. O Brasil é sabidamente um país que não se assume como tendo um passado escravocrata (não falta quem diga que os negros se deixavam escravizar), e que não se assume como racista (todos sabemos que os brasileiros reconhecem que há racismo, mas ninguém se considera racista, então ficamos sem saber como funciona esse racismo quando ninguém o produz).

Retirar a obrigatoriedade da execução do Hino Rio-Grandense nas solenidades é o primeiro passo para envolver a sociedade na produção de um hino que represente os valores que hoje devem pautar o Rio Grande do Sul, e que devem ter uma marca forte de política antirracista. Fazer isso não é desqualificar as tradições. É apenas reconhecer que tradições podem ser modificadas, e a lista daquelas já modificadas é enorme. Tradições que não se modificam se tornam anacrônicas, e terminam por legitimar estigmas, preconceitos e exclusões. É o caso dessa estrofe que analisamos. Ela legitima um processo de destruição da humanidade do povo negro. Um hino que efetivamente queira representar os gaúchos e gaúchas precisa se debruçar sobre as tradições, e repensá-las com os olhos postos nos desafios de hoje. É isso que se deseja de uma Câmara de Vereadores e Vereadoras.

 

*Artigo publicado no dia 04 de janeiro no jornal Sul 21.

Matheus Gomes é vereador da bancada do PSOL, Câmara Municipal de Porto Alegre, legislatura 2021-2024, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História UFRGS

Fernando Seffner é Professor da Faculdade de Educação UFRGS, área de Ensino de História.