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MUNDO

Eleições parlamentares na Venezuela: balanço e perspectivas

Elio Colmenarez, de Caracas (Venezuela)

Tradução: Celia Regina Ramos

 

A eleição da Assembleia Nacional (AN) se deu em circunstâncias especiais, e seus resultados – 31% de participação e uma nova vitória chavista – deu espaço para as mais diversas interpretações, que colocam tanto como vitoriosos como derrotados os diferentes lados.

Foi o 26º processo eleitoral desde a eleição de Chávez em 1998, o quarto de século com mais processos eleitorais em toda a história, e a quinta eleição do parlamento desde a aprovação da Constituição da República Bolivariana (1999).

A derrota do chavismo na eleição anterior (2015) transformou a AN no centro do ataque, com apoio dos Estados Unidos, contra o governo chavista. No momento da instalação da AN naquele ano, foi anunciada a saída de Maduro em um prazo de seis meses, um eixo de atividade incomum para um órgão legislativo. A decisão do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), que ordenou a realização de nova eleição de deputados no estado Amazonas (três do total de 165, dois de oposição e um chavista), por causa de denúncias prévias sobre compra de votos, foi rejeitada por aquela AN de maioria opositora, razão pela qual o TSJ a declarou em desacato, permitindo que o governo não reconhecesse suas decisões.

Mesmo em desacato, a AN atuou diretamente contra o governo. Depois do fracasso de um impeachment (2016), da ativação de um “referendo revogatório” (2017), a AN será o eixo para estratégia dos Estados Unidos e do Grupo de Lima de montagem de um governo paralelo, colocando o presidente da AN, Juan Guaidó, como presidente interino, figura contemplada pela constituição para casos de ausência definitiva do presidente, por um período não maior de 30 dias, e com a única faculdade de convocar eleições, mas não para um governo paralelo que já tem dois anos.

Em cinco anos, a AN revogou leis chaves da revolução (as de terras, hidrocarbonetos, sistema bancário, moradia, meios de comunicação, etc.) e aprovou leis de privatização, de recuperação econômica sob a direção do FMI, que não foram aplicadas por causa de sua condição de desacato, mas que esperavam pela chegada do “novo governo”. Também pretendeu legitimar as agressões imperialistas, a intervenção militar e a apropriação de bens da República no exterior e seu uso “em favor da restituição da democracia na Venezuela”. Autorizou representações diplomáticas paralelas e criou um Tribunal Supremo e uma Promotoria “no exílio”, para agredir a Venezuela.

Tirar da direita o controle da AN era vital para a revolução bolivariana, com eleições em meio a uma grave crise econômica que é consequência, principalmente, do bloqueio imposto pelo imperialismo. A direita se dividiu, apesar da pressão e da ameaça dos Estados Unidos de aplicar sanções pessoais para quem participasse das eleições.

Com base nas negociações iniciadas na Noruega, foi designada uma direção do CNE (Conselho Nacional Eleitoral) e aumentou-se o número de deputados, de 165 para 277, diminuindo a proporção de deputados nominais (de 79% para 49%), e criou-se a figura de deputados nacionais (48). Mas também entre o chavismo as diferenças internas em relação à política econômica e a seleção dos candidatos levaram ao surgimento da Alternativa Popular Revolucionária (APR) e à apresentação de listas de candidatos separadas das do PSUV.

A permanente ameaça imperialista, a gravíssima situação econômica e os atritos políticos internos, tanto na direita, incluindo o imperialismo, como no chavismo, são um marco indispensável para a interpretação dos resultados das eleições parlamentares. Com uma participação de pouco mais de 30% (6,25 milhões de votos), a votação se distribuiu em 69,43% para o Polo Patriótico (aliança do PSUV e outras organizações chavistas); 17,72% para a Aliança Democrática, conformada por várias organizações de oposição (AD, COPEI, El Cambio, Cambiemos e Avanzada Progresista); 4,15% para uma segunda aliança de oposição (PDV-VP), integrada por rupturas dos partidos Primeiro Justiça e Vontade Popular (o partido de Guaidó); e 2,7% para a aliança do PCV e APR, com candidatos chavistas separados do Polo Patriótico. Outras organizações, a maioria regionais, que participaram por fora dessas alianças, somaram os 6% restantes.

