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EDITORIAL

Saúde para garantir a vida dos explorados e oprimidos

Editorial programático

A Saúde é um dos temas que mais tem preocupado a população brasileira. Segundo pesquisas de opinião, em abril de 2020, 67% da população estava mais preocupada com a saúde do que com as condições financeiras. Esse índice reverbera resultados colhidos desde 2018, em que a saúde tem liderado o ranking de temas com relevância entre os brasileiros em pesquisas similares.

A Saúde é um princípio humanitário básico, sendo alicerce fundamental de avanço social em um país. No Brasil, o direito à saúde é garantido desde a Constituição de 1988, sendo dever do Estado a efetivação desse direito para toda a população. Na década de 1980, a luta da classe trabalhadora e os movimentos sociais, em especial o da reforma sanitária, foram fundamentais para a criação do SUS (Sistema Único de Saúde) em um modelo de saúde pública universal (todos têm acesso) e integral (em todos os níveis de assistência à saúde). Mas após 30 anos de criação do SUS, seus princípios, diretrizes e modelo de assistência não foram por completo implementados e a luta pela saúde como direito e não como negócio continua atual e urgente.

O cenário pós-crise de 2008 no mundo

A construção de um sistema de saúde pública universal é uma construção que vai contra a lógica capitalista, se opondo em particular ao modelo neoliberal hegemônico, que visa o lucro e protege os interesses dos empresários da saúde. Com a crise do sistema capitalista após 2008 e a ruptura da burguesia internacional com o modelo social do Estado de Bem Estar Social, observamos um recuo dos países europeus na construção e fortalecimento dos sistemas de saúde públicos universais, avançando em projetos de austeridade que reduzem as verbas públicas para a saúde, criam instrumentos de repasse de dinheiro público para a saúde privada e fortalecem a construção de planos de saúde privados.

Para se ter uma ideia do impacto da crise econômica de 2008 no setor da saúde, basta acompanhar o caso do sistema universal de saúde da Inglaterra, NHS, um dos mais robustos do mundo. Em 2012, foi submetido a uma reforma que aumentou o percentual de contribuição do usuário, fragmentou a assistência em saúde, abandonou o conceito de território, adaptando ao conceito do mercado de oferta e procura e direcionou recursos públicos para o setor privado. O resultado é que 11% dos ingleses já migraram para os planos de saúde privados, algo inimaginável há 20 anos atrás. E a cartilha de austeridade da Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) na saúde, também foi seguida pelos governos de Portugal, Espanha, Itália e países nórdicos.

O caso brasileiro

São inquestionáveis os avanços nos indicadores de saúde populacional após a criação do SUS e a ampliação da oferta de serviços públicos de saúde. Mesmo subfinanciado, foi graças ao SUS que reduzimos a mortalidade infantil, ampliamos a vacinação da população, erradicando ou reduzindo expressivamente doenças como a paralisia infantil e o sarampo, implementamos a política de transplante e controlamos as doenças crônicas, sendo possível ampliar a expectativa de vida da população brasileira de 66 anos (1990) para 75 anos (2020).

Cabe destacar que os principais beneficiários desse conjunto de conquistas foram os segmentos mais precarizados e pauperizados da classe trabalhadora, aí incluída grande parte dos setores oprimidos, como negras/negros, mulheres e LGBTTs. Com efeito, para esses setores, o acesso a um efetivo serviço de saúde público possibilita não apenas a ampliação da qualidade de vida, mas também, frequentemente, é decisivo para a própria preservação da vida.

Apesar disso, as três décadas de estruturação do sistema público de saúde brasileiro, foram acompanhadas por um crescimento do setor privado, consolidação das parcerias público-privadas, ampliação dos instrumentos de gestão não públicos, o que facilita os desvios de verbas e prejudica a durabilidade dos serviços de saúde, como as Organizações Sociais (OS). Esses fatores são determinantes para que tenhamos hoje um SUS sucateado e subfinanciado. O sistema público de saúde é responsável pela assistência à saúde de 75% da população brasileira, mas mesmo atendendo à maioria da população, são os planos privados de saúde que em 2016 tiveram uma renda per capita 2,55 vezes maior que a do SUS.

Quais são os desafios para a defesa e a construção do SUS?

