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CULTURA

‘Miss Marx’: a biografia feminista de Tussy, uma mulher revolucionária

Carol Freitas, de São Paulo, SP

Uma vez ouvi a professora Isabel Loureiro comentar certa estranheza na memória de mulheres revolucionárias, particularmente no costume de chamá-las pelo primeiro nome, abordando o fato de Rosa Luxemburgo ser sempre lembrada como “a Rosa”, diferentemente de Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Gramsci etc., todos homens inscritos na história por seus sobrenomes. 

Quando assisti ao filme ‘Miss Marx’, da escritora e diretora italiana Susanna Nicchiarelli, que está sendo apresentado na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (neste ano com exibição online em função da pandemia), lembrei desse comentário, até pela sugestão do seu próprio título. A indagação pode parecer discursiva, mas fato é que a diretora expressa o desejo de enxergar, por trás do sobrenome que alçou a trajetória pública de Eleanor Marx, “quem foi Tussy”. 

Para projetar sua biografia feminista, Nichiarelli dispensa a reificação dualista entre o público e o privado e, na via contrária, aproxima-os num nível insuportável de tensão, demonstrando como a relutância mútua entre as duas esferas é uma necessidade inerente à tarefa de contar a história de uma mulher revolucionária.

Tussy, como assim foi chamada desde a infância a caçula de Karl e Jenny, viveu as graves dores que atravessaram a família Marx. Nasceu em 1855 no Soho, bairro londrino que no século XIX matava seus habitantes pela insalubridade da péssima qualidade do ar, e, durante os seus primeiros meses, seus pais adoeceram, consternados, pela morte de um dos seus irmãos, Edgar, o terceiro de cinco filhos que Marx viu morrer ainda em vida. 

Estavam sofrendo o auge da pobreza e do isolamento político, refugiados na Inglaterra depois de serem expulsos da França. Contudo, é certo que todas as desgraças humanas e materiais eram compensadas por uma vasta e rica formação cultural e um ambiente familiar afetuoso, onde ela aprendeu o gosto pela música, pela literatura e pela luta política.

A vida das mulheres da família Marx pode ser conhecida pelas fartas correspondências recuperadas pelo projeto MEGA e pelos trabalhos biográficos conhecidos do público sobre suas vidas. Até aqui, no entanto, a trágica circunstância da morte de Tussy, assim como de suas irmãs, foi visivelmente mais notada do que sua trajetória política. 

Eleanor Marx viveu como dirigente sindical e partidária na Inglaterra; traduziu, editou e divulgou obras de Plekhanov, Liebknecht, Lissagaray e textos importantíssimos de seu pai; foi vanguarda teórica em diversos temas, particularmente no feminismo socialista e na questão da opressão nacional; foi especialista em Shakespeare, tradutora e crítica pioneira das obras de Flaubert, Ibsen, Shelley; exerceu o ofício de atriz; e, enquanto (tudo) isso, também foi vítima fatal de um relacionamento escandalosamente abusivo com Edward Aveling de 1883 até sua morte em 1895, tendo sida por todos esses anos chantageada, extorquida, traída e humilhada por ele. 

O filme começa com a incrível atriz Romola Garai como Tussy, no túmulo de Marx, declamando a dedicatória que de fato escreveu na ocasião da morte do pai, em 1883. Em seguida, ela encontra, no circuito inglês de artistas e cientistas críticos, Edward Aveling, com quem rapidamente começa um caso e viaja aos Estados Unidos, expedição que de fato fez também junto a Engels, tendo conhecido ali várias organizações do movimento operário norte-americano e a dura repressão política que se abatia então contra ele. 

A narração lança sobre a mulher talentosa e referenciada no movimento socialista inglês a aura de uma heroína vitoriana, contrastando essa atmosfera, ao mesmo tempo, com o punk rock dos Downtown Boys. A sina amarga de Tussy é remetida a todo tempo às personagens de Madame Bovary e Casa de Bonecas, como se ela não pudesse fugir da predestinação feminina da modernidade, da sua tragédia suicida, o que é sugerido pelo próprio Aveling às risadas, numa cena de convívio de Tussy com a amiga e camarada escritora sulafricana, Olive Schreiner. 

A relação de Eleanor com Aveling a expõe nitidamente refém das arbitrariedades e interesses mercenários dele, e seu silêncio resignado vai sendo colecionado ao longo do filme. A única oportunidade em que ela explicita o que efetivamente poderia escancarar a verdade da sua opressão é quando encena junto a ele a peça Casa de Bonecas, de Ibsen, para uma plateia. 

Sua dedicação apaixonada à causa dos trabalhadores e do comunismo, no filme, sempre esbarra no limite manipulatório de Aveling, que finca os pés, engenhosamente e às custas de Engels, numa vida confortável, libidinosa e burguesa, a despeito do seu vínculo com a social democracia inglesa. 

