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O nosso atraso

Fernando Frazão / Agencia Brasil / Fotos Públicas

Praia movimentada no Leme, no Rio de Janeiro, no último dia do ano.

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Praias lotadas, aglomeradas festividades de fim de ano promovidas pelos setores médios e bailes funks apinhados de trabalhadores sem máscara. Não se trata, por óbvio, apenas de “falta de educação”, ao menos no sentido de acesso à escolaridade, vide o fato do núcleo duro do bolsonarismo negacionista ser recrutado justamente entre os setores médios, os quais, aliás, foram sempre os vanguardistas nas atividades gregárias de transmissão do vírus. Entretanto, se o acesso a uma educação de qualidade não é um elemento suficiente para explicar os comportamentos sociais em coletividade, ele está longe de poder ser ignorado na análise, sobretudo quando falamos não dos favorecidos por esta ordem, e que portanto querem preservá-la despudoradamente, como os estratos médios superiores, e sim dos que nela são explorados e, por isso, podem vir a subvertê-la radicalmente. Para estes, o conhecimento, a verdade do mundo, é fundamental para orientar uma prática que possa construir um mundo de verdade.

A educação formal, sobretudo por conta de sua dimensão ideológica, está longe de favorecer automaticamente um avanço na consciência de classe dos explorados. Contudo, ela é uma condição incontornável para a construção de uma sociabilidade mais digna e preocupada com a coletividade, sobretudo em termos sanitários, e em meio a uma pandemia. E a classe trabalhadora brasileira, infelizmente, está muito atrasada nesse âmbito – o que, entre outros fatores, ajuda a entender o terreno fértil em que o bolsonarismo pôde fazer florescer suas flores do mal. Reconhecer o atraso subjetivo das massas trabalhadoras não costuma ser bem visto pelas lentes antropológicas de um populismo intelectual de parte da esquerda, uma espécie de reedição culturalista do velho obrerismo estalinista, em que o fetiche com o povo, seus “lugares de fala” e seus “outros saberes” não exprimem senão seu caráter pequeno-burguês e sua conseguinte tentativa de, não pela transformação objetiva das condições sociais, e sim, à maneira contemplativa, pelo gesto de “deixar falar” e cultuar o que é dito (e feito) pelos subalternizados nestas mesmas condições sociais, expiar sua culpa de classe. Contudo, reconhecer nosso atraso, o atraso subjetivo daqueles cuja emancipação é única que objetivamente poderá emancipar a humanidade, é um passo importante e indispensável para esta mesma emancipação.

Por fim, só pode provocar em nós um sorriso irônico – para não dizer raivoso – o espanto com que as parcelas supostamente ilustradas da nossa burguesia e classes médias assistem às cenas de aglomeração popular. Estupefatos, seus porta-vozes nas editorias jornalísticas lamentam a “falta de educação do povo” e seu “desprezo pela ciência”, como se não tivessem sido eles próprios, a mando dos seus “iluministas” senhores, responsáveis por décadas de destruição da educação pública no país, destruição que, mesmo agora, logo agora, justo agora, eles não abdicam em seus projetos ultraneoliberais. Nervosos – e preocupados com seus filhos à noite na Dias Ferreira -, exibem sua surpresa com o fato de que milhões e milhões de pessoas empobrecidas se deixarem guiar pelos ditames de um bufão negacionista, como se não tivessem sido eles próprios, os homens de fortuna, os responsáveis pela chegada desse mesmo bufão ao poder máximo da nação e todo o infortúnio daí derivado.

Depois de só oferecerem trevas ao povo, nossos senhores e seus comentaristas televisivos se lamentam de que este agora se deixa levar pela escuridão, tal qual um educado industrial de tecelagem da Manchester de outrora poder-se-ia ter se surpreendido com o fato de que os pobres seguiam se banhando e pescando nas fétidas águas da cidade…

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