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Especiais

Porque o voto em Martha Rocha não é útil

Igor Dantas, do Rio de Janeiro, RJ
José Cruz/ Agência Brasil

Desde que a última pesquisa eleitoral foi divulgada, ganhou força entre eleitores de esquerda a possibilidade de voto no PDT da candidata Martha Rocha, que teve um bom posicionamento de 14%.

Não é o objetivo do texto atacar essa posição, entendemos o apelo do chamado voto útil em tempos tão difíceis, porém aqui apresentaremos uma posição que discorda dessa avaliação. Vamos fazer um pequeno apanhado de quais os critérios que norteiam essa decisão na conjuntura atual, averiguar quem é Rocha, qual o projeto ela defende e assim poderemos esclarecer melhor essa divergência.

Critérios políticos

Dois critérios importantes para  uma decisão política são a questão de classe e a questão de defesa das liberdades democráticas. Nossa posição deve ser clara: em meio a tantos retrocessos, defendemos como possível uma tática de unidade dos trabalhadores, e uma gestão municipal que incentive instrumentos de participação popular e conte com o povo nas ruas para defesa de seus direitos e avanço de suas pautas. Com um breve diagnóstico explicaremos a adoção desses critérios para a atual conjuntura.

Diferente do discurso de lideranças pedetistas como Ciro Gomes, seja para Rio de Janeiro ou para o Brasil, não apostamos em uma alternativa de conciliação de classes de “união nacional”. Segundo essa hipótese eleições de candidatos mais ao centro no pleito de 2020 encerrariam as inflamadas disputas políticas recentes.

A questão é que nossas classes dominantes nunca foram confiáveis a esse tipo de projeto ou a ceder em termos de participação popular em nossa democracia. Sempre estiveram subordinadas aos interesses do imperialismo e não há elementos que apontem para a possibilidade de uma mudança positiva, e sim uma maior subserviência.

Vivemos em um país dependente, na periferia do sistema capitalista. Por aqui o regime democrático possui muito mais elementos de coerção social do que de construção de consensos. É um regime em que a vontade das classes populares raramente é levada em conta, e essas características se aprofundam bastante a partir do golpe de 2016 e das eleições de 2018, de modo que a janela para governos de conciliação nos parece fechada.

É um momento de muitos ataques aos trabalhadores e as pequenas concessões populares e medidas desenvolvimentistas do período petista já não são mais possíveis num contexto de crise econômica, em que a corrente neofascista e a direita tradicional convergem na aplicação de planos de austeridade.

As eleições municipais não devem ser analisadas como um processo isolado, ou que considere que todos esses fatos são meros exageros da “polarização política”.

Esconder as sérias disputas de classes em curso não fará nossa vida melhor, pelo contrário, apenas cultivará a ideia da gestão tecnocrata das cidades  Comandar a prefeitura não é um grande trabalho de síndico de prédio, mas sim uma atividade política, que se insere na luta de classes.

Como Martha e o PDT se encaixam nisso?

Explicados os critérios, veremos por que Martha Rocha não se encaixa como uma candidatura útil segundo essa hipótese.

Martha Rocha é formada em direito, tem longa carreira na polícia civil, primeiramente como escrivã, delegada, chegando ao cargo de chefe da polícia civil em 2011, durante o governo Sérgio Cabral. Em paralelo a isso, desde 2002 atua também na política, embora institucionalmente tenha sido eleita deputada apenas em 2014 pelo Partido social democrático (PSD), uma sigla do chamado “centrão”, e posteriormente se reelegendo em 2018, já pelo PDT.

Durante seus mandatos representou uma política que variou entre a centro-direita e a centro-esquerda, focando bastante em pautas da segurança pública, de acordo com sua história pessoal na área. Representa, portanto, uma forma de política que pouco difere da tradicional nas últimas décadas no Brasil.

Alçada pela primeira vez a uma candidatura a prefeitura, por um partido que possui um respeito conquistado principalmente na época da gestão de Leonel Brizola do governo estadual, Martha chama a atenção inicialmente. É legítimo que, mesmo com suas limitações, parte da população tenha certa nostalgia do governo Brizola, no entanto é preciso dizer que mesmo o PDT mudou muito, e há poucos pontos em comum com aqueles tempos.

Há um novo e relevante crescimento da simpatia quanto a este partido devido à última campanha presidencial de Ciro Gomes, que com sua retórica inflamada e de verniz nacionalista conseguiu cerca de 12% dos votos, incluindo um bom resultado no Rio devido, entre outros fatores, ao argumento do voto útil e de que seria supostamente o melhor adversário a Bolsonaro.

