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Especiais

A política burguesa nas eleições municipais de Juiz de Fora

Uma análise do plano de governo da Delegada Sheila (PSL), representante mais direta do bolsonarismo na eleição de Juiz de Fora (MG)

Alex Perim, Juiz de Fora (MG)*

Propomos aqui, iniciar um esforço no sentido de analisar e desvelar o modelo de sociedade preconizado e os interesses de classe presentes, geralmente de forma escamoteada, nos planos de governo que têm despontado como opções prioritárias da burguesia juiz-forana nas eleições municipais de 2020.

Juiz de Fora, não diferente do país em sua totalidade (como não poderia deixar de ser sob o capitalismo), é uma cidade marcada pela desigualdade. Apesar de deter o 5º maior PIB de Minas Gerais, os dados disponíveis no CadÚnico nos mostram que mais de 29 mil famílias sobrevivem com menos da metade de um salário mínimo. Manifesta-se também o elevado grau de desemprego, pobreza e informalidade no fato do pagamento da primeira parcela do auxílio emergencial ter atingido mais de 102 mil pessoas, o equivalente a, aproximadamente, 18% da população (TRIBUNA DE MINAS, 2020). Seria de se estranhar, caso, diferente fosse a situação, já que no município os 10% mais ricos se apropriam de 45% da renda total do município, enquanto mais de 340 mil pessoas, por volta de 60% da população, repartem entre si apenas 21,19% da renda disponível (IMRS, 2020). De forma assustadora, é fundamental frisarmos, é a terceira cidade mais racialmente desigual do país.

A despeito desse cenário, que urge por um projeto solidário, de resistência e que atenda as demandas dos setores explorados e oprimidos, recente pesquisa realizada pelo Ibope aponta que, das três candidaturas que lideram as intenções de voto, duas são representes incontestes dos interesses da elite local mantendo, inclusive, ligações com o bolsonarismo. Referimo-nos aqui às candidaturas do empresário, ligado ao ramo da construção civil, Wilson Rezato (PSB) e da Deputada Estadual, Delegada Sheila (PSL), totalizando 29% e 12% dos possíveis votos, respectivamente. Uma conta rápida nos permite observar que mais de 40% dos eleitores estão inclinados a optar por projetos que tendem a aprofundar e reproduzir em escala municipal os ataques que vêm sendo direcionados aos trabalhadores e trabalhadoras pelo governo federal.

Nesse contexto, e analisando os dados expostos no parágrafo segundo, é clara a conclusão de que uma parcela significativa dos setores mais precarizados, explorados e oprimidos continua, de alguma forma, apesar de todo o caos e retrocesso, se identificando com opções programáticas que não refletem seus interesses. Apesar de indesejável e nada favorável à nossa luta, essa situação não deve nos causar estranheza. Lênin (2010, p.101-102), às voltas com as polêmicas relacionadas ao “economismo” no interior do POSDR e refletindo acerca das tarefas do partido como ferramenta do desenvolvimento da consciência de classe nas massas, nos ensina que “o desenvolvimento espontâneo do movimento operário marcha precisamente para a sua subordinação à ideologia burguesa” já que esta “está muito mais completamente elaborada e possui meios de difusão incomparavelmente mais numerosos”.

Além desses meios de difusão estarem cada vez mais difundidos e poderosos, reforçando a perspectiva burguesa através de filmes, novelas, telejornais e redes sociais, somam-se a isso as limitações da consciência imediata no entendimento da estrutura social causadora de tal caos e retrocesso. Assim, refletindo sobre a situação aqui apresentada, por mais que a classe trabalhadora na cidade, e logicamente no país, esteja submetida a condições cada vez mais desfavoráveis, isso, por si só, tende a não ser o suficiente para que haja a elevação de sua consciência política a ponto de se opor à estrutura que ocasiona esse processo.

Se beneficiando dessa situação, os planos de governo dos representantes da burguesia tendem a apresentar uma similaridade em sua forma, expressa através da “defesa” de um ambiente saudável para todos, bem-estar e outros interesses gerais da sociedade. Entendemos, porém, que, por mais formais e demagógicos que esses planos possam ser, inclusive pelo fato de não existir obrigatoriedade de presença de propostas concretas e nem de que as mesmas sejam cumpridas, uma leitura mais atenta pode descontruir a perspectiva ilusória desses supostos interesses gerais trazendo a tona, assim, um conteúdo que carrega significativos interesses de classe.

