Relato coletado e transcrito por: Luciana Nogueira
Texto organizado por: Monica Vasconcellos Cruvinel
Revisão: Luciana Nogueira
Equipe: Resistência Feminista Campinas / Grupo de Pesquisa Mulheres em Discurso – Unicamp
Atores somos todos nós, e cidadão não é aquele
que vive em sociedade: é aquele que a transforma
(Augusto Boal)
A Escola de Artes Augusto Boal é um projeto da Prefeitura de Hortolândia que oferece formações em dança e teatro à comunidade, com componentes curriculares práticos, teóricos e de criação artística, por meio de montagens de grupos. As formações têm carga horária total de 1.160h/aula em cada curso e permitem ao aprendiz pleitear, ao final do curso, o registro profissional (DRT), junto ao sindicato da categoria, possibilitando sua inserção profissional.
Vale lembrar que Augusto Boal (que dá nome à escola) foi um dos dramaturgos brasileiros que mais contribuiu para a formação de um teatro brasileiro e latino americano que abarcasse as dimensões políticas e sociais de nosso país e da América Latina. Foi o criador do Teatro do Oprimido, uma técnica mundialmente conhecida. Suas obras e suas ações tinham um caráter revolucionário, marcados pelo desejo de que o teatro trouxesse respostas e apresentasse questionamentos e alternativas aos conflitos sociais.
A seguir, os relatos de uma arte-educadora e de dois aprendizes da Escola de Artes Augusto Boal, de Hortolândia, que reafirmam o caráter revolucionário da atuação destes artistas em tempos de pandemia e desgoverno.
JULIANA CALLIGARIS, ARTE-EDUCADORA, 46 ANOS
DATA DO RELATO: 02/09/2020
NA LINHA DE FRENTE DA SAÚDE DA ARTE
Segue meu relato pra falar dessa linha de frente. É uma outra linha de frente, de outro tipo de saúde. Como diriam os gregos: da saúde da alma, da saúde do espírito, no sentido filosófico que é a arte. Meu nome é Juliana Calligaris, eu sou atriz, professora, pesquisadora e diretora teatral há quase trinta anos. E nesse semestre, nós, arte-educadoras e arte-educadores convocamos as alunas e os alunos da Escola de Artes Augusto Boal, que fica na periferia de Hortolândia, para que retomássemos as atividades da escola [de maneira] online.
A Escola de Artes, ela é a princípio uma escola nominal, ela não existe enquanto instituição, mas é uma oferta da prefeitura de Hortolândia de cursos profissionalizantes de teatro e dança, com carga horária deferida pelo SATED (Sindicato dos Artistas e Técnicos de Espetáculos e Diversões do Estado de São Paulo), portanto, o aluno, a aluna podem, após concluírem todas as componentes curriculares, apresentarem seu histórico escolar lá no sindicato e requererem o seu registro profissional chamado de DRT.
A RESISTÊNCIA E A LUTA DE ESTUDANTES SEM ACESSO À INTERNET
Essa escola, portanto, fica dentro de um Centro Cultural no Jardim Amanda II, na região periférica da cidade de Hortolândia, quase divisa com a cidade de Monte Mor. Os alunos e as alunas, muitas vezes sofreram ou sofrem por questões de vulnerabilidade social, desamparo social. A população é mormente uma população negra ou afroindígena. Há uma grande quantidade de mulheres e jovens mulheres participando das atividades da escola nos cursos de formação em arte dramática e dança e eu sou professora do curso profissionalizante de arte dramática e na disciplina de caracterização, maquiagem, figura e indumentária e mesmo assim a gente resistiu [à pandemia].
