Por Carlos Tautz, Editor do Córtex Político (carlostautz.wordpress.com) e doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF)
A autodemissão de Glenn Greenwald em si já surpreendeu, devido ao roteiro de thriller holywoodiano: um editor premiado com o Pulitzer e coragem pessoal manifesta saiu do jornal, o The Intercept, que ele próprio ajudou a criar em 2013 após uma das mais importantes exposições da espionagem estadunidense em todo o mundo. Interceptações da agência NSA sobre cidadãos, por ordem, dos EUA, Brasil e Rússia (sim, o Brasil na frente da Rússia, o maior inimigo dos EUA), e outros países, vieram a público através do vazamento massivo de documentos, através do ex-espião Edward Snowden.
Além de Glenn Greenwald, então colunista do prestigiado The Guardian (de Londres), também foi central a documentarista Laura Poitras, a quem Snowden primeiro recorreu para vazar as informações sobre a espionagem massiva da NSA. Supõe-se que até hoje Glenn, Poitras e Snowden guardem a ampla maioria dos arquivos vazados há sete anos. Mas, o The Intercept nada publica a partir daqueles documentos há muito tempo, contrariando a principal motivação dos fundadores do jornal: dar publicidade aos arquivos vazados por Snowden.
Ao que vai parecendo, as verdadeiras questões por trás da autodemissão espetacular de Glenn ficaram esmaecidas pelo contexto em que se deu – a antevéspera da mais importante e radicalizada eleição estadunidense nas últimas décadas. O texto que Glenn alega ter sido censurado pelos editores do The Intercept foi usado na disputa entre o Democrata Joe Biden (favorito àquela altura) e o Republicano de extrema-direita Donald Trump, que mencionou a autodemissão de Glenn em sua conta no Twitter. O artigo de Glenn, entretanto, nada agregou de novo às denúncias que há semanas envolviam a família Biden.
Esclarecendo: Glenn escreveu dois textos. Um deles é o artigo que teria sido censurado. O segundo é a longa carta em que explica a sua decisão de deixar o The Intercept.
Na carta e no artigo, Glenn apontou as sérias contradições entre a natureza do jornalismo que ele defende e o papel das grandes plataformas (como Facebook, Google, WhatsApp, Twitter etc), onde a maior parte das notícias hoje são publicadas.
Escreveu Glenn: “A publicação dessa história inicial [sobre um dos filhos de Joe Biden] do New York Post provocou uma campanha de censura altamente invulgar no Facebook e no Twitter. O Facebook, através de um antigo agente do Partido Democrata, prometeu suprimir a história enquanto se aguardava a sua “verificação de factos”, uma que ainda não produziu conclusões públicas. E enquanto o CEO do Twitter Jack Dorsey pediu desculpa pelo tratamento da censura pelo Twitter e inverteu a política que levou ao bloqueio de todos os links da história, o New York Post, o quarto maior jornal do país, continua a ser bloqueado da sua conta no Twitter, incapaz de publicar à medida que as eleições se aproximam, durante quase duas semanas”.
E continuou: “Depois daquela primeira explosão de censura do Vale do Silício, cujos trabalhadores e oligarcas doaram quase inteiramente à campanha de Biden, foram os meios de comunicação social da nação e antigos funcionários da CIA e outros serviços de informação que assumiram a liderança na construção das razões pelas quais a história deveria ser desconsiderada, ou pelo menos tratada com desprezo. Como é habitual para a era Trump, o tema que tomou o centro das atenções para alcançar este objetivo foi uma reivindicação sem fundamento sobre a responsabilidade do Kremlin pela história. Numerosos noticiários, incluindo o Intercept, citaram rapidamente uma carta pública assinada por antigos funcionários da CIA e outros agentes do estado de segurança, alegando que os documentos têm as “marcas clássicas” de uma trama de “desinformação russa”.