Esse resultado corresponde à votação nacional, que se aplica a 48 deputados. Outros 96 deputados são eleitos em listas regionais, que dependem dos resultados em cada estado, 130 pelos circuitos, eleitos de forma nominal, e 3 deputados correspondem aos povos indígenas, cujo processo de eleição é separado e de acordo com suas tradições. Por essa razão, o resultado nacional divulgado pela imprensa não reflete a distribuição final da AN, na qual ficam 253 cadeiras para o Polo Patriótico, 18 para a Aliança Democrática, 2 para PDV-PV e 1 para PCV-APR.

A abstenção eleitoral

A imprensa, refletindo a posição dos Estados Unidos, dá ênfase na baixa participação para argumentar falta de legitimidade do processo eleitoral, o que, lamentavelmente, é repetido por setores da esquerda, cujo antichavismo os leva a fazer coro, sem critério próprio, com o discurso da direita, atribuindo a abstenção a um repúdio ao processo eleitoral e derrota do chavismo. Mas enquanto a UE criticava o processo eleitoral venezuelano, paralelamente eram realizadas eleições parlamentares na Romênia com uma participação equivalente (31%) atribuída à pandemia, e não se questionou a legitimidade dessa eleição.

As razões para a abstenção cobrem um amplo espectro. Efetivamente, há um setor militante pela abstenção, favorável à intervenção imperialista, mas também, no outro extremo, há setores, que tradicionalmente votam no chavismo, que não sentiram atração por um processo carente de polarização e com resultados previsíveis. Não foi como as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, há três anos, quando a população teve de evitar as barricadas e enfrentar os guarimberos [NT: ativistas da ultradireita que realizaram, em várias ocasiões nos últimos anos, ataques a edifícios públicos e a pessoas consideradas chavistas, e impediam a entrada de moradores em seus bairros, atos estes conhecidos pelo nome de guarimba], que destruíram vários locais de votação. Desta vez não houve uma única manifestação para promover a abstenção, além daquelas nas redes sociais e nas entrevistas nos meios de comunicação. De fato, foram as eleições mais pacíficas dos últimos trinta anos, e muita gente estava nas praças desfrutando do início da temporada natalina e de um período de flexibilização da quarentena. Não é possível, então, atribuir a abstenção a uma única opinião política, muito menos apresentá-la como um questionamento à legalidade das eleições.

Por outro lado, há dados, numéricos e históricos, que são esquecidos de propósito. Uns 2,4 milhões de emigrados fazem parte dos eleitores inscritos (a oposição sempre fala de 6 milhões, mas agora nem toca no assunto), o que representa pelo menos 12% da população que não participou do sufrágio. Tampouco estas foram as primeiras eleições parlamentares sabotadas pelo imperialismo. Em 2005, Condolezza Rice, Secretária de Estado de Bush, assumiu a reorganização da oposição golpeada pela derrota no referendo revogatório (2004). A “senhorita arroz”, como Chávez a chamava, prevendo uma derrota, ordenou que os partidos subvencionados pelos Estados Unidos se retirassem do processo eleitoral para deslegitimá-lo. Naquele momento, havia uma intensa mobilização popular favorável à revolução e uma economia em crescimento, o que obscurecia as ações de sabotagem da burguesia e do imperialismo, mas a abstenção chegou a 75%.

Tal como agora, os especialistas analistas atribuíram a abstenção à campanha por ela e anunciaram a débacle do chavismo. Mas um ano depois Chávez derrotou o candidato unitário da oposição, Manuel Rosales, com uma votação recorde de 65%. Com vários anos de bloqueio, a economia destruída e atritos internos dentro do chavismo, o fato de que a participação tenha sido superior à de 2005 é muito difícil de ser apresentado como uma vitória do abstencionismo antichavista. Mesmo assim, somam-se as porcentagens do PP e do PCV-APR (1,87%), a votação do chavismo é superior à de 2005, um patamar de 20% do total do eleitorado, o que nenhuma corrente governante entre os países do grupo de Lima tem. Portanto, a abstenção não pode ser apresentada, a priori, como uma derrota do chavismo, que conseguiu recuperar o parlamento.

