Pular para o conteúdo
BRASIL

Quebrar a patente da vacina

Osvaldo Coggiola*
Um profissional de saúde exibe uma dose de uma vacina
DoD photo / Lisa Ferdinando / Fotos Públicas

O surgimento de não uma, mas de várias vacinas eficazes contra o Covid-19, rapidamente inundou os governos mundiais de expectativa, a Bolsa comemorou com aumentos de mais de 10%. O principal bloqueio para a rápida produção e distribuição da vacina está associado a patentes e direitos de propriedade intelectual. Isso levou os países ricos, que representam apenas 14% da população mundial, a comprar até 53% das vacinas mais promissoras.

O acúmulo de doses per capita nos diversos países capitalistas indica números até três vezes os necessários para imunizar a população como um todo; o Canadá lidera essa tabela com 5 doses per capita. Enquanto isso, nos chamados países pobres só vão poder vacinar uma em cada dez pessoas contra a Covid-19 no próximo ano. Diante dessa situação, África do Sul e Índia apresentaram uma proposta à OMC em outubro passado, que isentará os países membros da aplicação de algumas patentes, segredos comerciais ou monopólios farmacêuticos sob o acordo da organização sobre direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, conhecido como TRIPS.

O pedido baseia-se em artigo específico da OMC que garante, em situações excepcionais, ir além de certas disposições de propriedade intelectual e patentes, visto que estas constituem um obstáculo ao desenvolvimento de uma resposta rápida e concreta contra uma doença ou situação catastrófica. Habilitar a OMC permitiria a seus 164 países membros mudar suas leis para alcançar a produção de genéricos de qualquer uma das vacinas aprovadas. O projeto foi imediatamente rejeitado pelos Estados Unidos, União Europeia, Grã-Bretanha, Noruega, Suíça, Japão, Canadá, Austrália e Brasil, países que já o rejeitaram três vezes. No conselho geral da OMC são esperadas recusas e manobras dos Estados Unidos, União Europeia e Grã-Bretanha.

Essas delegações decidiram, em reuniões anteriores do TRIPS, defender os direitos de propriedade intelectual. Os Estados Unidos afirmam que “facilitar os incentivos à inovação e à competição” era a melhor maneira de garantir a “entrega rápida” de qualquer vacina e tratamento. A União Europeia argumentou que “não há indicação de que as questões de direitos de propriedade intelectual tenham sido uma barreira genuína em relação aos medicamentos e tecnologias relacionados à Covid-19”.

A missão britânica junto à OMC concorda, caracterizando a proposta de renúncia como “uma medida extrema para resolver um problema não comprovado”.

A Moderna recebeu um total de cerca de US$ 2,5 bilhões em dinheiro do contribuinte (dos EUA) para apoiar pesquisas e como pré-encomendas de vacinas; segundo a própria empresa, a contribuição de US$ 1 bilhão que recebeu para a pesquisa cobriu 100% desses custos. A Pfizer, por sua vez, recebeu uma doação de US$ 455 milhões do governo alemão para desenvolver sua vacina e quase US $ 6 bilhões em compromissos de compra dos Estados Unidos e da União Europeia.

Já a AstraZeneca se beneficiou de financiamento público durante o desenvolvimento de sua vacina; recebeu um total de mais de US$ 2 bilhões dos Estados Unidos e da União Europeia para compromissos de pesquisa e compra. Também assinou um acordo no valor de US$ 750 milhões para fornecer à Coalition for Innovations in Epidemic Preparedness e à Vaccine Alliance, um total de 300 milhões de doses.

Pfizer e Moderna comprometeram 82% e 78% de sua produção anual para países ricos, que no melhor dos casos terão 50% de sua população vacinada até o final de 2021. Por sua vez, a AstraZeneca comprometeu 53% de sua produção para os chamados países pobres e em desenvolvimento, como Índia e América Latina.

Também se comprometeu a vender a preço de mercado quando a pandemia acabar, nos contratos que definiu para julho de 2021, razão pela qual não garante o abastecimento aos países pobres. Ela ainda planeja produzir três bilhões de doses, o suficiente para vacinar 20% da população mundial, um número insuficiente.

Diante desse quadro, a iniciativa da África do Sul e da Índia perante a OMC recebeu o apoio de mais de 100 países membros, mas contando com a rejeição dos países que monopolizam acordos e subsídios às vacinas, iniciativa semelhante à realizada pelo Brasil na década de 1990 com os retrovirais para combater o HIV/AIDS, o que poderia colocar os países pobres em sérios problemas.

A OMS já renunciou às expectativas de colaboração internacional; sua afiliada continental, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), já determinou que, na melhor das hipóteses, os países membros devem aspirar a vacinar 20% da população. A pandemia que surgiu no contexto da depredação ambiental capitalista e da erosão das condições mínimas de subsistência de uma parcela crescente da população mundial, agora mostra sua própria incapacidade de oferecer uma saída, mesmo parcial, da catástrofe do coronavírus.

A propriedade intelectual e as patentes, mecanismos jurídicos da propriedade privada, revelam desse modo que representam uma camisa de força para o desenvolvimento da sociedade. A luta pelo socialismo é uma questão de vida ou morte face à barbárie do capital.

 

*Graduado em Economia Política e História na Université ParisVIII (1979). É doutor em História Comparada das Sociedades Contemporâneas pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (1983). Atualmente professor titular da Universidade de São Paulo na área de História Contemporânea.

Marcado como:
coronavírus / vacina