Esse cenário tem se tornado ainda mais grave a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95 (que instituiu o Teto de Gastos nos serviços públicos) em 2016 durante o governo Temer. O sucateamento do SUS combinado com seu subfinanciamento, fortalece a narrativa de que o Estado não tem condições de financiar a saúde, propondo como solução a construção de planos populares privados de saúde, a gestão indireta das unidades e a utilização da lógica do mercado para atender demandas de saúde.

Os conselhos de saúde são instâncias colegiadas deliberativas, criadas e pensadas para o fortalecimento do SUS, que deveriam funcionar como espaços de protagonismo político de usuários e servidores da saúde,. Mas nesses 30 anos, os conselhos foram paramentados por gestores com interesse privatizante, tocando uma agenda de privatização dos prefeitos e governadores. O seu debate político foi esvaziado e a vanguarda da saúde abandonou esse espaço como viável na construção e disputa política de interesses da classe trabalhadora.

Ainda em plena pandemia, o governo Bolsonaro tenta aprofundar o caminho da privatização da saúde pública e esvaziamento dos instrumentos públicos de gestão da saúde. Sabemos que as parcerias público-privadas e a gestão indireta são frequentemente utilizadas em âmbito estadual, distrital e municipal, mas o que o decreto de Bolsonaro propunha é que a equipe econômica de Paulo Guedes, definisse os instrumentos de privatização em âmbito Federal, reduzindo a autonomia e o papel do Ministério da Saúde, fragilizando a Atenção Primária à Saúde, um dos poucos setores que mantém uma gestão majoritariamente pública.

O SUS e o enfrentamento à COVID-19

No período de 2018 até 2019, o SUS perdeu 22,5 bilhões e nesse ano de 2020, a pandemia da COVID-19 conseguiu mobilizar o orçamento emergencial com acréscimo de 35 bilhões. E foi no combate à pandemia, que o SUS mostrou sua força, resistência e resiliência, para que o Brasil, mesmo sendo um país em desenvolvimento, de tamanho continental, contabilizasse menos mortes pela COVID-19 que os EUA, grande potência econômica, mas com sistema de saúde privado e excludente de uma parcela importante da população que não possui condições para pagar pelo cuidado a sua saúde.

As decisões políticas dos estados e municípios quanto ao uso do orçamento para a COVID-19, investindo bilhões em hospitais provisórios, geridos por empresas terceirizadas, privilegiando ações curativas e não de monitoramento e prevenção da contaminação pelo coronavírus, demonstraram que o dinheiro público está sendo utilizado para financiar o setor privado (muitas vezes em conexão com esquemas de corrupção), investindo em ações pouco eficientes e que não fortalecem o SUS público. Em complemento a esse cenário, o governo federal reduziu o papel do Ministério da Saúde, voltando-se ao armazenamento de testes para COVID-19 e assumindo a posição de um órgão consultivo. Dessa maneira, o seu corpo de funcionários e o conhecimento acumulado, que seriam decisivos para a formulação de um efetivo plano nacional de combate à COVID-19, foram inteiramente subutilizados, deixando a cargo de prefeitos e governadores a tomada de decisão sobre ações que determinaram o desfecho da pandemia na vida das pessoas.

Construindo um programa para fortalecimento e ampliação do SUS público

O Banco Mundial e o FMI, desde 2010, vêm orientando as políticas de saúde em âmbito internacional, indicando o financiamento público aos planos populares privados de saúde e a construção de uma carta de serviços que deixa as ações de saúde menos lucrativas (prevenção e promoção da saúde) para a gestão pública e aquelas que geram maior lucratividade, para empresas privadas. Por isso, qualquer programa que tenha como objetivo a defesa do SUS público deve denunciar que a Saúde não é mercadoria e que, portanto, não pode estar submetido às regras de mercado.

