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MUNDO

Quem derrotou Trump?

Alguns comentários iniciais sobre o resultado das eleições presidenciais estadunidenses

André Freire, de Lisboa, Portugal

Em uma resposta rápida e superficial, pode-se afirmar que quem derrotou a reeleição de Donald Trump foi o candidato eleito, do Partido Democrata, Joe Biden, ex-vice presidente no governo Obama.

Entretanto, sem desconsiderar o evidente peso do Partido Democrata na política estadunidense, o grau de polarização política e social vivida nos últimos anos no país exige uma explicação mais de fundo, buscando analisar as raízes dos conflitos que aconteceram – e seguem acontecendo – na maior economia do mundo.

Trump, e o movimento político que se construiu em torno de sua liderança, que vai além do Partido Republicano, representa o que existe de mais reacionário na sociedade estadunidense.

Seu discurso de ódio contra as mulheres, negros e negras, os LGBTQI’S, os imigrantes e as organizações sindicais, de esquerda e socialistas animou os movimentos de extrema direita em várias partes do mundo. Portanto, não chega surpreender, por exemplo, a ligação intrínseca do neofascista Jair Bolsonaro com o agora ex-presidente dos EUA.

Internamente nos EUA, ele embalou os movimentos armados de neofascistas e de supremacistas brancos, que enxergavam na sua figura sinistra o principal representante político de suas ideias ultra conservadoras e retrógradas. 

Para que não ficasse nenhuma dúvida sobre seu papel completamente tóxico, Trump buscou a todo momento reprimir e deslegitimar as heroicas manifestações do movimento Vidas Negras Importam, que protagonizaram expressivos protestos de rua, especialmente depois do brutal assassinato de George Floyd, em plena pandemia, contra a violência policial e o racismo estrutural presente no DNA dos EUA. 

Neste ano, a combinação de três elementos moldaram um cenário político desfavorável à reeleição de Trump: a eclosão da pandemia da Covid-19 e o fato dos EUA ser o país com mais mortos e infectados do mundo (inclusive voltando a bater recordes no número de novas infecções nos dias atuais); a profunda crise econômica que se seguiu ao aprofundamento da pandemia, com todas as suas brutais consequências sociais para a maioria do povo; e, principalmente, a força do Levante Antirracista, que galvanizou atrás de si a luta de todos os explorados e oprimidos e tem o apoio da maioria da população estadunidense. 

Mas, resistência a Trump e seu projeto de extrema direita começou bem antes de 2020. Ela teve início já nas primeiras semanas após o anúncio da sua vitória eleitoral, em 2016, com gigantescas manifestações de mulheres, que inspiraram o movimento feminista em todo mundo. 

Estas lutas de resistência seguiram nos últimos quatro anos, protagonizadas também por importantes greves – especialmente dos profissionais da educação e da saúde, na batalha cotidiana dos imigrantes para sobreviver em um dos países mais desiguais e injustos do planeta, nas mobilizações da juventude em defesa do clima e na agenda permanente dos movimentos LGBTQI’s em defesa da vida e de seus direitos. 

O que assistimos com o Levante Antirracista neste ano foi o grande culminar de todas estas lutas de resistência. Portanto, não é mera coincidência a unidade forjada em torno da pauta fundamental da luta contra o racismo nos EUA. 

A importância política destas eleições

Se é verdade que não se pode chegar ao socialismo através da via de reformas e por meros processos eleitorais, isso não significa que os resultados de eleições não importam para a luta dos trabalhadores e da juventude. Alguns importam, até de forma muito marcante. 

É o caso nítido destas eleições presidenciais dos EUA, que já se tornaram históricas. Não só porque pouquíssimas vezes um presidente que tentava a reeleição perdeu, mas principalmente porque elas marcaram como nunca a divisão e a polarização política vividas pela sociedade estadunidense nos últimos anos. Só assim podemos compreender também todo o grande interesse, expectativa e atenção que está eleição ganhou em todo o mundo.

A derrota de Trump representa um golpe em todos os movimentos de extrema direita e neofascistas do mundo. Infelizmente, não será o fim destes movimentos ultrareacionários, nem nos EUA e nem internacionalmente, seria ingenuidade política pensar assim. Mas, este resultado representa um elemento de enfraquecimento deles. E isto já deve ser motivo para comemorarmos. 