O companheiro Felipe Demier, em texto recente, aqui publicado, alerta acerca da necessidade de que a esquerda socialista, nessas eleições municipais, se concentre nas denúncias e no enfrentamento ao governo Bolsonaro e seus aliados regionais. Assim, em acordo com essa perspectiva, e na intenção de contribuirmos para a elevação da consciência política dos setores explorados e oprimidos, através da reflexão acerca das limitações e contradições presentes nas opções programáticas prioritárias da burguesia em Juiz de Fora, propomos esse esforço teórico.

Iniciaremos, então, pela análise do plano de governo da representante mais direta do bolsonarismo na cidade, Delegada Sheila do PSL. Recorreremos, para tal, a citações do mesmo a fim de proporcionar maior solidez e veracidade a nossas interpretações. Brevemente, não no presente texto, mas em um segundo momento, trataremos do programa do empresário Wilson Rezato (PSB).

Forma e conteúdo na proposta do PSL para Juiz de Fora

O plano de Governo em questão é composto por 52 páginas e dividido em nove capítulos principais que se fundamentam “nos seguintes eixos estratégicos: I – uma cidade sociável; II – uma cidade saudável; III – uma cidade segura; IV – uma cidade sustentável”. Vejamos.

A pandemia de Covid-19 é apresentada como causa da crise econômica que atinge o país, desconsiderando as questões estruturais que já nos colocavam em uma grave crise para qual o modelo neoliberal, claramente defendido pela candidata, não foi capaz de encontrar soluções. Nesse sentido, o texto vai ainda mais longe, deixando transparecer o descaso com a vida dos trabalhadores e trabalhadoras e mostrando alinhamento à postura típica do bolsonarismo frente à pandemia, ao afirmar que “estados e municípios, de forma precipitada, decretaram calamidade pública e propuseram que a população adotasse o isolamento social”. De forma ainda mais dura e cruel, aponta que “os esforços para evitar a perda de muitos cidadãos promoveram a instalação de uma das mais graves crises econômicas da história de nosso município”. Aqui, o lucro se sobrepõe de forma brutal à proteção da vida.

Não é necessária uma análise muito atenta para constatar que frases como, “transformar nossa cidade e trazer qualidade de vida para todos os juiz-foranos”, “atender às demandas sociais e de infraestrutura da população”, ou mesmo ir “ao encontro dos anseios da sociedade juiz-forana”, servem apenas para transmitir a ideia de que os interesses e demandas do empresariado, claramente defendidos no programa, corresponderiam às necessidades da sociedade como um todo, propugnando, assim, uma visão de sociedade abstrata e sem determinação de classes. Essa posição não é digna de causar estranheza, já que a candidata, enquanto deputada estadual, foi voto favorável à reforma da previdência em Minas Gerais e seu partido, o PSL, tem estado na dianteira de todos os ataques que vêm sendo perpetrados contra a classe trabalhadora. Nesse sentido e com o objetivo de dar prosseguimento aos ataques, a estratégia é a construção de um texto que mascara a hegemonia da classe capitalista.

O plano de governo da coligação não traz nada de novo, ao contrário, é mais um que se baseia na, tão em voga e defendida por grande parte dos liberais, noção de que as mazelas que afligem nossa sociedade são resultado da ausência de capacidade técnica e de falhas na gestão. Surfando no processo de despolitização reinante em nossos dias, as propostas têm caráter meramente tecnocrático e passam ao largo do questionamento de qualquer ponto relacionado à estrutura social. Os exemplos que confirmam o exposto abundam no decorrer do texto: “Para mudar essa situação, a escolha de um corpo mais técnico será essencial”; “trabalhar para que sejam bem equipadas, para que o uso da tecnologia seja constante”; “Para resolver esse problema, é necessária a simplificação dos processos para que as demandas da população e das empresas sejam atendidas”. Não é por acaso que o documento em questão é denominado pela coligação de Plano de Gestão.

Ao reduzir a flagrante desigualdade social, os problemas ambientais, as mazelas presentes na rede pública de educação, saúde e assistência social a questões que podem ser resolvidas a partir de uma gestão mais técnica e eficiente, o programa tenta escamotear seus interesses privatistas e o objetivo de aprofundar o desmonte dos serviços públicos, fundamentais aos mais pobres. Segundo a delegada “a Administração Pública Municipal encontra-se muito inchada e ineficiente” e “as empresas públicas não trabalham com a integração necessária para fornecerem um serviço de melhor qualidade”. Sendo assim, salta aos olhos que a proposta apresentada para a cidade consiste na réplica do que o partido da candidata tem feito em nível federal: corte; ajuste; redução de pessoal e privatização. Não por acaso está lá o aviso de que “será necessária a adoção de medidas drásticas para reerguer […] a cidade”.

