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TEORIA

Por que a Revolução Cubana aconteceu?

Aos 62 anos do Revolução Cubana, apresento um pequeno trecho do primeiro capítulo da minha dissertação (que pode ser conferida integramente no seguinte link disponível ao fim deste artigo), no qual abordo os fatores econômicos, sociais e políticos que possibilitaram a eclosão e o triunfo da Revolução de 1959.

Gabriel Casoni*, de São Paulo (SP)

A conversão do sistema colonial em neocolonial, operada por meio da substituição de metrópole — a troca da dominação espanhola pela norte-americana — entre o final do século XIX e o início do XX, representou mais continuidade do que descontinuidade no processo histórico cubano.

No âmbito econômico, Cuba se manteve presa à estrutura latifundiária para produção de uma única matéria-prima, o açúcar, para um só mercado, os Estados Unidos. Tanto a modernização produtiva obtida quanto o patamar de renda média per capita e o processo de urbanização alcançados ocorreram sem ruptura com essa base econômica fundamental. Ao contrário, esse processo de modernização, ocorrido na primeira metade do século XX, aprofundou o caráter essencialmente dependente da economia cubana. As tentativas de diversificação da produção agrícola e de fomento à industrialização, tendo em vista a substituição de importações, naufragaram ou produziram resultados muito aquém do necessário.

Em realidade, havia um patente impasse histórico que travava o desenvolvimento nacional: a economia cubana nem se integrava completamente à dos Estados Unidos, o que exigiria a efetiva anexação do território insular (num modelo similar ao de Porto Rico, por exemplo), nem desenvolvia um caminho autônomo, livre das amarras neocoloniais.

No plano político, a troca da dominação colonial direta pela indireta tampouco significou um avanço qualitativo em termos de soberania nacional. Depois de quatro anos de ocupação militar norte-americana (1898-1902), Cuba passou 32 anos submetida à Emenda Platt. Durante esse largo período, os Estados Unidos exerceram suas prerrogativas de metrópole inúmeras e repetidas vezes no plano militar, na esfera econômica e também no nível político-governamental. Quando, em 1934, o presidente Roosevelt fez uma concessão, retirando a Emenda, o controle econômico dos Estados Unidos, ao invés de se enfraquecer, tornou-se ainda mais acentuado. Deste modo, os sucessivos governos cubanos, ao longo das seis primeiras décadas do século XX, estiveram sob a tutela norte-americana. A margem de autonomia nacional, em todas as esferas, era demasiado estreita. À dominação econômica correspondiam determinadas formas de dominação política, numa relação dialética de determinação recíproca, formando um conjunto inseparável.

A ordem neocolonial se alicerçava também no pacto estabelecido entre o imperialismo norte-americano e as classes possuidoras de Cuba. Em troca de ganhos econômicos fabulosos, garantidos, sobretudo, pela exportação de açúcar ao mercado norte-americano, as camadas dominantes locais renunciaram a qualquer projeto de emancipação nacional, submetendo-se política e economicamente à dominação estadunidense. Sem dispor de um estado nacional propriamente dito e de uma base econômica autônoma, como ressalta Florestan Fernandes (2012), o estrato dominante da burguesia cubana, além de não querer, não tinha os meios e condições para efetivar uma “revolução dentro da ordem”, quer dizer, uma transformação do padrão de desenvolvimento econômico capitalista dentro da ordem neocolonial.

De um lado, havia a impossibilidade da burguesia cubana de liderar o projeto de transformação econômica e política nacional, o que implicaria necessariamente a ruptura com a ordem neocolonial. De outro lado, existia a inflexibilidade dos Estados Unidos em permitir um desenvolvimento capitalista nacional relativamente autônomo conduzido pelos estratos dominantes da classe dominante local. Em decorrência desses dois fatores combinados, o impulso revolucionário da mudança histórica requerida deslocou-se da burguesia cubana para as classes sociais subalternas.