Muitos alunos e alunas resistiram participando da disciplina pra não perderem o semestre, participando das várias disciplinas, não só da minha, e muitas vezes sem internet em casa, tendo que usar internet de estabelecimentos comerciais como hotéis ou padarias ou lojas vizinhas das suas casas, ou muitas vezes caminhando, ficando expostos na rua pra usarem internet de estabelecimentos comerciais, longe de suas casas, não do lado, não tão perto, mais distantes, e ainda assim aproveitando essa internet pra conseguir fazer as aulas. São pessoas que têm uma dificuldade de acessar a internet, de inclusão digital, às vezes dependem de outra pessoa emprestar um dinheiro pra por um crédito numa conta pré-paga, e essa pessoa, mesmo sem emprego faz um bico, arranja um dinheiro pra pagar aquela pessoa da família ou um amigo distante ou mesmo a vizinha que emprestou trinta reais para esse aluno, essa aluna colocarem crédito pra fazerem as aulas que aconteceram semanalmente desde maio até julho, quando a gente encerrou o semestre.
O curso foi finalizado com a mostra de artes cênicas, a MAC, várias aprendizes, vários aprendizes como nós o chamamos e a chamamos; finalizaram com cenas maravilhosas, usando internet emprestada, dessa forma como eu descrevo aqui, e tudo isso pra que não deixassem, não perdessem as aulas, pra que não perdessem o semestre.
O TRABALHO NÃO REMUNERADO, DE PROFESSORES E PROFESSORAS, GARANTIU QUE APRENDIZES NÃO DESISTISSEM DO CURSO
Nós, como professoras e professores fazendo atendimento extraclasse, via WhatsApp, pra amparar esse aluno, essa aluna, esse aprendiz, essa aprendiz pra que não desistissem. E sem ter nenhuma remuneração extra por isso, a gente, no meu caso, especificamente falando de mim, eu trabalhei muito extra aula, as minhas aulas aconteceram todas às terças-feiras, das 19 às 21 horas, pra que eu pudesse amparar essa aluna, esse aluno com material de reforço, com material extraclasse, refazendo praticamente a aula toda, tendo retrabalho quando o aluno perdia uma conexão com a internet por conta da precariedade ou porque os créditos acabavam, ainda assim a gente resistiu oferecendo os cursos, no meu caso oferecendo a minha componente curricular.
Eu tenho vários relatos de alunos e alunas que podem eles mesmos e elas mesmas falarem por elas sobre as dificuldades e as superações que essas pessoas tiveram para fazer as aulas. De minha parte fica aqui a nossa militância como arte-educadoras, no meu caso como arte-educadora que insistiu em oferecer o trabalho, mesmo não remunerado, fora do horário da aula, pra que essas populações de alunos e alunas não desistissem das nossas componentes na Escola de Artes Augusto Boal. Obrigada pela oportunidade desse relato e eu espero que ele fique aí marcado como um relato sim da linha de frente, da militância nas artes, da saúde das artes, da saúde alma, do espírito, do bom, do belo e do justo. Meu forte abraço.
FERNANDA ALVES, 20 ANOS, APRENDIZ DE ARTISTA E TOSADORA
DATA DO RELATO: 08/09/2020
A APRENDIZ
Meu nome é Fernanda Alves, tenho 20 anos, moro em Hortolândia – SP. Sou aprendiz da Escola de Artes Augusto Boal, estava terminando meu quarto semestre, tive apenas duas semanas de aula, duas a três semanas de aula antes da pandemia paralisar todas as atividades e a gente tava começando a montagem teatral, começando a montar uma peça pra apresentar na MAC, começando com as aulas de maquiagem, começando o processo de aprendizagem de todas as matérias, que foi cortado.
Aí depois de algumas semanas houve a proposta de termos uma aula online por encontros via WhatsApp ou aplicativos, antes de ser regulamentado um aplicativo certo que foi pelo 8×8 eu acho… Antes de ser regulamentado o aplicativo certo.
Porém, quando recebemos a proposta de continuarmos as aulas online, eu me encontrava em dificuldades porque, ano passado, meu pai faleceu e a gente perdeu a nossa fonte de renda. Tivemos que nos mudar de casa. Moramos só eu e minha mãe aqui.
AS DIFICULDADES PARA ACESSAR AS AULAS ONLINE
Hoje a gente vive com a ajuda do auxílio e eu faço um bico lá num pet shop, então a nossa realidade financeira, ela é bem complicada e por causa disso, nessa casa nova eu não tinha acesso ao Wifi e também não tinha dinheiro pra por créditos, então eu encontrei essa dificuldade de não ter acesso à internet em casa.
