“Levado em uma barca veloz, sobre águas profundas,
Attis, com passos ansiosos e rápidos,
Ele alcançou as florestas da Frígia
E entrou onde a deusa estava,
Sombria, esta: uma floresta –
Estava lá, impelido pela loucura, pela raiva,
Sua mente confusa,
Com uma pedra afiada,
Ele fez cair de si o fardo de sua masculinidade.
Então, quando ela sentiu
Que a estrutura de seu corpo
Não tinha mais masculinidade –
Mesmo quando o sangue fresco umedecia a superfície do chão –
Com suas mãos brancas e limpas
Ela pegou o tamborim,
O tamborim que é seu, Cibele,
Seu mistério, como mãe das coisas.
E fazendo o couro de boi vazio tremer com seus dedos macios,
Ela começou a cantar, com um pouco de medo,
Assim, para suas companheiras:
‘Vós, gallae, vamos, vamos para a floresta da montanha de Cibele […]’”
Catullus, Poema 63
http://aestheticrealism.net/poems/the-poem-of-catullus-about-attis/
As gallae (plural de galla) eram sacerdotisas da antiguidade que adoravam a deusa Cibele, a mãe de todos os deuses, ou outras deusas a ela associadas (Atargatis/Rhea e Agdistis). Elas se espalharam por várias nações, desde a Frígia (parte asiática da atual Turquia) até a Britânia (atual Reino Unido). A forma como eram retratadas pelos romanos se parece com o estereótipo de travesti: ‘louca’, ‘exagerada’, ‘barulhenta’ e ‘hipersexualizada’. Apesar de toda a perseguição, elas existiram em Roma por mais de 500 anos, até que foram criminalizadas. Utilizo o termo gallae em vez do ‘amplamente aceito’ galli (plural de gallus, masculino de galla), o que é um exemplo da masculinização e cisgenerificação da História.
Neste texto, a principal referência é a tese de bacharelado de Lucker, de 2005 (a página 1 é o início da Introdução, terceira página do arquivo PDF).
Uso o conceito transgênero com o sentido de variância de gênero, não de uma identidade psicológica de gênero. Por exemplo, muitas travestis e hijras (na Índia) não afirmam que são mulheres (ver INDEC, p. 5-6; Chettiar, 2015, p. 754-5).
Para uma datação laica, utilizo AEC (Antes da Era Comum) e EC (Era Comum) em vez de AC (Antes de Cristo) e DC (Depois de Cristo).
Quem eram as gallae?
Na Frígia, no século VII AEC, as sacerdotisas gallae serviam a deusa Matar (ou Matar Kubeleya, que pode ser traduzido como ‘Mãe da Montanha’ [isto é, que vive na Montanha] – Lucker, 2005, p. 10). Nas cidades gregas, o nome da deusa se tornou Meter Kybele e, quando seu culto foi oficializado no início do século V AEC, transformou-se em Kybele (p. 15). O culto a Kybele/Cibele foi oficializado em Roma em 204 AEC (p. 25-6) e chegou até a Inglaterra no século IV EC (p. 50).
As gala na Mesopotâmia eram prováveis ancestrais das gallae (p. 22-4). Se essa tese for verdadeira, as gala/gallae se espalharam, de leste para oeste, por todo o Império Romano em sua maior extensão territorial, no século II EC (com exceção, talvez, das regiões do norte africano).
A castração
O ritual mais importante era o Dies Sanguini (Dia de Sangue), quando as aspirantes se castravam (com remoção dos testículos ou de toda a genitália) para se tornarem gallae – a tradição dizia ser uma imitação de Attis.
Na tradição gallae da Frígia, Attis teria sido a primeira galla, ensinando às demais como deveriam servir Cibele. Na Grécia, Attis se transformou em um consorte semidivino de Cibele e as novas histórias foram removendo o significado de gênero da castração de Attis, transformando-o num ato de raiva, angústia ou loucura (p. 27-9).
Muitos classificam as gallae como ‘sacerdotes eunucos’. É uma distorção da História. A castração de um eunuco tinha o propósito de retirar-lhe a sexualidade, enquanto uma galla era vista como hipersexualizada. Os eunucos tinham altos salários e muito prestígio, desempenhavam várias funções para o imperador ou um patrocinador (patronus). Ao contrário, as gallae viviam de esmolas ou da venda do ato sexual e eram bastante marginalizadas.