Mas tampouco a baixa participação dá motivos para o chavismo comemorar. A Covid, em um dos países com maior controle da pandemia, não influiu na participação. Esta, nos bairros pobres, foi de quase 40%, mas nos de classe média não chegou a 20%. As equipes chavistas de mobilização tiveram dificuldades para mover as pessoas para votar. Sem choques, houve resistência. Certamente a ausência de polarização influiu. Inclusive, Maduro desafiou a direita, anunciando que se ela ganhasse de novo o parlamento ele renunciaria, tentando impulsionar a confrontação e animar o sentimento chavista, mas não surtiu efeito. O problema é que mesmo sem haver apoio à direita há descontentamento, falta de esperança, e a apatia e despolitização prevalecem em um importante setor da população, sobretudo entre os mais jovens, como resultado do retrocesso imposto pela situação econômica.

A débacle da direita

O domínio dos Estados Unidos sobre a atividade opositora, desde 1999, produziu uma metamorfose da oposição. Os partidos do Pacto de Punto Fijo, que dominou o país durante 40 anos – AD (social-democracia) e COPEI (social-cristão) -, incorporando os que provinham da velha esquerda, o MAS (com uma breve passagem pelo chavismo) e a Causa R, implodiram quando a atividade golpista, no primeiro governo de Chávez, se concentrou na sociedade civil, evitando os velhos partidos. Centenas de ONG’s e “grupos sociais” surgiram ao ritmo da dança de dólares que a NED distribuía, para financiar a atividade opositora. Depois do fracasso do golpe e da paralisação petroleira, a “sociedade civil” sucumbiu com a vitória de Chávez no referendo revogatório (2004).

Apenas a AD sobreviveu como partido, o único com presença importante, vestígio do enraizamento popular dessa organização na etapa anterior ao chavismo. Os outros ficaram reduzidos a pequenos grupos. Dos restos da “sociedade civil” surgirá Primeiro Justiça (PJ), organizado pelo IRI, braço internacional do Partido Republicano estadunidense, e a UNT, cisão da AD, principalmente no estado Zulia, que tinha sido um baluarte fundamental da sociedade civil. Muitas ONG’s também derivaram em pequenos partidos de direita. Posteriormente, a CIA usaria setores juvenis da classe média para criar grupos de choque de ultradireita, que serão os atores das guarimbas, a partir de 2006. Embora inicialmente tenham se vinculado ao PJ, eles acabaram criando a organização de ultradireita Vontade Popular (P) e outros pequenos grupos.

A atividade opositora foram as guarimbas e as ações terroristas, que incluem o assassinato de vários líderes chavistas (Danilo Anderson, Eliezer Otaiza, Robert Serra, entre outros). No entanto, o maior triunfo da direita seria pela via eleitoral, ao ganhar as legislativas de 2015, conseguindo quase 56% dos votos (36% do registro eleitoral) e a designação de 65% dos deputados. Havia uma ofensiva imperialista sobre a América Latina, deslocando os governos progressistas da década anterior, a morte de Chávez tinha tido um impacto negativo e, em nível interno, a combinação dos efeitos do bloqueio, a queda dos preços do petróleo, o ataque à moeda e a sabotagem na produção tinham despedaçado a economia, a qual tem um forte predomínio estatal, muito dependente de importações e que havia sido construída na etapa anterior como transição ao socialismo.

Longas filas de pessoas procurando bens essenciais eram habituais. Os Estados Unidos conseguiram reunir o arquipélago opositor em torno dos “quatro grandes” (os 4G que são: AD, PJ, UNT, VP) e a palavra de ordem foi chamar a população “a fazer a última fila”. Realmente, amplos setores de classe média, que normalmente não participam das eleições, acreditaram naquele momento que uma vitória da direita acabaria com o bloqueio e a sabotagem que afetavam a economia.

