Brasileira, vivendo em Lisboa, senti a maré verde cruzando o Atlântico neste 29 de dezembro de 2020. Um “cheirinho de alecrim”, mas dessa vez vindo do cone sul pra cá. Eram as minhas manas, as mulheres argentinas fazendo História e Escola. É lei. O direito ao aborto seguro, legal e gratuito, é lei.
Desde a última batalha, ainda em 2018, quando o projeto foi derrotado no Senado, as argentinas deram contribuições estratégicas, de caráter programático, para o feminismo latino americano e mundial. Em uma luta encarniçada, apresentaram o feminismo como ferramenta de disputa da consciência na sociedade, entrando decididamente na luta pela narrativa da defesa da vida – até então monopolizada pela direita e fundamentalistas – defendendo a legalização do aborto como um tema na esfera da saúde pública, e dessa forma também um tema de classe. Defenderam o feminismo como ferramenta de luta pelas massas, dando um imenso exemplo de construção de unidade, frente única e de trabalho de base, fundamental para ganhar qualquer guerra.
Por muito tempo as reivindicações democráticas foram vistas (e ainda são) pela esquerda, incluindo seus setores marxistas, como lutas menores, sem força estratégica, que “em última instância” cabem no sistema, como se tivessem em seu DNA a compatibilidade com as direções burguesas liberais e fossem naturalmente absorvidas pelo capitalismo. Essa visão economicista, muitas vezes associada a um obreirismo de uma classe operária idealizada e irreal, sempre foi um crime contra o marxismo e o próprio movimento operário. Agora, ela é um suicídio.
Há pelo menos uma década, as lutas democráticas são o ingrediente mais inflamável da luta de classes, o que, por sua vez, tem uma correspondência direta com o sujeito social e político em construção na vanguarda das lutas de resistência mundialmente. Não faltam exemplos desde a primavera árabe até os levantes mais recentes. Talvez pelo fato de que defender a vida seja o ato mais revolucionário no nosso tempo. E não há nada mais democrático que o direito de estar vivo.
Não é um acaso ou um detalhe o fato, ou os fatos, de que no trágico ano de 2020, tenhamos visto o movimento “BLM” (Vidas Negras Importam) derrotar Donald Trump nos EUA, as feministas chilenas terem sido articuladoras decisivas da vitória no plebiscito que põe fim a constituição de Pinochet, e que termine com a retumbante vitória do feminismo argentino com a aprovação da lei de interrupção voluntária da gravidez.
Nos últimos anos vivemos um ciclo de crescimento da extrema direita que teve como alvo as mulheres, negros, migrantes, lgbtqia+. Este ciclo foi um correspondente superestrutural das necessidades mais estruturais do capitalismo para se ajustar. Voltamos a ver golpes e fascismo em todos os continentes. Nossos direitos mais elementares se tornaram demasiados para o ciclo atual do capitalismo.
Lutemos com todas as nossas forças pela vida do povo negro, das mulheres, dos lgbtqia+, dos refugiados, daqueles que perderam o direito de viver em sua terra e dos que cruzam fronteiras. Lutemos sem suprimir nenhum desses sujeitos e suas demandas, lutemos em unidade concreta, como uma “universalidade insurgente”, como disse Asad Haider**.
Lutemos como uma feminista argentina, que nos proporcionou uma lição completa: organização, método, programa. Com ela vencemos na Argentina e podemos vencer em toda a América Latina e no mundo! Gracias, hermanas!
*Texto publicado originalmente no portal do Semear o Futuro, de Portugal.
**Asad Haider é filho de imigrantes paquistaneses e nasceu nos EUA. Autor do livro “Armadilhas da Identidade – raça e classe nos dias de hoje”
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