Apesar dessa mudança recente, mesmo internamente o PDT não é um partido tão alinhado e coeso, há diferentes posturas que contradizem, por vezes, até os argumentos de Ciro, como as posturas liberais da deputada Tábata Amaral, que votou a favor da reforma da previdência e relações com a política fisiológica do centrão e da direita como Pedro Fernandes, que apesar de não estar mais no PDT, foi o último candidato a governador pelo partido, e que logo após as eleições aceitou um cargo na secretaria de educação do governo de extrema direita de Witzel. Pedro ainda é investigado por irregularidades na sua gestão na secretaria estadual de Tecnologia e Desenvolvimento Social nos governos de Sérgio Cabral e de Luiz Fernando Pezão. Isso sem falar nas alianças com partidos da direita como o Democratas (DEM) na candidatura a prefeitura de Salvador.

Portanto, o PDT de hoje, ainda que conte com simpatizantes com ideias de esquerda e nacionalistas, não pode ser considerado um exemplo de partido que aponta para um projeto popular e democrático para os 99%. A prática nesse caso nos mostra um partido de centro-esquerda plenamente adaptado à problemática democracia brasileira.

Voto útil e outros argumentos

É certo que estas eleições estão bastante nacionalizadas quanto aos temas em voga e as principais forças em disputa, e o PDT se utiliza desse aspecto ao tentar reciclar os argumentos do voto útil e do “melhor adversário para segundo turno” para assim ganhar votos da esquerda em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro.

Esses argumentos são reducionistas, no sentido de utilizarem pesquisas eleitorais do momento atual como prognóstico preciso dos resultados finais. Desconsideram que qualquer candidato que desponte com chances de vencer se converterá na principal vítima das fake news e ataques da extrema direita.

Outros argumentos que filiados e simpatizantes do PDT muitas vezes se utilizam vão na linha de apontar para problemas e limitações dos partidos de esquerda como uma forma de demonstrar que não seriam piores do que isso.

Essa diferenciação pela negativa é um tanto limitada. Ninguém nega os grandes problemas existentes na esquerda. O PT foi governo por anos e sempre houve uma oposição de esquerda que criticou e combateu quando foi necessário, como há inúmeros textos e contribuições que se aprofundam nisso, quero focar aqui nos supostos problemas especificamente relacionados ao PSOL.

É verdade que o PSOL possui seus problemas. Ainda é um partido minoritário na classe trabalhadora, por vezes suas divergências internas atrapalham seu desenvolvimento e há pressão de ideias liberais e reformistas. No entanto não é correta a postura de alguns membros do PDT de reduzir este partido a “puxadinho do PT” ou pior ainda, utilizar-se de sensos comuns conservadores e fake news para atacar as pautas feministas, antirracistas e LGBTI+ que o PSOL defende.

O que ignoram é que nos últimos 15 anos o PSOL se converteu em um polo de união dos que desejam uma mudança radical e atuou progressivamente na reorganização da esquerda. O PSOL do Rio foi a mais combativa e responsável oposição aos governos de direita como de Eduardo Paes, denunciou o problema das milícias, da máfia dos transportes e foi linha de frente de tantas outras lutas. Trata-se de um partido diverso sim, mas que possui muita coerência em seu histórico, uma solidez que sempre se baseou em campanhas com muitos espaços de diálogo com a população e construções coletivas cotidianas e também nos períodos eleitorais.

Conclusão

Portanto, entendemos o medo que uma possível nova vitória de Crivella gera, porém é preciso refletir sobre os aspectos citados. Estamos em um momento de violenta ofensiva burguesa, com um governo de extrema direita avançando na agenda ultraneoliberal, uma verdadeira guerra de classes.

De modo que é muito difícil acreditar que uma nova vertente de conciliação de classes dará certo somente por que traz algumas críticas a política industrial do petismo e aponta eventuais falhas morais ou de corrupção do PT, como Ciro Gomes geralmente argumenta.

O PDT não é um partido de militantes e de construções coletivas, não está presente nos principais sindicatos e movimentos populares e pouco se abre para o diálogo com ideias diferentes dentro do campo da esquerda. Na verdade tem por vezes mais relações com partidos de centro e até direita, nos espaços institucionais. Essa opção na realidade aprofunda os problemas que já estavam presentes no projeto do PT, e um possível governo Martha Rocha estaria muito mais próximo de uma gestão burguesa tradicional como a de Paes do que um governo de esquerda que tenha compromisso com os e as trabalhadoras.

A utilidade de um voto deve ser medida de acordo com as consequências possíveis que surgem desse processo. Infelizmente não há soluções mágicas ou atalhos para solucionar os tantos problemas do Rio, mas aqui queremos valorizar o esforço de construir e defender juntos o melhor programa para a cidade do Rio, o que se expressa na candidatura de Renata Souza.

Também é preciso apontar que esse processo não se esgotará em novembro, muito pelo contrário. O combate ao neofascismo e a defesa dos interesses da classe trabalhadora devem ser o principal objetivo da esquerda hoje e nossos esforços de campanha e o nosso voto devem ter essa utilidade no horizonte.

*Este texto é parte de uma série do Esquerda Online que visa analisar e criticar as candidaturas à prefeitura do Rio, que já conta com textos sobre Marcelo Crivella e Eduardo Paes.