‘Barulhentas’
Os rituais das gallae tinham caráter extático e envolviam cantos, gritos, tamborins, flautas, címbalos e outros instrumentos (p. 7, 17, 39, 40). Isso era apontado pelos romanos como sendo estrangeiro e não-romano. O exemplo mais nítido está no livro IV de Fasti, escrito por Ovid, que retrata a própria aparecendo para ele carregada por gallae junto a uma fanfarra de instrumentos estrangeiros. Apesar de ansioso para conversar com a divindade, o barulho o intimida e ele pede para poder falar a sós com uma das musas. A primeira pergunta era porque a deusa é honrada por um estrondo estrangeiro, o que parecia estranho para o senso de decoro romano (p. 37).
‘Hipersexualizadas’
As gallae eram retratadas como sexualmente perversas ou promíscuas (p. 74), o que seria uma característica estrangeira e não-romana (p. 54). Lucker argumenta:
Os romanos introduziram várias novas linhagens no culto de Cibele. Anteriormente, a adoração de Cibele, apesar de ser chamada de deusa-mãe, não estava relacionada com a fertilidade. As estátuas dela com crianças são raras. Em Roma, no entanto, ela foi associada à fertilidade, abundância e sexualidade de uma forma até então desconhecida por seu culto. Iconografia de órgãos sexuais humanos, bem como cestas de frutas, amantes abraçados e Attises retratados com mantos puxados para revelar as genitálias são comuns no culto romano, mas não eram associados à adoração de Cibele em outros lugares.
(p. 26)
Hoje em dia, o discurso de que “a homossexualidade veio de fora” está na boca dos fundamentalistas de muitos países.
Há outra razão para a visão das gallae como hipersexualizadas em Roma: o fato que elas sobreviviam de esmolas e venda do sexo. Isso porque, na Frígia, as gallae eram mais bem vistas e prestigiadas (p. 31, 53-4). Na Grécia, a condição das gallae tornou-se marginal (eram vistas como não-gregas, p. 63) e tudo indica que essa marginalidade se acentuou em Roma.
‘Loucas’
Os textos sobre as gallae frequentemente as retratam como loucas, o que seria a causa de seus rituais, em particular o de castração (p. 4, 29). Na visão da época, essa loucura era infligida pela própria Cibele, para que homens se tornassem gallae para servir a ela. Alguns textos retratavam que espectadores do ritual Dies Sanguini eram acometidos por essa loucura e se castravam para se tornar gallae (p. 33-5, 38). Isso é apenas um exemplo de como a ‘loucura galla’ era vista como contagiosa.
Isso era uma visão distorcida que se tinham das gallae em sua própria época – havia um longo processo para que uma pessoa pudesse se tornar uma galla, como era comum em qualquer papel religioso (p. 55-6).
Outra evidência de que elas eram vistas como loucas era a necessidade que elas fossem vigiadas. Esse era o papel do arquigallus:
“Outra adição ao culto de Mater [Cibele] foi a do archigallus. O archigallus era uma figura de culto com uma quantidade significativa de poder que tinha uma posição de autoridade sobre os gallae. Não parece ter sido uma necessidade para o arquigalo que ele fosse castrado; de fato, esculturas de archigalli enfatizam certas características faciais masculinas que teriam sido suavizadas pela castração. Depois da época de Claudian, o arquigallus era um cidadão com alguma influência na sociedade romana e não teria permissão para ser ‘gallicizado’. No final do Império Romano, o arquigalo parece representar alguém de fora cuja tarefa era supervisionar as atividades de um grupo do qual ele não fazia parte.”
(p. 27)
A aparência feminina
Alguns textos antigos sobre as gallae eram mais favoráveis a elas, outros contrários, mas praticamente todos eles evidenciam aspectos que eram considerados símbolos femininos na época, ou que os próprios textos afirmavam ser femininos. Por exemplo: roupas (p. 1, 10, 32), maneira de dançar, penteado, registro vocal, perfumes (p. 1), “pescoços femininos” (p. 37), o corpo, os membros (Poema 63 de Catullus), roupas brilhantes, maquiagem pesada, joalheria, cabelos descoloridos e encaracolados (Hales, 2002, p. 91), etc.