A opressão machista ensurdecedora retratada na tela é mais sofisticada no caso da revolucionária do que nos romances realistas que ela traduziu. Sua compreensão sobre as relações sexualmente libertárias esmaltava justamente todo o drama pessoal, revertendo-se numa tolerância depressiva aos abusos do seu parceiro. Contraditoriamente, no mesmo período, escreveu e defendeu em público que na sociedade socialista mulheres e homens encontrariam o equilíbrio natural na monogamia.  

Apesar da experiência violentamente machista, Eleanor Marx foi uma das primeiras autoras a teorizar o feminismo como uma tarefa socialista que não adornava a luta da classe trabalhadora simplesmente. Sua formulação era distinta do feminismo humanista utópico, do feminismo burguês e, de certo modo, da própria formulação comunista de então, pelo fato de interpretar a desigualdade vivida por mulheres e crianças (e seu consequente divisionismo no interior das organizações trabalhistas) como um mecanismo próprio da produção de mais-valor no capitalismo. 

Ao contrário de uma certa filosofia humanista de então, a mulher, para ela, não tinha qualquer qualidade “natural”. Ela argutamente pontua em seu texto assinado com Aveling, “A questão feminina”, de 1886: 

[…] não há uma ‘vocação natural’ da mulher mais do que há uma lei ‘natural’ da produção capitalista, ou um limite ‘natural’ para a quantidade do produto do trabalho que retorna para ele como meio de subsistência (tradução da autora). 

E ainda afirma: 

Como na questão da guerra, o Congresso enfatizou a diferença entre a liga de paz ordinária burguesa, que exclama ‘Paz, paz’, enquanto não há paz, e o partido da paz econômica, o partido socialista, que quer acabar com as causas da guerra. Do mesmo modo, no tocante à ‘questão feminina’, o Congresso claramente reforça a diferença entre o partido do “direito das mulheres” de um lado, que não reconhece a luta de classes mas apenas um conflito entre sexos, que pertence à classe proprietária, e que reivindica direitos que se reverterão injustiças contra as mulheres da classe trabalhadora, e, do outro lado, o partido verdadeiro das mulheres, o partido socialista, que tem a compreensão básica das causas econômicas da condição adversa das mulheres trabalhadoras e que conclama as mulheres trabalhadoras à luta de braços dados com os homens da sua classe contra o inimigo comum (tradução da autora).

Certamente suas ideias sobre a condição social das mulheres como tema essencial do materialismo histórico são inspirações para nós até hoje. A proximidade de vida inteira entre Tussy e Engels, o “tio Angel”, que exerceu uma espécie de paternidade compartilhada da caçula e suas irmãs, além de sua amizade com Lizzie Burns, companheira de Engels e liderança do movimento operário irlandês, sem dúvida influiu em seus trabalhos detidos sobre as questões do feminismo e da opressão nacional. 

Tussy foi um quadro de destaque na Federação Social-Democrata inglesa até romper com ela em 1884, quando fundou, junto a Aveling e William Morris, a Liga Socialista, experiência malfadada, que a faz retornar, em poucos anos, à FSD. Ela também contribui ativamente na modernização histórica do movimento trabalhista na Grã-Bretanha, organizando as lutas grevistas das Docas em Londres, dos trabalhadores do gás em Silvertown e das trabalhadoras descascadoras de cebola, a partir de onde organiza um sindicato com centenas de mulheres. 

Apesar do filme ser um retrato do feminismo socialista europeu do final do século XIX, parece que a diretora de ‘Miss Marx’ mostra Eleanor Marx enredada no caráter contraditório da máxima feminista que só emergiu décadas depois: “o pessoal é político”. Não há casualidade em sua biografia escrita por Yvonne Kapp ter sido lançada justamente na década de 1970, no auge do movimento feminista de segunda onda.

Se é, no mínimo, indevido reduzir sua vida às violências que sofreu em seu próprio círculo socialista, compreender que o jugo patriarcal sempre revelou seus tentáculos criativos contra mulheres destacadas nos movimentos revolucionários é necessário. Que a vida pessoal e o legado político de Tussy sejam lições cada vez mais conscientes para nós, feministas do século XXI.

TRAILER (LEGENDADO)

 

Referências

AVELING, Eleanor Marx. The Women Question. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/eleanor-marx/works/womanq.htm

GABRIEL, Mary. Amor e capital: a saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

HOLMES, Rachel. Eleanor Marx: A Life. London: Bloomsbury, 2014. 

HUNT, Tristam. Comunista de casaca: a vida revolucionária de Friedrich Engels. Rio de Janeiro: Record, 2010. 

KAPP, Yvonne. Eleanor Marx: Family life (1855-1883). Michigan: Lawrence & Wishart, 1972. 

MEHRING, Franz. Karl Marx: a história de sua vida. São Paulo: Sundermann, 2013.

MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos. São Paulo: Boitempo, 2018.

THOMPSON, E.P. Eleanor Marx: Persons and Polemics, Historical Essays. London: Merlin Press 1994, pp.66-76.