A vitória conjuntural nas eleições os lançou em uma estratégia golpista, que levou a novos fracassos. A imagem de uma “iminente queda de Maduro”, possibilitada pela estratégia midiática internacional, converteu a oposição em uma federação de aspirantes presidenciais, ávidos por assumir o governo que, supostamente, cairia em poucas semanas. A vitória de 2015 e a estratégia golpista posterior foram o início da débacle opositora, para a qual também foram arrastados grupos saídos do chavismo que procuravam a conformação de um centro político (nem chavismo nem direita). A estratégia golpista desembocou nas guarimbas de 2017, que marcou o momento mais alto da luta opositora com predomínio da ultradireita, derrotadas pela mobilização e resistência da população.

A estratégia do governo paralelo, implantada em janeiro de 2019 para não reconhecer a vitória de Maduro nas eleições de 2018, não se dá em meio a um ascenso da oposição, mas em meio a sua débâcle. É um marco que, por algumas semanas, detém a queda, para depois voltar a cair, desta vez mergulhando de cabeça.

Guaidó era um total desconhecido, um operador da CIA, quadro de segunda linha da VP que assumiu a presidência da AN como parte do pacto de rodízio entre os 4G. A improvisada estratégia ditada pelos Estados Unidos teve resistência inicial da própria oposição, que não reconhecia nele nenhuma liderança, obrigando Guaidó a se auto juramentar em uma assembleia na praça, apesar de existir um parlamento dominado pela oposição. Os Estados Unidos tiveram de reconstruir a unidade detrás de Guaidó na base de dólares e a promessa de intervir “para uma rápida saída de Maduro”.

De fato, depois de 30 dias de governo paralelo, tentou-se introduzir à força uma ajuda humanitária a partir da Colômbia, como parte de um plano para estabelecer um “território liberado” ao lado da fronteira, que, com apoio internacional, servisse de cabeça de ponte contra o governo. Mas a tentativa foi derrotada novamente pela mobilização e resistência da população, além de uma total ausência de mobilização interna favorável à agressão. Dois meses depois do fracasso da ajuda humanitária, em abril, lançam uma caricatura de levante militar, novo fracasso alimentado pela falsa ideia de uma fratura na força armada bolivariana, que colocou os serviços de inteligência estadunidenses em situação ridícula.

A triste história do governo paralelo, depois desses fracassos, se reduz a mais de sessenta convocatórias para protestos com baixa participação, incluindo 29 chamados fracassados para paralisação nacional e, no começo da quarentena, uma incursão a partir da Colômbia de quase uma centena de mercenários que foi esmagada pela ação das milícias populares. Mas, à margem do fracasso político interno do governo paralelo de Guaidó, foram implementadas mais de trezentas medidas coercitivas por parte dos Estados Unidos, seguidos pela UE e pelo grupo de Lima, que pioraram a difícil situação econômica interna, e a atividade opositora se tornou um próspero negócio à custa do povo venezuelano.

Milhões de dólares, provenientes de contribuições dos Estados Unidos, da UE e de outros governos para “a instauração da democracia na Venezuela” e do embargo de contas, bens e empresas do estado venezuelano no exterior, são administrados pelo governo paralelo, o que os próprios opositores chamam de “Corporação Guaidó”. Nesses dois anos, com recursos que triplicam o orçamento nacional, enquanto a população não tem acesso a remédios, alimentos e insumos para a indústria, a “Corporação Guaidó” financia o alto nível de vida da maioria dos líderes opositores que se mudaram para o exterior, operadores de redes e meios de comunicação, escritórios de advogados e assessores econômicos, funcionários de governos estrangeiros, o funcionamento e operação do grupo de Lima, ONG’s e grupos vinculados à atividade contra a Venezuela no exterior.

As desavenças sobre o manejo dos recursos controlados pela “Corporação Guaidó” alimentaram as intrigas internas, às quais se somou, nos últimos anos, a atividade de grupos evangélicos como atores da política opositora, tal como no Brasil, que questionam a inoperância de Guaidó. Opositores denunciam o desperdício do financiamento dos que são chamados de “guaidolovers”, em detrimento da atividade política interna, praticamente desaparecida. A maioria dos “líderes” procuraram qualquer desculpa para ir para o “exílio”, mesmo que fosse por causa de uma multa de trânsito, para acessar com maior facilidade a torrente de dólares que financia a atividade contra a Venezuela no exterior.

