A organização Mundial da Saúde reconhece o aborto com um serviço de saúde essencial desde 2012. Múltiplas organizações de saúde e de direitos humanos defendem o direito ao aborto. Os dados mostram que nos países onde a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é permitida, o número de abortos acabar por diminuir e as complicações pós-processo e mortes também decrescem. Contudo, milhares de mulheres e crianças em todo o mundo continuam a não ter acesso à IVG, sendo obrigadas a parir independentemente das circunstâncias ou arriscando as suas vidas com a realização de abortos clandestinos. Outras milhares de mulheres são (ou foram) alvo de políticas racistas de esterilização forçada como vimos recentemente nos centros de detenção nos EUA, ou então de violações recorrentes que surgem e perpetuam-se desde os tempos da escravatura, como mecanismo de dominação.
A desigualdade de acesso a serviços de saúde reprodutiva, entre elas à IVG, é evidente, ainda que a tendência dos últimos cinquenta anos tenha sido de liberalização das leis. Desde 2000, vinte e nove países expandiram as bases legais sobre as quais as mulheres podem ter acesso ao aborto.
No ano passado, fruto de grande mobilização e luta, a Irlanda legalizou o aborto. Este ano, em meio a uma pandemia, as argentinas mostraram mais uma vez a sua força com manifestações gigantes e conquistaram a aprovação do aborto na Câmara dos Deputados. Na Polónia há um enfrentamento em curso para impedir ainda mais restrições ao aborto nesse país (escrevemos um artigo sobre este tema – leiam aqui).
Ainda que existam estes avanços positivos, que reivindicamos, os ataques aos serviços de saúde reprodutiva são evidentes, tanto devido ao contexto da pandemia (cortes em muitos serviços de saúde básicos, como acesso a contraceptivos e aborto) como por conta do crescimento da extrema-direita e do conservadorismo a nível mundial (El Salvador, Polónia e Estados Unidos estão a adotar políticas no sentido de restringir ainda mais o acesso à IVG).
A legalização do aborto não é o fim da luta. Há que proteger esse direito, para que ele seja acessível para todas – quer em termos geográficos como em termos económicos. Em muitos países onde o aborto é permitido, o acesso é dificultado social e institucionalmente, desde médicos e instituições que não respeitam o sigilo médico, a falta de informação, a objeção de consciência, passando pelo estigma enorme associado à IVG. Outro problema prende-se com as condições para a sua realização, ou seja, os recursos físicos e humanos que são investidos, ficando a pasta da saúde reprodutiva como uma pasta de menor importância muitas vezes. O direito à IVG deve ser acompanhado por educação sexual inclusiva nas escolas, campanhas de sensibilização sobre relações sexuais seguras, acesso a métodos contraceptivos, acompanhamento médico e proteção laboral no caso da realização de um aborto (ou mais recentemente, por avanços nas medidas de proteção laboral no período menstrual).
O caso da Argentina
Na América Latina, o aborto legal é permitido, sem restrições, em apenas cinco países (Cuba, Uruguai, Guiana, Guiana Francesa e Porto Rico) ou em territórios específicos, como no México (permitido somente na Cidade do México e no estado de Oaxaca).
O território da América Latina tem sido sacudido, desde 2016, por grandes ondas de mobilizações, chamadas pelas mulheres, contra a violência de género, contra os femicidios e pelo direito a decidir sobre os nossos corpos. É da América Latina e do Ni Una Menos, em conjunto com a Polónia, que surge a Greve Feminista Internacional. É da América Latina que vemos resistência em tempos de pandemia e conquistas importantes, como na Bolívia, no Peru e nas recentes eleições municipais o Brasil, com uma forte representatividade de mulheres, negras/os, LGBTs nas candidaturas e eleitas para cargos.
A Argentina não fica de fora, com a recente aprovação de um projeto lei que descriminaliza o aborto até a 14º semana. A lei passará agora para o Senado (em 2018 o Senado barrou um projecto semelhante). A alteração da lei prevê que adolescentes e mulheres a partir dos 16 anos possam realizar a IVG sem serem criminalizadas e que o aborto deverá ser realizado pelo setor público ou privado, de forma gratuita, segundo o projeto de lei (na prática as pessoas que tenham planos de saúde não devem pagar nada pelo aborto, cujos gastos estarão previstos numa espécie de fundo do setor de saúde).
Na Argentina todos os anos 38 mil mulheres são internadas, vítimas de abortos mal feitos. E desde de 1983 mais de três mil mulheres morreram devido a abortos clandestinos. Só nos meses de quarentena foram registadas três mortes por aborto clandestino e a cada três horas uma criança é forçada a parir.
O direito ao aborto é uma prioridade! O Senado Argentino tem a responsabilidade de aprovar este projecto lei, que irá proteger as vidas das mulheres, dando enquadramento legal para que possam decidir sobre os seus corpos. É uma questão de saúde pública!
Estamos com as argentinas e com todas as mulheres que pelo globo levantam as suas vozes para exigir condições de saúde, de vida e de trabalho para si e para o conjunto das pessoas que sustentam o mundo.
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