Pular para o conteúdo
CULTURA

Noel Rosa, um pierrot apaixonado

Bernardo Pilotto, do Rio de Janeiro, RJ

“Veio ao planeta com os auspícios de um cometa
Naquele ano da Revolta da Chibata
A sua vida foi de notas musicais
Seus lindos sambas animavam carnavais”
(Martinho da Vila – “Noel, A Presença do Poeta da Vila”)

Neste dia 11 de dezembro de 2020 lembramos os 110 anos do nascimento do genial Noel Rosa. Compositor, sambista, cantor, cronista, folião e violonista, foram múltiplas as facetas de Noel, tudo isso em tão pouco tempo de vida. Algumas de suas músicas são sucessos nas rodas de samba até hoje.

Filho de uma família de classe média e morador de Vila Isabel, que na época era um bairro repleto de fábricas e de vilas operárias, Noel viveu intensamente seus 26 anos de vida. Frequentador de botequins da Lapa e das rodas de samba dos morros cariocas, Noel ajudou na legitimação do samba perante as rádios e demais instituições. Além dessa consolidação, digamos, política, a forma de compor de Noel também foi importante para a consolidação estética do ritmo, afastando-o definitivamente do maxixe.

Em muitas de suas músicas, Noel falou de temas do cotidiano, como nas canções “Feitiço da Vila”, “Onde Está a Honestidade?” e “Três Apitos”. Nelas, estão registradas questões como a prática de acordo entre as elites de Minas Gerais e São Paulo para a escolha do presidente da República (conhecida como “política do café com leite”), a corrupção e a vida dos trabalhadores com os quais Noel conviveu na sua vizinhança.

Outra faceta de Noel, muitas vezes esquecida, é sua presença no carnaval de sua época. Diferente do que um olhar mais desavisado possa supor, Noel não chegou a participar da escola que hoje leva o nome do bairro onde viveu (a Unidos de Vila Isabel), já que esta foi fundada cerca de 10 anos depois de sua morte. Mesmo assim, a relação de Noel com o carnaval foi intensa.

Assim como outros compositores de sua época, Noel foi presença frequente nos concursos de músicas de carnaval, já que na primeira metade do século XX era comum que os cantores e compositores tivessem o carnaval como o momento para o lançamento de suas músicas, apostando nessa festa como a melhor hora para emplacar sucessos.

Entre as cerca de 300 composições escritas por Noel, foram 76 marchas e sambas carnavalescos. Entre as mais famosas, estão algumas canções obrigatórias em qualquer baile carnavalesco como, “Pierrot Apaixonado” (em parceria com  Heitor dos Prazeres) e “As Pastorinhas” (em parceria com Braguinha), e outras canções que se tornaram clássicos da MPB, como “Com Que Roupa?”, “Até Amanhã” e  “Fita Amarela”.

“Na cidade alta da Mangueira avisto a Vila
Sinto saudades de alguém”
(Zé Ramos – “Capital do Samba”)

Por muito tempo buscou-se desconstruir a trajetória de Noel apontando que ele seria um exemplo de sambista “do asfalto”, em contraponto aos sambistas “do morro”. Essa foi a forma encontrada para tentar apresentar Noel como alguém que estaria distante das manifestações culturais mais associadas à negritude.

Fruto do racismo estrutural hegemônico na sociedade brasileira, essa visão buscava apresentar o samba de Noel como “alta cultura”, algo semelhante ao que foi feito a partir da Bossa Nova. Mas, assim como a Bossa Nova não teria existido sem o samba sincopado de Geraldo Pereira, o samba de Noel não teria existido sem a influência dos sambistas do Estácio, de Heitor dos Prazeres, Cartola e tantos outros.

Noel tinha profunda relação com todos os sambistas de sua época e essa presença dele nos morros cariocas pode ser comprovada em músicas como a composta pelo sambista mangueirense Zé Ramos (antes da construção da UERJ, nos anos 1950, era possível enxergar a Vila Isabel do alto do Morro da Mangueira). É de Noel que Zé Ramos está sentindo saudade.

“Fez a passagem pro espaço sideral
Mas está vivo neste nosso carnaval”
(Martinho da Vila – “Noel, A Presença do Poeta da Vila”)

O legado de Noel segue vivo até hoje: na forma de compor samba, no uso da música como meio para fazer crônicas da vida cotidiana, na ironia fina de suas letras, na escrita apaixonada. Mas a “presença do poeta da Vila” é também sentida no bairro que ele tanto amou e exaltou, no folião que aproveita o carnaval com toda sua energia, na lembrança que a Unidos de Vila Isabel frequentemente faz dele e em tantos outros momentos. Nesse dia em que seu nascimento completa 110 anos, é nosso dever lembrar de sua obra.

Marcado como:
música / noel rosa / samba