Glenn também acusou a imprensa mainstream dos EUA – em especial, o New York Times, o Washington Post e a CNN e o próprio The Intercept – de deixar sistematicamente de lado o grande escândalo que envolve um dos filhos do candidato Democrata Joe Biden. O jornalista também incluiu nesta omissão todo o campo progressista nos EUA, inclusive universidades e até as plataformas de coleta de dados.
Para Glenn, esse ecossistema de mídia e o campo progressista se enfeixam em um rol de posições próximas ao Partido Democrata, que mantém conexão privilegiada com essas plataformas. O texto de Glenn ainda trouxe a debate os limites do mecenato e dos investimentos que grandes capitalistas dos setores financeiro e de internet vêm fazendo em mídia – incluindo o Brasil.
Aqui, eu observo: os casos mais visíveis são os de George Soros, que através de sua rede de institutos de filantropia apoia publicações online da sociedade civil; de Pierre Omydiar, ex-dono da eBay e do PayPal, que investiu 250 milhões de dólares no The Intercept; e de Jeff Bezos, o proprietário da Amazon e do Washington Post.
Note-se um detalhe, que deixa toda essa trama ainda mais nebulosa. Sempre funcionou a porta giratória por onde passam importantes funcionários das megaempresas de coleta de dados e espiões das dezenas de agências dos EUA. A mais recente volta da porta giratória aconteceu em setembro, quando a Amazon anunciou a contratação de seu novo diretor, o general Keith Alexander. Em 2013, quando ocorreu o vazamento dos arquivos Snowden/NSA, Alexander dirigia… a NSA. Na sua conta no Twitter, Snowden estrilou.
Para ser compreendido em toda a sua extensão e implicações, o imbróglio Glenn/The Intercept precisa ser dividido em pelo menos três partes:
1. A segunda surpresa, em 2020: o chefe é censurado por funcionários e se demite na véspera da eleição nos EUA
A poucos dias da mais disputada eleição americana em décadas, um ganhador de Prêmio Pulitzer anunciou em 29 de outubro a sua saída do The Intercept, o jornal-emblema do jornalismo em tempos de Capitalismo de Dados e do qual Glenn era a principal referência, após ter sido censurado por seus próprios funcionários. Glenn tentou, e não conseguiu, publicar um artigo questionando a campanha do Democrata e favorito Joe Biden.
Ele explicou sua decisão em carta publicada no Substack, a plataforma onde ele começou a escrever um novo blog, o Greenwald (a 150 dólares anuais a assinatura): “A causa final e precipitante é que os editores de The Intercept, em violação do meu direito contratual de liberdade editorial, censuraram um artigo que escrevi esta semana, recusando-se a publicá-lo a menos que eu removesse todas as secções críticas ao candidato presidencial democrata Joe Biden, o candidato veementemente apoiado por todos os editores de The Intercept, baseados em Nova Iorque, envolvidos neste esforço de supressão” (os grifos são meus).
Na sequência, em sua carta, Glenn denunciou que todo o campo progressista estadunidense estaria enfeixado em um sistema de ideias que, profundamente autoritário, não admitiria dissensos: “As patologias, a falta de liberdade e a mentalidade repressiva que me levaram ao bizarro espetáculo de ser censurado por meu próprio meio de comunicação não são de forma alguma exclusivos do The Intercept. Esses são os vírus que contaminaram praticamente todas as principais organizações políticas de centro-esquerda, instituições acadêmicas e redações.” (A ênfase é minha)
Na carta, Glenn lembrou ainda que “Quando nós três [Glenn, Jeremy Scahill, reconhecido correspondente de guerra, e Laura Poitras, premiada com um Oscar pelo documentário Citzenfour, em que narra como foi contatada por Snowden para vazar os arquivos da NSA] como co-fundadores, decidimos desde o início que não tentaríamos gerenciar as operações do dia-a-dia deste novo veículo, para que pudéssemos nos concentrar em nosso jornalismo, negociamos o direito de aprovação para editores seniores e, especialmente, editor-chefe. A responsabilidade central do titular desse cargo consistia em implementar, em estreita consulta conosco, a visão jornalística única e os valores jornalísticos sobre os quais fundamos este novo veículo de comunicação”.