Se o plano em questão, como já afirmamos, é baseado em uma sociedade abstrata na qual não existiriam divergentes interesses de classes, tal perspectiva é estendida à questão das identidades. No eixo dedicado à cidadania afirma-se que “nós temos um plano democrático, abrangente e não excludente” que “ao invés de dividir, ele soma” assim “precisamos construir elos, não rupturas”. Partindo desse pressuposto, “queremos incluir as pessoas para que elas possam viver a cidade com dignidade, independente de idade, sexo, raça e orientação sexual”.

Alinhada ao descaso do governo federal com a opressão e desigualdade que perpassa a questão racial, de gênero e de sexualidade, a candidata parece estar se baseando em uma realidade paralela e não nas condições concretas do país em que mais se mata pessoas trans e travestis no mundo (Brasil de Fato, 2020) e no qual os pretos e pardos correspondem a 64,2% dos desempregados, 66,1% dos subutilizados na força de trabalho (IBGE, 2018) e são a maioria esmagadora nas prisões. Será que a delegada sabe que Juiz de Fora é a terceira cidade racialmente mais desigual do país? Como a candidata se vangloria de ter um plano democrático e não excludente, se ela sequer reconhece as desigualdades presentes em nossa sociedade? Logicamente, como não reconhece a opressão, a desigualdade ou as diferenças, o programa não se propõe a soluciona-las.

No que diz respeito ao setor cultural, a hipocrisia reina absoluta. O programa defende que “temos uma vida artística muito rica e pujante. E que precisa ser aproveitada e valorizada.” ou mesmo que “viver a cidade é promover encontros e nada melhor do que a cultura para construir esses elos.” Ora, não seria o PSL que desde as eleições de 2018, quando ainda contava com Jair Bolsonaro em suas fileiras, empreende, em parceria com instituições e movimentos altamente conservadores, uma autêntica cruzada contra o setor cultural? Em março do ano passado, inclusive, o deputado Coronel Sandro, companheiro de partido de Sheila na ALMG, apresentou um projeto de lei (PL 500/2019) que tinha como objetivo extinguir o financiamento a projetos culturais por parte do governo estadual, mesmo que por meio de renúncia fiscal.

Esse descaso pela cultura se exprime em propostas vagas (“Aprimoramento e atualização da Lei Murilo Mendes”), que mostram desconhecimento sobre ações que já existem (“Realização do senso da cultura para identificar os artistas da cidade”) e na ausência de medidas voltadas a descentralizar as atividades e equipamentos culturais, mais uma vez deixando a periferia e seus moradores em segundo plano.

O caráter privatista, empresarial e meritocrático presente no plano em questão, está, também, claramente, demarcado nas propostas para a educação. Afinal, que tipo de propostas poderíamos esperar da representante de um partido que promove constantes ataques à categoria dos professores? Lembro que estamos falando de um partido que sempre esteve à frente na defesa de programas como o Escola sem Partido e, na votação para aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) ainda esse ano, representou seis dos, apenas sete, votos contrários na câmara. Difícil até imaginar tamanho caos que se instalaria em nossa rede pública de educação caso a vontade do grupo político com o qual a candidata se articula fosse atendida, já que o município é altamente dependente desse repasse. O Fundeb representa, aproximadamente, 45% do orçamento destinado à educação em Juiz de Fora.

Aqui é evidente que o projeto neoliberal, para além das políticas de austeridade, continua não poupando esforços para impor sua lógica nos sistemas de ensino através de uma perspectiva relacionada à modernização das unidades escolares, à qualidade total, à abertura aos financiamentos do capital privado e à busca por competitividade. Alguém duvidaria disso ao se deparar com afirmações do tipo: ter “como princípio a qualidade, em conformidade com os preceitos da economicidade e das melhores práticas de gestão”; “tendo como princípio a meritocracia e o respeito a diversidade de ideias e opiniões oferecer um sistema de avaliação desempenho” ou ainda que “necessário se faz que se crie um bom relacionamento com o setor privado, através da formulação de Parcerias Público-Privadas (PPPs)”. Neste último caso sobram, ainda, elogios ao instituto Unibanco, um dos principais agentes do processo de privatização da educação pública que, sob alegações de falta de eficiência e produtividade nas escolas, busca imprimir a lógica do mercado ao processo educacional.

O total desconhecimento da desigual estrutura social da cidade, na qual quase 30 mil famílias vivem com menos da metade de um salário mínimo, aliado a ausência de sensibilidade em relação ao caos e ao sobretrabalho enfrentado por educadores, pais e alunos através da atual expansão das práticas de ensino remoto, permite a candidata defender “um projeto de inclusão” baseado em “ações que envolvam as Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC’s) (e mesmo o Ensino a Distância)”.

