O presidente exterminador e o fantasma da liberdade: o surreal Brasil sem vacina de Bolsonaro

Cena do filme O Anjo Exterminador
Reprodução

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Come senators, congressmen, please heed the call
(Venham senadores, deputados, por favor escutem o clamor)
Don’t stand in the doorway, don’t block up the hall
(Não fiquem parados no vão da porta, não congestionem o corredor)
For he that gets hurt will be he who has stalled
(Pois aquele que se machuca será aquele que nos impediu)
There’s a battle outside, and it is ragin’
(Há uma batalha lá fora, e ela não vai parar)
It’ll soon shake your windows and rattle your walls
(E logo ela irá balançar suas janelas e derrubar suas paredes)
For the times they are a-changin’
(Pois os tempos estão mudando)
The Times They Are A-Changin’ (Bob Dylan)
 
Na incrível película mexicana “O anjo exterminador”, de Luis Buñuel, mestre do surrealismo, os convidados de uma festa burguesa se veem subitamente presos dentro de uma mansão e, por todos os meios, ou melhor, quase todos, tentam evadir-se, tentam sair do local, tentam se libertar. Entretanto, o único meio não experimentado por nenhum dos personagens foi, até o final do filme, precisamente aquele que era o mais óbvio: abrir a porta, a qual, na realidade, nunca esteve trancada. No filme, o grotesco absurdo de se estar preso em uma casa cuja porta podia ser aberta com o simples giro de sua maçaneta, o “escândalo”, por assim dizer, só escandaliza a nós, espectadores, mas não aos personagens da própria trama, para os quais a situação surreal é concebida simplesmente como normal. 
 
Pois bem. O que mais escandaliza a nós, os poucos ainda em isolamento social, os poucos “espectadores” dessa Terra em Transe em que se transformou o Brasil nos últimos anos, não é propriamente o fato de que Bolsonaro venha efetivando seu plano de postergar o máximo possível a vacinação no segundo país com mais mortes no mundo pela covid-19 e, desse modo, esteja vencendo sua guerra santa contra a ciência, a razão e a vida, e sim observar que, diante disso, não só milhões e milhões de pessoas seguem o curso normal de suas vidas como se não houvesse nem pandemia e nem amanhã – talvez porque, de tanto sofrer, pressintam que “na verdade não há”. 
 
Como protagonistas inertes desse Brasil cujo cotidiano, lembrando o jovem Hegel, não parece ser mais do que a “vida do que está morto movendo-se dentro de si mesma”, temos a nossa nada discreta burguesia com seu charme melífluo que cheira a cadáver. Ela e suas instituições podem cogitar tudo para solucionar a crise humanitária que assola o pais, menos, é claro, aquilo que, tal qual um celestial “fantasma da liberdade”, assuste o mundano Deus mercado, isto é, aquilo que deve ser feito, aquilo que efetivamente nos liberte. Nossas insignes pessoas da sala de jantar, ocupadas em nascer, morrer e lucrar, podem até resmungar sobre os maus hábitos de Bolsonaro e sua entourage de parvenus e lumpens que não sabem corretamente segurar o talher, mas, cínicas, sequer cogitam, a sério, impor a ele imediatamente uma plano de vacinação em massa acompanhado da manutenção do auxílio emergencial e de um lockdown nas cidades com maior taxa de contágio, internações e mortes. Nossos ilibados homens de bem podem cogitar tudo, menos, é claro, destinar parcelas do fundo público para salvar o SUS, a única entidade que, em meio a pastores, santos, Jeová e orixás, pode realmente nos salvar. Nosso senhores da Casa Grande podem se queixar das vulgares diatribes do neofascista na presidência, mas parecem saber que é com ele lá que pode se realizar, talvez, o seu mais recôndito e “obscuro objeto do desejo”: fazer dos trabalhadores e oprimidos brasileiros sujeitos “livres como pássaros”, homens e mulheres que na última das suas sete vidas shakespearianas estarão sem direitos, sem emprego, sem olfato, “sem dentes, sem olhos, sem paladar, sem nada”. 
 
Os tempos vão mudar, têm que mudar. Nós os mudaremos. E a porta, portanto, não será aberta por eles, para os quais o absurdo, o escândalo propriamente dito, não é Bolsonaro e suas genocidas aventuras, e sim a chegada ao poder de alguém que possa, para salvar vidas, taxar suas grandes fortunas. A porta terá que ser aberta por nós. Só por nós. E talvez ela nem esteja tão bem trancada assim…