Mas, Glenn diz que “A iteração [repetir para melhorar] atual de The Intercept é completamente irreconhecível se comparada à visão original. Em vez de oferecer um local para vozes discordantes, marginalizadas e perspectivas desconhecidas, está rapidamente se tornando apenas mais um meio de comunicação com lealdades ideológicas e partidárias obrigatórias, uma gama rígida e estreita de pontos de vista permitidos (variando do liberalismo do establishment à esquerda soft, mas sempre ancorado no apoio ao Partido Democrata), um medo profundo de ofender o liberalismo cultural hegemônico e os influenciadores de centro-esquerda do Twitter e uma grande necessidade de garantir a aprovação e admiração dos principais meios de comunicação, os quais o The Intercept foi criado para opor, criticar e subverter”. (Grifo meu)
Após acusar Glenn de ter-se apresentado como “vítima” e como uma espécie de “último jornalista investigativo”, a editora-chefe do The Intercept, Betsi Reed, respondeu duramente. “Enquanto ele nos acusa de sermos tendenciosos politicamente, em verdade é ele quem tenta reciclar as reivindicações dúbias de uma campanha política — a campanha de Trump – e lavá-las de tal forma a parecer jornalismo. Temos grande respeito pelo jornalista que Glenn Greenwald costumava ser, e continuamos muito orgulhosos do trabalho que fizemos com ele nos últimos seis anos. Mas, foi Glenn quem se desviou de suas raízes jornalísticas, e não o The Intercept”. (Grifo meu) A escritora canadense e colunista do The Intercept, Naomi Klein (autora do clássico documentário “Doutrina de Choque” em que denunciou o caráter neoliberal do golpe militar no Chile em 1973), apoiou Betsi, em um post na sua conta no Twitter: Glenn não foi censurado. Foi bem editado, afirmou.
2. A primeira surpresa, em 2013: jornalistas investigativos + um bilionário com responsabilidade social = um mundo totalmente novo
Em 2013, Glenn, na qualidade de blogueiro do site do prestigioso jornal inglês The Guardian, esteve no centro do maior vazamento da espionagem americana, juntamente com Edward Snowden e Laura Poitras. Baseado no vazamento de Snowden, ex-espião da NSA, Glenn e muitos outros jornalistas denunciaram o grampo que a NSA fazia sobre milhões de pessoas nos EUA e até de Chefes de Estado estrangeiros (incluindo a então brasileira Dilma Rousseff e a alemã Angela Merkel), além da Petrobras.
Foi a Glenn e a Laura Poitras que Snowden recorreu para vazar os documentos da NSA.
Neste cenário, Glenn, Poitras e outros jornalistas fundaram o The Intercept. Seu objetivo era publicar os arquivos Snowden e estimular novos vazamentos. A surpresa da empreitada repousava na fonte e na quantidade do dinheiro investido na criação do The Intercept: o bilionário americano Pierre Omydiar, então dono do PayPal e do site eBay. Omydiar colocou 250 milhões no negócio. Era pouco para quem possui 17 bilhões de dólares, segundo a Forbes, mas uma inédita fortuna para um jornal que se dispunha a investigar o poder nos EUA.
A grande surpresa da então nova empreitada de Glenn foi resumida assim pela Columbia Journalism Review (CJR), a mais importante revista acadêmica sobre jornalismo nos EUA, publicada pela faculdade de jornalismo da Universidade de Columbia: “A extraordinária promessa do novo empreendimento Greenwald-Omidyar: Jornalistas investigativos controversos + um bilionário com responsabilidade social = um mundo totalmente novo”.