O papel feminino
Catullus, em seu poema, indica que o papel de uma galla era feminino, uma exigência de Cibele. Isso corresponde a uma expectativa da época: por via de regra, as deusas eram servidas por funções religiosas femininas, enquanto os deuses, por funções masculinas.
Um epigrama de Marcial (3.81) deixa bastante nítido que o papel sexual de uma galla deveria ser feminino (caso contrário, ela deveria ser decapitada):
“What is a female slit to you, Baeticus Gallus?
This tongue is supposed to lick male crotches.
Why was your dick cut off with a Samian shard,
if the pussy was so satisfying to you, Baeticus?
Your head should be castrated: for though you are admitted
because you have the groin of one of her priests [gallus],
nonetheless you betray the rites of Cybele:
in the mouth you are a male [vir].”
(Martial Epigrams 3.81 Translation: Faris Malik)
“O que é uma fenda feminina para você, Baeticus Gallus?
Essa língua deveria lamber as virilhas masculinas [inglês: male crotches].
Por que seu pau foi cortado com uma lâmina sâmia,
se a buceta lhe agradava tanto, Baeticus?
Sua cabeça deve ser castrada: embora você seja admitido
porque você tem a virilha de um dos sacerdotes [gallus] dela,
no entanto, você trai os ritos de Cibele:
na boca, você é um macho [vir].”
(p. 47)
‘Nem homens, nem mulheres’ ou ‘falsas mulheres’
Havia, entretanto, um duplo critério em relação a como as gallae eram tratadas. A expectativa ou exigência de que elas cumprissem um papel feminino não significava considerá-las mulheres – elas seriam falsas mulheres (p. 35), ou “nem homens nem mulheres”. Por exemplo, do ponto de vista jurídico, estabeleceu-se (em 77 AEC) que elas não tinham direito à herança, pois apenas homens e mulheres poderiam tê-los (p. 26, 62).
Ao longo de séculos, o Senado aprovou várias leis contra as gallae (p. 49), por exemplo proibindo que qualquer cidadão romano se tornasse galla (p. 67) e qualquer galla retornasse ao papel masculino (p. 61 – essa é uma diferença significativa com os eunucos).
A criminalização das gallae (e de qualquer identidade social semelhante)
O Código Teodosiano (uma compilação de leis de 291 a 437 EC publicada em 438 EC) contém um artigo que, segundo muitos historiadores, é obscuro e pode ser interpretado de várias maneiras. Obscuro só para quem usa óculos cisgênero.
O que há de confuso numa lei que diz que uma pessoa que condena seu corpo de homem para agir como uma mulher e se parecer com uma mulher deve expiar seu crime nas chamas da vingança à vista do povo?
Mas, para não deixar dúvidas, deixo isso para outro texto, onde vou apontar as semelhanças dessa lei com outros textos de cristãos da mesma época – que falam sobre as gallae e outros papeis religiosos em outras partes do mundo.
Referências
[1] Lucker, K. A, 2005. The Gallae: Transgender Priests Of Ancient Greece, Rome, And The Near East. Bacharel Thesis. Sarasota: New College of Florida. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://s3.amazonaws.com/arena-attachments/539632/d6348aa09f4510eb5704b6da501f9e7d.pdf
[2] INDEC, 2012. Primera Encuesta sobre Población Trans 2012: Travestis, Transexuales, Transgéneros y Hombres Trans. Informe técnico de la Prueba Piloto Municipio de La Matanza 18 al 29 de junio 2012. Buenos Aires. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://www.indec.gob.ar/micro_sitios/WebEncuestaTrans/pp_encuesta_trans_set2012.pdf
[3] Chettiar, Anitha, 2015. Problems Faced by Hijras (Male to Female Transgenders) in Mumbai with Reference to Their Health and Harassment by the Police. International Journal of Social Science and Humanity, 5(9), pp. 752–759. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: http://www.ijssh.org/papers/551-W10007.pdf
[4] Hales, Shelley, 2002. Looking for eunuchs: The galli and Attis in Roman art. In Tougher, Shaun (ed.). Eunuchs in Antiquity and Beyond. The Classical Press of Wales and Duckworth.
[5] Martin, Dale B., 2009. The Greco-Roman World [vídeo]. Acessado em 22/12/2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ecpn3bkVvv0&list=PL279CFA55C51E75E0&index=3
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