Manifestações no Peru sinalizam um 2021 de levantes populares na América do Sul


Publicado em: 23 de dezembro de 2020

Mundo

David Cavalcante, de Recife, PE

Esquerda Online

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O ano de 2020 terminará como o pior ano de muitas gerações. Neste 17 de dezembro, o mundo registrou, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, 1.643.339 mortes vítimas da Covid-19, sendo que, na região das Américas, já são pelo menos 792.207 mortes. E a curva semanal de contaminação e de vítimas letais continua ascendente em muitos países, desde pelo menos o mês de outubro. 

Além das vítimas fatais, com a paralisação das forças produtivas e um ciclo econômico recessivo, há fortes impactos na economia com o aumento qualitativo do desemprego e da precarização do trabalho que podem, no próximo ano, despertar grandes revoltas populares dos trabalhadores, das nações indígenas e de vários segmentos sociais que estão sendo vítimas de uma necropolítica no continente associada à pandemia, ao abandono das políticas públicas de saúde e à imposição de reformas trabalhistas neoliberais, além de uma feroz privatização e desmontes das estruturas estatais para favorecer os grandes grupos econômicos privados.   

No entanto, antes da pandemia, ainda em 2019, apesar das desigualdades nacionais que deixaram principalmente o Brasil e Uruguai na retaguarda, alguns países já sinalizaram novos ventos do despertar para uma relação de forças sociais e políticas mais favoráveis às lutas democráticas e contra a degradação da vida imposta pelo neoliberalismo, na América do Sul. Podemos destacar como sinais positivos:

  1. Na Venezuela, as derrotas das tentativas diretamente golpistas da farsa da ajuda humanitária e da quartelada lideradas por Juan Guaidó, no primeiro semestre, que culminaram na divisão da oposição pró-imperialista e sua perda da Assembleia Nacional, neste dezembro de 2020;
  2. No Chile, as gigantes manifestações contra Piñera, em outubro/novembro, mesmo diante de dezenas de mortos e milhares de feridos, conseguiram um referendo por uma Assembleia Constituinte, desaguando numa votação de 78% por um SIM a uma nova Constituição, em outubro deste ano;
  3. Na Colômbia, o Governo de Ivan Duque é derrotado nas eleições regionais e municipais, incluindo Bogotá, e em novembro, ocorrem tsunâmicas manifestações dirigidas pelas organizações do movimento operário e popular, que são retomadas parcialmente em setembro deste ano, apesar de não terem derrotado o governo no Congresso; 
  4. Na Bolívia, em novembro de 2019, houve um trágico Golpe contra Evo Morales, liderado pelo agronegócio da Meia Lua com apoio das Forças Armadas e dos EUA, mas já em 2020, o MAS sai como o grande vencedor das urnas já no 1º turno, derrotando as forças da direita e golpistas, no mês de setembro, com a vitória de Luis Arce do MAS;
  5. No Equador, em outubro, refletindo o giro à direita do Presidente Lênin Moreno, que tentou implementar um pacote de medidas que iria aumentar o preço das passagens e combustíveis, além de outras reformas neoliberais, houve uma rebelião nacional dirigidas principalmente pela CONAIE e outras organizações populares contra o governo e o Congresso que enfrentou a brutal repressão das forças militares, fazendo o governo recuar
  6. Também na Argentina, após várias greves e enfrentamentos dos trabalhadores, a direita liberal, encabeçada pelo então presidente Mauricio Macri, é derrotada nas urnas no 1º turno, por Alberto Fernandez, em outubro de 2019.

Neste caminho, chamaram atenção os grandes protestos de rua com eixos democráticos ocorridos no mês de novembro/dezembro, no Peru, um país cuja memória social e política ainda remontam à ditadura de Alberto Fujimori, que governou o país de 1990 a 2000 e implantou um duro choque neoliberal no país, perseguindo e assassinando líderes sociais, se baseando na criminalização dos movimentos sociais, associando-os ao terrorismo após sua vitória militar contra as guerrilhas do Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Tupac Amaru.