Para viabilizar a privatização do setor da saúde, a mídia empresarial e a burguesia constroem o discurso de eficiência do setor privado, e essa narrativa se fortalece entre a população que tem uma experiência negativa ao procurar um sistema público de saúde. Um elemento central para o fortalecimento do discurso privatista é o subfinanciamento do SUS. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) gera instrumentos de redução de gestão pública, estabelecendo regras de uso orçamentário nos Estados e Municípios que limitam os investimentos na construção e ampliação de unidades de saúde públicas, mas permite as parcerias público-privadas sem limite. De forma complementar, o teto de gastos da EC 95 não possibilita que o investimento em saúde acompanhe o ritmo do crescimento populacional do país. O que o setor da saúde necessita é da Lei de Responsabilidade Social (LRS), que privilegia os serviços públicos na alocação dos recursos orçamentários, fortalecendo instrumentos de gestão pública e viabilizando a nomeação de servidores públicos e estruturação de unidades públicas de saúde.

A denúncia da gravidade desse quadro financeiro deve ser complementada por um discurso que destaque a qualidade do sistema público de saúde, impulsionando a necessidade de um maior investimento para o bom funcionamento do SUS. Temos milhares de exemplos por todo o Brasil do SUS público que funciona com qualidade e satisfação dos usuários, atendendo especialmente a população negra e mais pobre, que é a principal vítima da desigualdade social e do racismo estrutural no país.

Em paralelo, é preciso, também, denunciar a qualidade duvidosa do setor privado devido aos seus interesses de lucro que se sobrepõem aos interesses da saúde da população. O conflito de interesses entre o paciente e os grandes empresários do setor privado da saúde é inconciliável e devemos colocar essa problemática em primeiro plano. Por um lado, o setor privado busca o lucro, indicando procedimentos, por vezes, desnecessários, arriscados, mas lucrativos. Por outro lado, o interesse do paciente é a resolução do seu problema de saúde, confiando nos procedimentos indicados.

Indo além, não basta o SUS ser público, é necessário enfrentar o modelo biomédico, que se mostra ineficiente em atender e solucionar as diferentes demandas de saúde da população. Em contraponto, precisamos ressaltar a necessidade de equipes de saúde multiprofissional, compostas por enfermeiros, fisioterapeutas, farmacêuticos, educadores físicos, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, odontólogos e médicos, que priorizem as ações de prevenção e promoção de saúde, estabelecidos no protagonismo dos sujeitos como gestores de sua saúde e com conhecimento suficiente para realizar suas escolhas.

Para tal, é fundamental colocar em primeiro plano a necessidade de valorização salarial dos profissionais da saúde e de melhores condições de trabalho. Importa também sublinhar a importância de concursos públicos para a contratação de profissionais da saúde pública, de modo a suprir a demanda de serviços nos hospitais, postos de saúde e atendimento domiciliar. Aprofundando ainda mais essa dimensão social da discussão sobre saúde, é preciso ressaltar que a conquista da saúde perpassa pelo acesso ao emprego, renda, saneamento básico, alimentos de qualidade, educação e tantos outros direitos para uma vida ativa, saudável e independente. Ou seja, a efetivação plena do direito à saúde pública, universal, gratuita e de qualidade passa pela construção de um outro modelo social e econômico, um modelo socialista.

Outro ponto que se reveste de importância é a ocupação, pelos militantes da saúde, dos locais de debate político sobre a saúde pública. Precisamos fortalecer a existência dos conselhos de saúde e ocupar esses espaços, pois com a institucionalização do debate da saúde pública, os conselhos oferecem a possibilidade da formação de uma nova vanguarda de sanitaristas, em defesa do SUS público. Além disso, é fundamental que os movimentos sociais, sindicatos, partidos de esquerda, associações de moradores, entre outras organizações sociais e políticas, abracem a defesa do SUS público, gratuito, universal e de qualidade para todos, e promovam lutas unitárias em torno dessa bandeira.

Em suma, a pandemia da COVID-19 permitiu que os trabalhadores fizessem intensos debates sobre saúde. A revogação do decreto de Bolsonaro que privatizaria a Atenção Primária em Saúde mostra que a população está disposta a defender a saúde pública. Por isso, é preciso fortalecer a luta em defesa do SUS e construir forte resistência aos projetos privatizantes da saúde brasileira.

 

Referências:

https://veja.abril.com.br/blog/radar/para-67-dos-brasileiros-saude-preocupa-mais-que-situacao-financeira/)

PAIM JS. Os sistemas universais de saúde e o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS). SAÚDE DEBATE. RIO DE JANEIRO, V. 43, N. ESPECIAL 5, P. 15-28, DEZ 2019