A oposição foi capaz de organizar uma manifestação a favor de Trump nos Estados Unidos, mas não pôde realizar uma reunião em uma praça na Venezuela a favor de sua política abstencionista. As finanças têm sido a fonte principal dos enfrentamentos internos nos últimos anos.

Foi da própria oposição, e não do chavismo, de onde surgiram os escândalos de corrupção e negócios da “Corporação Guaidó”. Há alguns meses, a embaixadora de Guaidó no Chile renunciou, denunciando que os recursos “democráticos” iam para grupos que os torravam em festas. Anteriormente, aconteceu o mesmo com o embaixador na Colômbia. Depois da derrota de Trump, a embaixadora no Reino Unido renunciou, dizendo que havia enormes dívidas com ela e vários “operadores” nesse país, porque nos Estados Unidos estavam segurando os recursos. O próprio Elliot Abraham teve que responder, esclarecendo em uma coletiva de imprensa “que os salários da oposição venezuelana tiveram um atraso administrativo, mas que seriam pagos”. Tão escandalosa confissão sobre uma “oposição assalariada” não perturbou a UE, muito menos o grupo de Lima.

Em janeiro deste ano, quando deveria acontecer o rodízio do presidente da AN e os Estados Unidos decidiram prorrogar o “mandato” de Guaidó, para evitar os atritos, insurgiram-se dissidentes de vários grupos. O chavismo aproveitou para retornar à AN e apoiar o grupo contra Guaidó, o qual preferiu se ausentar para evitar a eleição. Desde então funcionam duas AN, uma na sede oficial presidida por Luis Parra, que rompeu com o PJ formando o Primeiro Venezuela, e outra presidida por Guaidó e que funciona em salões de festas das residência do leste de Caracas, ambas inoperantes. Ao terminar o período legislativo da AN, as eleições produziram a crise previsível. A decisão, sem base jurídica, de prorrogar o mandato da velha AN “até que caia a ditadura” provocou risos e novas divisões na oposição.

Certamente o governo aproveitou para incidir sobre a crise, ao favorecer judicialmente os grupos dissidentes, dando-lhes o controle das organizações e a representação eleitoral, mas a campanha de acusação sobre a oposição que participou das eleições ter sido confeccionada por Maduro, para enganar a comunidade internacional, é absurda, uma estupidez repetida por alguns grupos de esquerda. Todos os dirigentes e candidatos que participaram pela direita estiveram associados ao golpe, à paralisação petroleira e à estratégia de governo paralelo, alguns, inclusive, fizeram parte da AN de Guaidó e de seu governo fantasma.

Os analistas mais sérios reconhecem que os grupos participantes nas eleições agrupam a maioria dos ativistas opositores que realmente ainda militam, sobretudo nos grupos evangélicos surgidos recentemente, o que lhes permitiu ter uma expectativa muito maior que os 8,5% obtidos. Mas tampouco participaram em uma frente unida e se dispersaram em várias alianças, principalmene a do PDV-PV, rupturas do Primeiro Justiça e da Vontade Popular, e a Aliança Democrática, onde tampouco apresentaram listas únicas, o que dispersou sua votação e facilitou a maior atribuição de cadeiras para o Polo Patriótico, que se apresentou com lista única.

Por isso, mais além da campanha internacional contra o chavismo, os próprios opositores duvidam que mesmo que tivessem participado todos juntos, sem chamar pela abstenção, teriam derrotado o chavismo e que dificilmente teriam chegado aos 36% obtidos em 2015. A ideia de que o descontentamento crescente contra a situação econômica favoreceria a oposição era uma fantasia, porque as pessoas os veem como responsáveis pela agressão contra o país. Inclusive os grupos que saíram do chavismo nos anos anteriores, com uma política nem nem (nem Maduro nem Guaidó), se diluíram entre o abstencionismo ou candidaturas locais, sem nenhum peso nem representação.