O governo de Fujimori, ficou internacionalmente conhecido pelo escândalo de ter imposto, junto com o apoio dos EUA, um programa de esterilização forçada de cerca de 314 mil mulheres, e  depois de uma década do seu fujichoque neoliberal e ditatorial, que chegou a privatizar 184 empresas estatais, abrindo por completo as fronteiras para investimentos estrangeiros, e desmontar o sistema de proteção à saúde e educação públicas, após escândalos em seu governo, fugiu do país numa viagem internacional e renunciou à Presidência, sendo depois condenado e decretada sua prisão.

O fujimorismo, além dos seus filhos herdeiros de sua política, deixou um saldo de destruição da economia, criminalização, perseguição e desaparecimento de opositores, além de um entulho institucional autoritário e antissocial, que só poderão ser superados por uma nova Constituição, como bem defende a pré-candidata à Presidência Verónika Mendoza, de Nuevo Peru, pela frente de esquerda denominada Juntos por Peru, que desenvolve uma campanha nacional pela Assembleia Constituinte. 

Crise institucional em 2020

A crise institucional atual no Peru tem origens em 2016, numa operação jurídico/policial também chamada Lava Jato, a qual foi impulsionada pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos em associação com promotores daquele país. O envolvimento de vários políticos, ex-presidentes e lideranças de vários partidos aumentou a pugna entre as frações da classe dominante e entre setores do Congresso Nacional e a Presidência, o que fortaleceu o sentimento de revolta da população contra os políticos e o Congresso.

Em outubro deste ano, Martin Vizcarra, já no exercício da Presidência como sucessor do então titular, Pedro Paulo Kuczynski, sofreu uma espécie de impeachment que é um processo de julgamento político, previsto na legislação peruana, cujo teor é de julgamento por “incapacidade moral permanente”. 

A tramitação da moção parlamentar denominada de “vacância moral” foi aprovada em 20 de outubro de 2020, impulsionada principalmente pelas bancadas dos partidos de direita, União por Peru, Podemos Peru e pelo partido de esquerda, Frente Ampla, por supostos casos de corrupção do presidente durante seu mandato como governador regional no passado recente, e depois teve sua admissão em 31 de outubro, com apenas 19 votos em contrário dos 130 parlamentares, 4 abstenções e 2 ausências. Tal processo jurídico/político concluiu com a destituição de Vizcarra, que por sua vez já havia dissolvido o Congresso em outubro de 2019, para enfrentar a bancada fujimorista.

No complexo de um singular sistema semipresidencialista peruano onde o parlamento, apesar de ter o poder de facilmente destituir o próprio presidente, por previsão na Constituição de 1993, também pode ser dissolvido quando o parlamento se recusa a dar voto de confiança a dois gabinetes de ministros do mesmo governo, oportunizando ao presidente o poder de dissolvê-lo e convocar eleições legislativas, as quais ocorreram no início de 2020. Uma medida bonapartista que teve apoio de setores populares. 

Ocorre que a destituição de Vizcarra e a eleição indireta de Manuel Merino somente durou 5 dias, pois a fúria popular foi tamanha que abalou o grande acordão forjado nas salas do parlamento sem a participação do povo que temia entre outras medidas, o cancelamento das eleições que já estão no calendário para abril de 2021. 

De modo que o tiro do impedimento saiu pela culatra. As massas saíram a protestar, pois o povo entendeu que o impedimento de Vizcarra foi uma operação golpista e pelas manifestações de rua, forçando com auto-organização popular com destaque para a juventude e as mulheres, a renúncia de Merino e a eleição de outro nome, o de Francisco Sagasti, de um partido de centro que não tinha apoiado o impeachment, o Partido Morado, que possui somente 9 deputados. 

Francisco Sagasti.

Não se sabe até onde Sagasti irá atender quaisquer das reinvindicações populares levantadas nas ruas pelas novas gerações, incluindo aí o combate à corrupção. O fato é que o despertar democrático dos novos movimentos sociais e das massivas manifestações populares já inscreveram na história contemporânea do Peru que sim, é possível derrotar governos nas ruas, mesmo quando a maioria do Congresso e dos partidos não está sintonizada com as necessidades das maiorias.  


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