Os grandes vitoriosos desta eleição são os trabalhadores e a juventude, especialmente sua parcela mais explorada e oprimida: os negros e negras, as mulheres, os LGBTQI’s e os imigrantes. A derrota de Trump fortalece os movimentos sociais nos EUA.

Foram às mobilização destas maiorias sociais que mantiveram acesa a chama da resistência a Trump e ao seu projeto de extrema direita. Portanto, foram os explorados e oprimidos, sem dúvida nenhuma, os grandes responsáveis pela derrota de Trump. 

Este elemento explica, inclusive, o erro de algumas organizações socialistas que chegaram a afirmar que não havia nenhuma diferença relevante entre a vitória de Trump ou de Biden nestas eleições.

Apesar da derrota de Trump nas eleições, o grande número de votos que ele obteve e o fato dele ter conseguido disciplinar majoritariamente o Partido Republicano demonstra, de forma inequívoca, a centralidade e a atualidade da luta política contra alternativas autoritárias de extrema direita, inclusive com viés neofascista, tanto nos EUA como em várias partes do mundo.

Inclusive, a sua tentativa de deslegitimar o resultado expresso nas urnas é só mais uma manifestação dantesca de sua vocação antidemocrática, um risco permanente contra as mínimas liberdades democráticas. Portanto, mais do que nunca é preciso apoiar as manifestações que buscam garantir o respeito aos resultados destas eleições. Abaixo o golpe de Trump e da extrema direita.

Nenhuma confiança no governo Biden

Compreender e comemorar a derrota política de Trump e da extrema direita nos EUA não deve nos fazer ter ilusões no eventual novo governo do Partido Democrata.

Um governo Biden-Harris não vai atender as principais reivindicações sociais e democráticas que foram defendidas nas ruas durante o Levante Antirracista e nas lutas que o precederam. 

O Partido Democrata não defende um projeto econômico e social qualitativamente distinto do Partido Republicano. E, esta semelhança, já vai ficar nítida nas primeiras medidas econômicas do novo governo. E ambos partidos defendem o projeto imperialista dos EUA. Por exemplo, os dois são aliados do Estado racista de Israel e de sua brutal e criminosa opressão contra o Povo Palestino.

Biden é um político tradicional do “establishment” do Partido Democrata. Um expoente de sua ala mais à direita, inclusive muito vinculado a pautas extremamente reacionárias nos EUA,  como, por exemplo, a elaboração da política de encarceramento em massa, que atinge principalmente a população negra. 

Portanto, não é atoa o apoio a sua candidatura dado pela maioria da grande burguesia estadunidense. Até por isso, ele foi escolhido para fazer frente, na disputa das prévias deste partido, a pré-candidatura presidencial do senador Bernie Sanders, que se apresentava como um socialista democrático e tinha o apoio das alas mais à esquerda dos democratas. 

A senadora Kamala Harris, foi apresentada como candidata a vice-presidente pelo Partido Democrata como uma espécie de concessão aos movimentos de rua, por ser uma mulher negra e com origem imigrante. Mas, todos sabem que quando ela ocupou o cargo de Procuradora-Geral da Califórnia sua atitude esteve bem longe de representar algum ponto de apoio à luta contra o racismo, a política de encarceramento em massa e a violência policial. 

O novo governo do Partido Democrata vai tentar cooptar os movimentos sociais, buscando desmobilizar às manifestações por suas justas e legítimas reivindicações. Este é o grande perigo para os trabalhadores e a juventude representado pelo governo Biden-Harris.

Portanto, os movimentos sociais nos EUA precisam manter o caminho da total independência deste governo, investindo na unidade de sua luta, no protagonismo das mobilizações de rua e da sua auto-organização. Estas são, inclusive, algumas das principais conclusões do heroico Levante Antirracista deste ano. 

A vitória destas reivindicações não virá de nenhuma concessão significativa de um futuro governo do Partido Democrata. Inclusive, as conquistas já obtidas pelo movimento Vidas Negras Importam, mesmo que parciais, já demonstram que elas só puderam ser atingidas através de muita luta. 

A frustração das expectativas com o novo governo deve, inclusive, fortalecer também a proposta de construção de uma nova organização política de esquerda nos EUA, completamente independente do Partido Democrata.