Não bastasse isso, indicando, novamente, a intenção de atacar a educação com mais cortes e em uma demonstração de descaso e ausência de reconhecimento do esforço e das dificuldades presentes no cotidiano dos educadores, postura típica do bolsonarismo, o corpo docente é apresentado como “altamente qualificado (mestres e doutores), mas que apresenta um resultado incompatível com tanto investimento”.

No capítulo dedicado a Zona Rural e Agropecuária, não poderíamos encontrar nada diferente de um viés perfeitamente alinhado aos interesses da bancada ruralista, na qual o PSL marca forte presença. A agricultura familiar, responsável, como sabemos, por grande parte da produção de comida e da geração de postos de trabalho no campo, é citada no texto, mas é o agronegócio que “gera riqueza e fartura”. Não é mencionado, obviamente, que a expansão do agronegócio, altamente concentrador de terra, de renda e baseado no modelo agroquímico, está diretamente relacionada ao aumento da concentração fundiária, da redução de empregos no campo e da explosão na utilização de agrotóxicos, conforme dados do Atlas do Agronegócio (2018). Dessa forma, não encontramos no texto qualquer proposta que busque o fomento de formas de agricultura alternativas, a exemplo da orgânica e da agroecologia. É a reafirmação do padrão agroquímico e do avanço do grande capital sobre o campo.

A lógica por nós identificada ao longo dessa breve análise se repete por todo o programa, por todos principais temas. A situação atual do esporte e lazer no município é tida como “um fardo para os cofres públicos”; na saúde, para o atendimento da população de rua e dependentes químicos (apresentados no texto em relação direta com a criminalidade) a opção seria as comunidades terapêuticas, centros privados, em geral de orientação religiosa, que recebem verba pública para receber dependentes. As ações e propostas que buscam transferir a responsabilidade do governo para a iniciativa privada e as comunidades perpassam toda gestão do espaço físico da cidade, mostrando o intuito da candidata de se abster fortemente da manutenção dos equipamentos públicos do município.

Em um último esforço, a partir do que já foi colocado e retomando os quatro eixos que norteiam o plano de governo do PSL para Juiz de Fora, propomos algumas reflexões. Seria possível “Uma cidade sociável” sem a valorização da cultura em suas formas mais amplas e sem a descentralização e democratização dos equipamentos culturais, de esporte e de lazer? Seria possível “Uma cidade saudável” desconsiderando que a saúde tem relação direta com as condições concretas do cidadão, o grau de exploração que sofre em seu trabalho, a opressão e as violências que se depara levando em conta as questões raciais, de identidade de gênero e/ou de orientação sexual? Seria possível “Uma cidade segura” através da fracassado modelo punitivista que vêm encarcerando em massa a população das periferias e criminalizando a dependência química? Seria possível “Uma cidade sustentável” através da reafirmação do modelo agroquímico que envenena nosso solo, nossas águas e nosso organismo?

*Alex Perim é professor e militante da Resistência/PSOL.

 

Referências Bibliográficas

Altas do agronegócio: fatos e números sobre as corporações que controlam o que comemos. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2018.

Brasil de Fato. Em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas no Brasil. 2020. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/29/em-2019-124-pessoas-trans-foram-assassinadas-no-brasil> Acesso em: 22/10/2020.

IBGE. Desigualdades por cor ou raça no Brasil. 2018. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 22/10/2020.

IMRS. Dados Juiz de Fora. 2020. Disponível em < http://imrs.fjp.mg.gov.br/>. Acesso: 20/10/2020.

LÊNIN, Vladimir Ilitch. Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

Outra cidade é possível. Programa do PSOL para a cidade de Juiz de Fora. 2020. Disponível em: <http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2020/MG/47333/426/candidatos/808230/5_1601075248801.pdf>. Acesso em: 10/10/2020.

Plano de Gestão. Coligação sim para Juiz de Fora. 2020. Disponível em: <http://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2020/MG/47333/2030402020/130000676301/pje-89872280-Proposta%20de%20governo. pdf> . Acesso em: 10/10/2020.

TRIBUNA DE MINAS. Mais de 100.000 juiz-foranos recebem auxilio emergencial. 2020. Disponível em: <https://tribunademinas.com.br/noticias/economia/21-06-2020/mais-de-cem-mil-juiz-foranos-recebem-auxilio-emergencial.html>. Acesso em: 20/10/2020.