Por conseguinte, a tarefa da obtenção da independência nacional deslizou, no século XX, das classes dominantes para as classes trabalhadoras e médias, adquirindo neste processo uma dinâmica não somente democrático-radical e anti- imperialista, mas também um sentido anticapitalista. Por essa razão, o processo da revolução nacional cubana marcava uma nítida diferença em relação às revoluções de libertação nacional ocorridas na América Latina no século XIX. Por exemplo, no México, Colômbia, Venezuela, Argentina, entre outros países latino-americanos, a conquista da independência foi dirigida pelas burguesias locais, que lograram a constituição de Estados nacionais, ainda que oligárquicos e dependentes em relação aos centros imperialistas.

Com o estancamento e o impasse do desenvolvimento econômico cubano, as crises políticas se sucederam em ritmo acelerado: esses elementos combinados provocaram a crise da ordem neocolonial. O projeto de libertação nacional que, no passado, havia enfrentado o governo colonial e a dominação espanhola, agora se oporia ao submisso governo local e à dominação estadunidense. A luta contra a ditadura de Batista, nos anos cinquenta, tornou-se fator catalisador da revolução nacional.

No final da década de 1950, a situação de dependência de Cuba podia ser explicitada em diversos indicadores. Em 1958, por exemplo, 40% da produção açucareira, 90% dos serviços elétricos e telefônicos, 50% das ferrovias e 23% das indústrias não açucareiras eram de propriedade norte-americana, enquanto o capital bancário em mãos locais, que atingia o nível dos 60%, era utilizado basicamente para favorecer as corporações monopolistas estrangeiras. Naquele ano, o volume de investimentos dos Estados Unidos na ilha chegou a US$ 1 bilhão, só inferior, no continente, ao feito na Venezuela e no Brasil. O fato é que, entre 1950 e 1958, houve um aumento de 52% nas inversões de companhias ianques na “mayor de las Antillas”. Essas empresas construíam e equipavam as unidades produtivas, e sua matrizes na “metrópole” estabeleciam todas as normas e instruções na filial cubana.

O elevado patamar de desemprego na ilha constituía um aspecto derivado da estrutura econômica fundada na monocultura do açúcar. Cerca de 25% da força de trabalho estava desocupada no início dos anos cinquenta. Como o emprego na produção açucareira era temporário, durava apenas 3, 4 meses, de acordo com a safra, uma parcela significativa dos trabalhadores, em torno de 25%, tinha emprego somente durante uma parte do ano. Assim, entre 1956 e 1957, enquanto o desemprego médio foi de 9% durante a safra, na entressafra, atingiu 20%.

O estancamento econômico e o desemprego crônico exprimiam a necessidade diversificação e a criação de um mercado interno relevante, por meio de um processo de industrialização. Mas as amarras da dominação norte-americana impossibilitavam a realização desse programa. Apenas a subversão da ordem neocolonial, o que implicaria a ruptura com os monopólios norte-americanos na economia local, poderia abrir caminho para o desenvolvimento nacional, alterando em profundidade as estruturas agrárias e industriais. Essas tarefas revolucionárias seriam postas na ordem do dia pela Revolução de 1959.

A caminho da revolução 

O ataque armado ao quartel Moncada, em 26 de julho de 1953, pode ser considerado como o ato inaugural do processo que derrubaria a ditadura de Batista e, junto com ela, séculos de dominação neocolonial. Significou também a entrada em cena de Fidel Castro, então um jovem advogado de 26 anos, no palco principal da história política de Cuba. Apesar do rotundo fracasso da ação, Moncada havia desafiado o regime de Batista e permaneceria como fundamento do Movimento 26 de Julho, organização liderada por Fidel.

Após quase dois anos preso pelo ataque, Castro foi solto em maio de 1955. Livre da prisão e já contando com significativa ascendência política sobre a ala mais radicalizada dos nacionalistas cubanos, estava convencido que o único caminho para a derrubada da ditadura e a libertação de Cuba seria a insurreição armada. Dessa maneira, Fidel dava continuidade à tradição revolucionária de Antonio Maceo e José Martí.

Castro planejou a guerra revolucionária enquanto estava no México, no ano de 1955. Junto a ele, se encontravam seu irmão mais novo, Raúl Castro, além de Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos, que teriam papel de destaque no comando político-militar da guerrilha. A estratégia consistia na montagem de um foco guerrilheiro no campo que fosse o centro irradiador e organizador da insurreição popular em todo país, contando para tanto com uma rede de apoio político e organizativo nas cidades, articulada pelo Movimento 26 de Julho.