O descontentamento e crítica contra a boliburocracia

Descartada a influência da direita, a baixa participação aponta para o chavismo. Inclusive a votação a favor do Polo Patriótico revela um voto pela pátria, anti-imperialista e contra o bloqueio, mas também leva uma carga de crítica e descontentamento contra o governo.

Cada vez há mais vozes críticas dentro do chavismo contra a política econômica, contra a crescente desigualdade social, e contra a corrupção que se evidencia no alto nível de vida de uma burocracia no governo, no partido e no exército bolivariano. O crescente predomínio da burocracia, o retrocesso do poder popular, o crescimento da despolitização são um triunfo indireto da agressão imperialista e do bloqueio, que não conseguiram derrotar a revolução bolivariana mas ganham espaços na desmoralização entre a população. Despolitização e apatia que entram nos corredores do governo, onde há desânimo e descontentamento, sendo que muitos funcionários de direção obedecem a diretrizes de grupos e camarilhas mais que a ações de governo. A corrupção ganha terreno, e também uma tecnocracia neoliberal apolítica domina os espaços de decisão econômica e de desenvolvimento. Essa é a conquista da agressão imperialista, uma boliburocracia com apetites burgueses.

Essa boliburocracia provocou desmoralização na população, conseguindo o que a agressão imperialista não pôde, e um grande setor chavista que milita abnegadamente em defesa da revolução, que entende que o inimigo continua sendo a agressão imperialista, se ressente do domínio da burocracia e dos escandalosos privilégios de alguns grupos no governo, vinculados à corrupção e aos negócios, enquanto a maioria da população depende, muitas vezes, unicamente dos programas sociais.

O povo entende as dificuldades impostas pelo bloqueio, mas não entende a inépcia para perseguir a corrupção, a especulação e os atores internos da agressão imperialista. Não entende a enorme restrição salarial, responsável pela queda da renda, enquanto a burocracia passeia por caros centros noturnos, com luxuosos SUV’s e adquirem mansões e sítios. Esse é o descontentamento que não está apenas na abstenção, mas também em muitos dos que foram votar fielmente.

Houve vários planos, cheios de medidas neoliberais justificadas com a necessidade de romper o bloqueio, que só serviram para aumentar a desigualdade social, estratificando a população em níveis anteriores a Chávez. Com certeza melhorou o abastecimento e o comércio proliferou, mas o povo continua submetido a baixos salários e hiperinflação, enquanto outros enchem seus bolsos. Existem pessoas que dependem exclusivamente do CLAP [NT: cestas básicas] e dos bônus, e outras passeiam forradas de luxos, e não estamos falando da burguesia. As pessoas querem defender a revolução, as conquistas obtidas nestas duas décadas, enfrentar o bloqueio, mas odeiam os escandalosos privilégios da burocracia e a corrupção. Por isso houve abstenção entre o chavismo e foi difícil levar gente para votar, quando ficou evidente que a direita não tinha possibilidade de ganhar.

Essa é a razão da crescente dissidência dentro do chavismo, das vozes de protesto, da reclamação de que se abandonou a construção do socialismo, que não se constrói uma economia soberana que enfrente o bloqueio. Com certeza muitos erros cometidos no passado, ainda com Chávez presidente, permitiram que o bloqueio imperialista destruísse nossa economia, mas muito da situação atual não é atribuível somente ao bloqueio.

Com o novo plano, a Lei Anti-bloqueio, aumentaram as vozes de protesto dentro do chavismo. Muitos não entendem que não sejam aplicadas normas constitucionais e controles legais impostos pela revolução, com a intenção de facilitar os investimentos estrangeiros e nacionais, tampouco que empresas do estado passem para mãos privadas, muito menos quando estas foram expropriadas da burguesia na década passada. Pode ser uma questão tática a aplicação de determinadas medidas para conseguir uma recuperação econômica, mas o que as pessoas mais temem é que, apesar do nome da lei, ela não derrote o bloqueio e, como já aconteceu antes, termine fortalecendo os negócios e a corrupção da boliburocracia. O desaparecimento da democracia revolucionária, que enchia as comunidades e os centros de trabalho de assembleias, e o retrocesso no debate político aumentam a desconfiança da base chavista.

