No dia 03 de Novembro, o site The Intercept Brasil publicou uma matéria, assinada pela jornalista Schirlei Alves, que rapidamente ganhou proporções nacionais, fomos apresentados ao caso Mari Ferrer: “chegava ao fim o julgamento do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a jovem promoter catarinense Mariana Ferrer, de 23 anos, durante uma festa em 2018. Ele foi considerado inocente.” Com o detalhamento do texto surgem as circunstâncias: “Segundo o promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto intenção de estuprar (…).”(1)
Mediante todo o debate jurídico que se abriu, principalmente em torno do questionamento (absurdo) se existe “estupro sem intenção”; ou das perguntas sobre onde estava o advogado ou advogada da vítima e qual o papel do Ministério Público em um processo (nos acostumamos, infelizmente, a ver o Ministério Publico servir como ‘advogado de acusação’) o que mais causa revolta na reportagem é o vídeo da audiência, onde vemos o advogado de defesa Cláudio Gastão da Rosa Filho mostrando cópias de fotos sensuais da vítima e afirmando que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana.
O advogado deu bom exemplo do pra que servia a anacrônica e felizmente passada expressão “mulher honesta”, que só foi retirado do código penal brasileiro em 2009. Nelson Hungria, o presidente da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal de 1969, definia o termo: “como tal se entende, não somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigida pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada, aquela que inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia accepta)”.(2)
Diante dessa cena, não é de se estranhar que vejamos a jovem vítima chorando e clamando por respeito, contudo se de um lado assistimos, de forma indigesta e cruel, o papel reacionário que cumpriu o advogado de defesa, não vemos do outro, infelizmente, a intervenção do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, para defender Mariana, e por consequência, todos os supostos valores do nosso combalido sistema de justiça.
Se a gravação corajosamente veiculada pela jornalista do The Intercept causa choque e tristeza, além da necessária revolta, a nós advogadas e operadoras do direito ela não causa espanto. O machismo e a misoginia são uma característica do nosso judiciário e estão no dia a dia de todos os tribunais brasileiros. Diariamente vemos não só a normalização do estupro e do assédio sexual como a desvalorização da mulher no mercado de trabalho e a negativa da igualdade salarial. Advogadas são desrespeitadas e o futuro repete o passado com mais intensidade do que se pode imaginar.
Sabemos, afinal vivemos isso no dia a dia, e provamos por meio de pesquisa, que “Esse tipo de comportamento institucional pode ser descrito como ‘patriarcalismo jurídico’ e constitui um tipo de violência de gênero em curso na nossa sociedade, (..)”(3) porém o que não podemos, ou não devemos esquecer é quem exerce essa violência, homens, brancos, casados e católicos, como os que vimos no vídeo (que são quem compõem a maioria do Judiciário brasileiro, de acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça)(4) e como superá-la.
O caminho passa, de forma mais ampla, não só por ocupar os espaços de poder, entendendo que só ocupar não basta, uma vez que o judiciário é parte do aparelho de estado capitalista e por isso condensa os aspectos da exploração e da opressão, como também, de forma mais restrita, por superar a lenda da meritocracia no acesso as carreiras jurídicas, uma vez que sem igualdade material entre os membros de uma sociedade, não há igualdade de oportunidades. Que o caso Mari Ferrer sirva não só como um exemplo amargo do que é o nosso judiciário, e como ele está longe de ser neutro ou efetuar justiça – um “museu de grandes novidades” – mas pra mostrar, pelas vias da resistência que “o tempo não para” ou estaremos condenadas, nós, mulheres, a viver “da caridade de quem nos detesta”.
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