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CULTURA

As dores e adorações de um povo: um adeus a Maradona

Marco Pestana, Rio de Janeiro (RJ)
Reprodução/Internet

A lembrança mais antiga que tenho do Maradona é da sua corrida para a câmera na comemoração do gol que marcou contra a Grécia na Copa de 1994 (do gol mesmo, não me lembro), quando eu tinha 7 pra 8 anos. Ele ainda jogaria mais uma partida naquela Copa e teria um retorno breve ao seu amado Boca Juniors, mas, na prática, esse episódio praticamente encerrou a sua carreira, devido ao positivo no exame antidoping. Por isso, eu não o vi jogar, exceto por assombrosos vídeos e lances isolados em programas de TV e no Youtube, que dão uma mostra do gênio que foi dentro de campo.

Apesar de ter perdido muito dessa dimensão, pude acompanhar boa parte da sua trajetória como figura pública e, nesse aspecto, o assombro não é menor. Não me lembro de nenhuma outra figura que, nos últimos trinta anos, tenha construído uma identificação tão forte com o seu povo quanto a dele. Isso não é, nem de longe, o mesmo que ter uma relação de identidade com o seu país, até porque, embora o núcleo do povo maradoniano fosse composto pelos argentinos, sua conexão com toda a América Latina tampouco era desprezível, como ficou claro em suas manifestações sobre Fidel, Chávez e outros. Claro que muito disso decorre do seu épico feito esportivo na Copa de 1986, particularmente das duas obras-primas que fez contra a Inglaterra apenas quatro anos depois da Guerra das Malvinas. Mas essa relação foi muito além.

Ao longo de décadas de decadência política e econômica da Argentina marcadas pela afirmação do neoliberalismo em suas diversas faces, Maradona passou por inúmeros e pesados dramas pessoais (dependência química, doping, depressão, conflitos familiares, agressões a jornalistas). Nunca o fez, entretanto, por trás de uma capa de normalidade asséptica ou de distanciamento pseudo-profissional, como é típico das celebridades ou dos jogadores adestrados por assessores de imprensa. Pelo contrário, nunca escondeu nem renegou sua identificação com o destino desse povo, sua origem pobre, sua opção política de esquerda, seus defeitos e problemas. Mostrou-se inteiramente em público, no seu melhor e no seu pior. Sua figura era, ao mesmo tempo, a encarnação de glórias passadas e a evidência de que as atribulações da vida mundana também alcançavam os deuses. As dores do povo argentino eram suas dores e vice-versa.

Não à toa, se tornou depositário de um verdadeiro culto nacional, de expectativas messiânicas, de compaixão incomensurável, enfim, de uma adoração total, que só pode emergir do encontro entre o sagrado e o profano. Nesse aspecto, certamente nunca houve um jogador como ele, e dificilmente haverá. Vai fazer muita falta.

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futebol / maradona