A dissidência se tornou pública com maior força durante a confecção das listas de candidatos ao parlamento. Não se trata das anteriores dissidências chavistas, ou que se diziam chavistas anti Maduro, mas que terminaram fazendo coro com a direita. Trata-se de uma vanguarda decididamente chavista e anti-imperialista, que questiona o burocratismo, a corrupção e o desvio neoliberal nas políticas de recuperação econômica. Essa vanguarda questiona a imposição a dedo de candidatos, alguns sem inserção nem trajetória na base chavista, passando por cima dos líderes naturais, de representantes da luta diária contra o bloqueio. Isso deu origem à Alternativa Popular Revolucionária (APR) que, mais que uma organização, é um movimento crítico, contestatário dentro do chavismo.

Infelizmente, foram fechados os espaços para a discussão política, para o debate democrático, e muitos foram esmagados com métodos burocráticos. Houve intervenção descarada nas diferenças internas dentro dos partidos do Polo Patriótico, nos quais se refletia a mesma discussão, favorecendo as tendências contrárias ao apoio à APR. Diferentemente da eleição da Assembleia Constituinte em 2017, quando se permitiu a expressão de todas as correntes que quiseram apresentar candidatos, nestas eleições parlamentares, a fechada legislação eleitoral permite apenas a expressão por meio dos partidos, inclusive nas candidaturas nominais.

As facilidades que foram dadas para a direita participar, taticamente explicáveis, não foram estendidas aos candidatos dissidentes da APR, aos quais se fechou toda possibilidade. Somente o PCV, que se separou do Polo Patriótico, manteve sua chapa, o que permitiu a aliança com as correntes dissidentes do PP, do Tupamaros e com alguns da APR. Infelizmente, o Partido Comunista não é o melhor exemplo de luta anti-burocrática e acabou agindo da mesma maneira que a criticada burocracia. Em vez de colocar sua chapa e campanha a serviço dos candidatos de base, terminou colocando a APR como apêndice de sua política particular de enfrentamento com o PSUV e com Maduro, facilitando os ataques do PSUV, que os acusou de serem um novo antichavismo.

Diferentemente dos candidatos da direita, para os candidatos do PCV-APR não foi dado livre acesso aos meios do estado, inclusive, em uma apresentação de Maduro explicando a localização na tela eleitoral dos partidos do Polo Patriótico, a outra mão escondia a chapa do PCV. O vitimismo e a denúncia de perseguição tornaram-se, equivocadamente, o eixo da campanha do PCV e, inclusive, houve pronunciamentos do PC mexicano e do chileno “repudiando o ataque ao PCV”. Essa campanha antimadurista e sectária afastou muitos que se identificavam com a APR, e diminuíram as simpatias iniciais que uma lista alternativa chavista despertou, porque não se tratava de um questionamento ao PSUV, em muitos casos sequer contra Maduro. Não é verdade que todos no governo sejam agentes da burocracia e da corrupção, tampouco o são muitos dos candidatos nas listas do Polo Patriótico. No final, a aliança PCV-APR conseguiu apenas um deputado, o presidente do PCV.

Mas a equivocada campanha do PCV não indica que as vozes críticas e questionadoras do burocratismo e da corrupção no PSUV e no governo tenham terminado, seja como APR, por dentro ou por fora do PSUV, dentro ou fora do governo, o movimento revolucionário se levanta em defesa da revolução, contra a boliburocracia e a “direita endógena”, que são a expressão interna da agressão imperialista.

A verdadeira discussão

Alguns dirigentes do chavismo, justificando aberturas para grupos de direita, dizem que o país necessita de uma oposição decente e patriota, outros falam da necessidade de uma “burguesia revolucionária”. A revolução bolivariana não necessita de uma oposição de direita decente nem indecente, e nunca houve uma oposição mais divorciada do conceito de pátria, entregue totalmente ao imperialismo como a venezuelana, como mostrou oportunamente José Vicente Rangel. Se há que surgir uma oposição é pela esquerda, contrária ao burocratismo e à corrupção. Não vão conseguir jamais encontrar uma burguesia revolucionária. Chávez, nos primeiros anos de governo, deu espaço suficiente para que um setor da burguesia se redimisse, se juntasse à construção da pátria, mesmo depois do golpe de abril, e não conseguiu nada, concluindo que o socialismo era a única possibilidade de transcender o capitalismo.

