O surgimento de não uma, mas de várias vacinas eficazes contra o Covid-19, rapidamente inundou os governos mundiais de expectativa, a Bolsa comemorou com aumentos de mais de 10%. O principal bloqueio para a rápida produção e distribuição da vacina está associado a patentes e direitos de propriedade intelectual. Isso levou os países ricos, que representam apenas 14% da população mundial, a comprar até 53% das vacinas mais promissoras.
O acúmulo de doses per capita nos diversos países capitalistas indica números até três vezes os necessários para imunizar a população como um todo; o Canadá lidera essa tabela com 5 doses per capita. Enquanto isso, nos chamados países pobres só vão poder vacinar uma em cada dez pessoas contra a Covid-19 no próximo ano. Diante dessa situação, África do Sul e Índia apresentaram uma proposta à OMC em outubro passado, que isentará os países membros da aplicação de algumas patentes, segredos comerciais ou monopólios farmacêuticos sob o acordo da organização sobre direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, conhecido como TRIPS.
O pedido baseia-se em artigo específico da OMC que garante, em situações excepcionais, ir além de certas disposições de propriedade intelectual e patentes, visto que estas constituem um obstáculo ao desenvolvimento de uma resposta rápida e concreta contra uma doença ou situação catastrófica. Habilitar a OMC permitiria a seus 164 países membros mudar suas leis para alcançar a produção de genéricos de qualquer uma das vacinas aprovadas. O projeto foi imediatamente rejeitado pelos Estados Unidos, União Europeia, Grã-Bretanha, Noruega, Suíça, Japão, Canadá, Austrália e Brasil, países que já o rejeitaram três vezes. No conselho geral da OMC são esperadas recusas e manobras dos Estados Unidos, União Europeia e Grã-Bretanha.
Essas delegações decidiram, em reuniões anteriores do TRIPS, defender os direitos de propriedade intelectual. Os Estados Unidos afirmam que “facilitar os incentivos à inovação e à competição” era a melhor maneira de garantir a “entrega rápida” de qualquer vacina e tratamento. A União Europeia argumentou que “não há indicação de que as questões de direitos de propriedade intelectual tenham sido uma barreira genuína em relação aos medicamentos e tecnologias relacionados à Covid-19”.
A missão britânica junto à OMC concorda, caracterizando a proposta de renúncia como “uma medida extrema para resolver um problema não comprovado”.
A Moderna recebeu um total de cerca de US$ 2,5 bilhões em dinheiro do contribuinte (dos EUA) para apoiar pesquisas e como pré-encomendas de vacinas; segundo a própria empresa, a contribuição de US$ 1 bilhão que recebeu para a pesquisa cobriu 100% desses custos. A Pfizer, por sua vez, recebeu uma doação de US$ 455 milhões do governo alemão para desenvolver sua vacina e quase US $ 6 bilhões em compromissos de compra dos Estados Unidos e da União Europeia.
Já a AstraZeneca se beneficiou de financiamento público durante o desenvolvimento de sua vacina; recebeu um total de mais de US$ 2 bilhões dos Estados Unidos e da União Europeia para compromissos de pesquisa e compra. Também assinou um acordo no valor de US$ 750 milhões para fornecer à Coalition for Innovations in Epidemic Preparedness e à Vaccine Alliance, um total de 300 milhões de doses.
Pfizer e Moderna comprometeram 82% e 78% de sua produção anual para países ricos, que no melhor dos casos terão 50% de sua população vacinada até o final de 2021. Por sua vez, a AstraZeneca comprometeu 53% de sua produção para os chamados países pobres e em desenvolvimento, como Índia e América Latina.
Também se comprometeu a vender a preço de mercado quando a pandemia acabar, nos contratos que definiu para julho de 2021, razão pela qual não garante o abastecimento aos países pobres. Ela ainda planeja produzir três bilhões de doses, o suficiente para vacinar 20% da população mundial, um número insuficiente.
Diante desse quadro, a iniciativa da África do Sul e da Índia perante a OMC recebeu o apoio de mais de 100 países membros, mas contando com a rejeição dos países que monopolizam acordos e subsídios às vacinas, iniciativa semelhante à realizada pelo Brasil na década de 1990 com os retrovirais para combater o HIV/AIDS, o que poderia colocar os países pobres em sérios problemas.
A OMS já renunciou às expectativas de colaboração internacional; sua afiliada continental, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), já determinou que, na melhor das hipóteses, os países membros devem aspirar a vacinar 20% da população. A pandemia que surgiu no contexto da depredação ambiental capitalista e da erosão das condições mínimas de subsistência de uma parcela crescente da população mundial, agora mostra sua própria incapacidade de oferecer uma saída, mesmo parcial, da catástrofe do coronavírus.
A propriedade intelectual e as patentes, mecanismos jurídicos da propriedade privada, revelam desse modo que representam uma camisa de força para o desenvolvimento da sociedade. A luta pelo socialismo é uma questão de vida ou morte face à barbárie do capital.
*Graduado em Economia Política e História na Université ParisVIII (1979). É doutor em História Comparada das Sociedades Contemporâneas pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1983). Atualmente professor titular da Universidade de São Paulo na área de História Contemporânea.
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