Pra resolver o problema, eu me deslocava uns dois metros. Eu ficava sentada na calçada de uma adega que tem na minha rua, eu ficava na calçada e eu usava a internet do dono da adega para quem eu pedi emprestado. Ele foi muito legal de me emprestar, então eu ficava na calçada.
Tinha também essa coisa que às vezes eu ia lá e ele falava: “ah, se você quiser eu coloco uma cadeira aqui dentro e você acessa as aulas aqui dentro”. Só que como mulher eu fico um pouco… a gente ainda tem aquilo de não se sentir cem por cento segura, né? Então eu não me sentia cem por cento segura, mesmo ele sendo um cara bacana, aparentemente, não conheço ele a fundo, eu conheço de conversar, mas existe esse medo inerente na gente e eu não me sentia cem por cento confortável, então eu preferia ficar na calçada.
E sempre chegavam pessoas pedindo alguma coisa, o que me atrapalhava um pouco na concentração. Pessoas comprando na adega e também coisas como o frio, me incomodavam. As aulas ocorriam até às 9 horas [21h], então tinha isso de eu ficar à noite na calçada. É… foi bem complicado, mas foi a maneira que eu consegui resolver de participar das aulas porque eu não queria perder o semestre. É… depois de algum tempo, no mês de junho, eu recebi a ajuda de uma amiga que me ajuda a pagar wifi aqui em casa, então depois disso eu respirei um pouco e consegui acessar as aulas de maneira bem mais fácil, mas o começo, ele foi um grande desafio.
DANIEL FRANCISCO, 22 ANOS, APRENDIZ DE ARTISTA
DATA DO RELATO: 08/09/2020
O APRENDIZ
Eu me chamo Daniel Francisco e sou aluno do curso de teatro profissionalizante da Escola Augusto Boal e eu venho aqui falar um pouco como foi minha experiência em ter aulas de maneira virtual.
O curso lá na escola é presencial, ainda mais sendo teatro que tem uma parte física muito grande, foi bem diferente, mas, eu vou falar sobre outras questões, sobre o que essa pandemia evidenciou ainda mais.
Eu sou muito privilegiado porque veio a pandemia e eu tinha um computador bom, uma internet boa, apoio da família em casa em relação a esse meu sonho de ser um ator, então, pra mim foi fácil passar por essa situação se comparado com os meus colegas.
Quando eu entrei no curso, eu entrei com uma determinada turma e essa turma continuou comigo até o semestre passado, quando começou a pandemia. Só que infelizmente, por conta dessa situação, alguns dos alunos, por não conseguirem ter acesso a uma internet boa ou por não terem um computador, não puderam participar, continuar participando das aulas ou participar inteiramente das aulas. Sempre a internet caindo, não conseguindo entrar no site pra poder ter a aula.
Tudo isso foi muito triste de se ver porque eu passei meses com eles, são meus amigos e aí ver que por conta disso, eles não puderam ter acesso às aulas foi difícil.
A EXCLUSÃO SOCIAL AINDA MAIS EXPOSTA PELA PANDEMIA
Eu sei que isso aconteceu pelo Brasil todo, acredito que pelo mundo inteiro, muitas pessoas não têm condições de ter um computador, não ter internet em casa e essa pandemia, essa situação toda só evidenciou isso, as diferenças sociais que existem no Brasil, que são muito grandes.
Boa parte da população, muita gente, não tem um acesso a essas ferramentas, e aí como fica a situação dessas pessoas? Fica ainda pior porque é como se fosse uma eliminação, tipo: “ah, por você não ter isso, você não vai ter acesso, eu não posso fazer nada por você”. E aí essas pessoas ficam na mão, ficam sem acesso. No caso, o curso é gratuito, mas essas pessoas, mesmo sendo gratuito, elas não puderam fazer por causa dessa situação. Então, é muito triste, muito triste mesmo, e eu espero que a situação melhore, por diversos motivos e esse, inclusive, é um deles.
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