Não se trata de mostrar quem é mais traidor, os pactos nos bastidores, nem de epítetos e acusações sem fundamento, destinadas a destruir moralmente companheiros. Passadas as eleições, trata-se de abrir espaços para o debate político em todo o movimento revolucionário para enfrentar o bloqueio imperialista, o burocratismo e a corrupção, que são os dois lados da mesma moeda, e ganharmos o povo, tirá-lo da apatia, para a reconstrução econômica do país, ter um plano para conseguir a soberania econômica e produtiva.

Nesse novo parlamento, os deputados eleitos devem garantir a participação protagônica das comunas, das organizações sindicais e camponesas, do movimento estudantil, de todos os organismos de base, para construir o plano da pátria livre, produtiva, independente e socialista. Com 92% dos deputados, não tem sentido uma ordem fechada na discussão, ao contrário, debe ser um debate aberto. Os novos deputados devem promover o debate, dar espaço para o movimento de base, colocando-se na frente, não o contrário. Recuperar os espaços democráticos, as assembleias permanentes, o parlamentarismo de rua, deve ser o objetivo principal.

O perigo da direita não estará no parlamento, vai estar na rua, nos atores internos da agressão imperialista. Biden modificará o plano de Trump, mas apenas para buscar a derrota da revolução bolivariana. Isso não mudará. Por isso é necessário avançar em um plano para derrotar o inimigo interno. Os atores da agressão imperialista devem ser extirpados, os que têm vivido dos bens e dinheiro embargado do povo venezuelano devem ser criminalizados e seus bens e contas confiscados, assim como os de seus familiares e testas de ferro. As empresas dos países que não reconheçam o direito do povo venezuelano a escolher seu próprio governo devem sair do país. Não mais impunidade, não mais contemplações com os atores do imperialismo. Deve-se convocar os movimentos sociais, o movimento revolucionário latino-americano para uma campanha pela dissolução imediata do grupo de Lima e pelo reconhecimento do parlamento venezuelano.

A luta contra o burocratismo e a corrupção deve ser um eixo na próxima etapa. As comissões de controladoria da AN devem recair nos deputados vinculados às organizações do poder popular. Investigar os bens e contas de todos os funcionários de direção no governo. Retomar o golpe de timão do comandante Chávez.

O acompanhamento e controle, a partir do poder popular, do plano econômico deve ser uma orientação de todo o chavismo. Não é questionável que se tomem medidas especiais para recuperar a economia, mas justamente por serem especiais devem ser específicas, com objetivos precisos e com total transparência. Não podem ser planos gerais nem secretos, como se fosse uma ação militar. Existem grandes apetites para rapinar as empresas do Estado e burocratas que querem ser patrões, por isso tudo deve ser muito claro e público.

As conquistas, os direitos alcançados, não devem deixar de ser aplicados, nem temporariamente nem definitivamente. Por exemplo, a eliminação dos embargos de moradias e a estabilidade no emprego são conquistas históricas da revolução, não pode acontecer de amanhã alguém propor não aplicá-las para favorecer o investimento dos bancos imobiliários do grupo Polar, porque o que se reconstrói, então, são os bolsos do capitalismo, não a economia. Se for necessário associar-se com investidores privados nacionais ou estrangeiros por situações pontuais, os objetivos devem ser claros, o porquê se faz, de frente para o país, para o movimento popular, com um acompanhamento e controle do cumprimento do plano. Deve estar clara a origem dos capitais, quem queira investir em segredo por medo do imperialismo não nos serve, porque fugirá com a mais mínima pressão.

Trata-se de conquistar a soberania econômica e produtiva, para construir a pátria independente e socialista. Esse é o objetivo da revolução bolivariana, para o que é necessário gerar um amplo movimento chavista, impulsionando a revolução política contra a corrupção e o burocratismo.