Embora pouca gente tivesse percebido, à época, o negócio era uma enorme contradição. Afinal, Omydiar, que financiaria o The Intercept para estimular vazamentos semelhantes ao de Snowden, em 2010 fizera o inverso com o Wikileaks.
Como notou a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, “O motivo remonta a 2010, ano em que um bloqueio financeiro comprometeu 95% da receita do WikiLeaks. À frente da manobra estavam grandes instituições financeiras, como as prestadoras de cartão de crédito VISA e MasterCard, os bancos Western Union e Bank of America, além do PayPal, sistema de pagamentos online que pertence ao eBay, cujo presidente é Omidyar”. Omydiar mais tarde diria que orientou o PayPal a voltar atrás do cancelamento do Wikileaks.
Junto com o The Intercept, foi fundado também o The Intercept Brasil (TIB), editado em português e com redação sediada no Rio de Janeiro, para receber no Brasil vazamentos semelhantes ao de Snowden – e seu objetivo foi plenamente alcançado em 2019.
O TIB recebeu de fonte mantida anônima mensagens trocadas durante anos no aplicativo Telegram entre os procuradores federais da Operação Lava Jato, em especial mensagens do coordenador Deltan Dallagnol, e do ex-juiz federal e ex-Ministro da Justiça Sérgio Moro.
Na série de reportagens – batizada de Vaza Jato – que o TIB publicou a partir de junho de 2019, em parceria com mais 15 veículos de imprensa brasileiros, foi revelada uma ampla conspiração e jogadas ilegais perpetradas por Dallagnol, sua turma de justiceiros e o ex-juiz para montar um esquema no judiciário que possibilitasse a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva.
O TIB resume assim em suas páginas o conteúdo dos arquivos Vaza Jato, que Glenn por mais de uma vez afirmou serem maiores do que os de Snowden: “Esse é apenas o começo do que pretendemos tornar uma investigação jornalística contínua das ações de Moro, do procurador Deltan Dallagnol e da força-tarefa da Lava Jato – além da conduta de inúmeros indivíduos que ainda detêm um enorme poder político e econômico dentro e fora do Brasil.
A importância dessas revelações se explica pelas consequências incomparáveis das ações da Lava Jato em todos esses anos de investigação. Esse escândalo generalizado envolve diversos oligarcas, lideranças políticas, os últimos presidentes e até mesmo líderes internacionais acusados de corrupção”.
Mas, a exemplo do que já ocorrera com a publicação de matérias baseadas nos arquivos Snowden, o jorro inicial de denúncias do TIB baseadas nos arquivos de Dallagnol, Moro&cia foi minguando. A matéria mais recente da série foi publicada em 13 de outubro passado. É inegável a queda de produção do TIB sobre esse assunto, a exemplo do que já ocorrera com o The Intercept e os arquivos vazados por Snowden.
3. Como ficam os arquivos Snowden e Vaza Jato?
1. A partir da saída de Glenn do The Intercept e do TIB (seu nome sequer consta do site como fundador que foi de ambas as publicações), sobressai uma série de perguntas não respondidas e questões sobre o futuro das publicações online:
2. Como e com quem ficam os arquivos de Snowden e da Vaza Jato? Glenn possui o direito, e as condições, de mantê-los em sigilo e em segurança, agora que ele abdicou do guarda-chuva que era o The Intercept e o TIB? Afinal, a empresa que edita ambos – a First Look Media, de Omydiar -, terá a guarda e a exclusividade de publicação de arquivos tão importantes?
Empresas como a eBay, Amazon – que em verdade são plataformas de coleta massiva de dados de seus usuários – têm independência e legitimidade para financiar empresas de comunicação que lidam com assuntos públicos tão centrais na vida de sociedades inteiras, como vazamentos de dados coletados por agências de espionagem?
3. A exemplo do que acontece nos EUA, vigora também no Brasil um discurso único do assim chamado campo progressista, que envolveria centros universitários, partidos políticos e alguns meios de comunicação progressistas?
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