O desembarque do iate Granma, em dezembro de 1956, daria início às ações da guerrilha, a qual teve a maior parte de seus homens mortos na chegada a Cuba. De um total de 82 combatentes, apenas vinte sobreviveram. Apesar de um início tão pouco promissor, a guerrilha de Fidel tomaria o poder na ilha pouco mais de dois anos depois.

Segundo Florestan Fernandes (2012), a superação revolucionária do impasse histórico de Cuba — caracterizado pela incapacidade da burguesia de romper com a ordem neocolonial e pela inflexibilidade da dominação imperialista em permitir um desenvolvimento relativamente autônomo do país —, foi possível por três elementos.

Em primeiro lugar, o agravamento contínuo da situação revolucionária, em razão, principalmente, das pressões radicais vinda dos trabalhadores e da insatisfação popular generalizada. A esse respeito, o autor conclui que “é de baixo para cima, das classes trabalhadoras e da população pobre que parte a principal força desagregadora da ordem, o dissolvente invisível e o fator básico da deterioração do poder da burguesia e de seus governos” (2012, p. 104).

O segundo elemento residiu no papel progressivo exercido pela juventude estudantil, que, em função do seu idealismo nacional e radicalismo político, pôde ocupar posições de destaque no movimento revolucionário. O terceiro elemento foi a guerrilha, que se converteu no instrumento para o desmantelamento da ordem neocolonial.

Existiram setores burgueses que apoiaram a guerrilha: afinal, a ditadura de Batista, conhecida por sua brutalidade, violência e corrupção, era bastante impopular em todas as classes sociais no final da década de cinquenta. O movimento revolucionário liderado por Fidel também se nutriu do apoio majoritário das camadas médias urbanas, especialmente dos estudantes e intelectuais.

Mas foi na classe trabalhadora das cidades, no campesinato pobre e nos trabalhadores rurais que a guerrilha e o movimento revolucionário impulsionado por ela receberam o suporte mais decidido e decisivo. A base popular e proletária foi a camada social determinante, primeiramente, para o triunfo da Revolução, e depois para o desenvolvimento e radicalização dela após a tomada do poder. Na direção do movimento revolucionário se expressaram diferenças de orientações políticas e programáticas que refletiam o caráter heterogêneo de sua base social de apoio, conformada por um bloco amplo com camadas de diferentes classes sociais.

A ofensiva revolucionária no ano de 1958 foi fulminante. As operações de guerrilha se multiplicaram pelo país rapidamente. Enquanto as colunas do Exército rebelde comandadas por Che Guevara e Camilo Cienfuegos cercavam a estratégica cidade de Santa Clara, Fidel Castro, à cabeça da Coluna Número 1 (José Martí), avançava rumo à cidade de Santiago. Restou a Fulgêncio Batista, muito enfraquecido e sem o respaldo dos Estados Unidos, renunciar às duas horas da madrugada de primeiro de janeiro de 1959.

O Departamento de Estado norte-americano, que, no decorrer de 1958, perante a ofensiva dos guerrilheiros, passara acreditar que a melhor saída era a renúncia de Batista e a formação de um governo de transição, com elementos moderados pró-Estados Unidos — pois buscava evitar a subida de Fidel Castro ao poder —, deu um passo atrás quando percebeu que o triunfo da guerrilha era inevitável.

O Exército Rebelde venceu com o apoio entusiasmado da ampla maioria do povo cubano. Em 02 de janeiro de 1959, Fidel Castro fez o primeiro discurso após a tomada do poder, e suas primeiras palavras, na aurora da Revolução, já indicavam que ela chegaria onde nenhuma outra tinha chegado antes: “Desta vez não será como em 1898, quando os norte-americanos vieram e tomaram conta do nosso país. Desta vez, felizmente, a Revolução irá realmente chegar ao poder”.

*Gabriel Casoni é mestre em História Econômica pela Universidade de São Paulo, autor da dissertação Transformações econômico-sociais em Cuba em perspectiva histórica (1990-2014)