A Polônia tem sido notícia nos últimos anos pelas sucessivas tentativas do governo e da igreja de restringir o acesso à interrupção voluntária da gravidez (IVG), permitido somente em situações de incesto e violação, quando a gravidez apresenta riscos para a saúde da mulher ou em casos de má formação do feto.
O governo, do partido nacionalista e conservador Lei e Justiça (Pis), fortemente apoiado pela igreja e pelo presidente Andrzej Duda, fez aprovar, na passada quinta-feira, um acórdão que ilegaliza as IVGs por mal formação do feto. A proposta partiu de uma petição popular online, de 2016. Após aprovação, a presidente do Tribunal Constitucional Julia Przylebska (nomeada pelo governo), afirmou a importância deste acórdão tendo em conta os valores da constituição polaca: “Uma disposição que legaliza práticas eugénicas sobre o direito à vida de um recém-nascido e torna o seu direito à vida dependente da sua saúde, o que constitui discriminação directa, é inconsistente com a Constituição”.
A cada ataque ao direito à IVG (e demais direitos reprodutivos, com o acesso à contracepção de emergência e a comparticipação dos tratamentos de fertilização in vitro), as mulheres responderam com mobilizações massivas nas ruas, em 2016, 2018 e agora em 2020, em plena pandemia. Lembro que as manifestações chamadas pelas companheiras polacas estiveram também na origem da Greve Feminista Internacional, convocada desde 2017.
A última onda de mobilizações irrompeu em todo o país no dia da aprovação do acórdão, quinta-feira, e prolongou-se durante o fim-de-semana, alvo de forte repressão por parte da polícia, com uso de gás pimenta e detenção das manifestantes. Ainda assim, em plena crise da COVID19, as ruas encheram-se em repúdio e protesto perante este acórdão, que representa mais um retrocesso nos direitos reprodutivos das mulheres.
Pelo direito a decidir!
Mais de 30.000 mulheres ainda morrem de abortos mal sucedidos todos os anos pelo mundo e as restrições ao aborto apenas aumentam o número de mulheres que buscam métodos ilegais e inseguros. Quando a IVG não é garantida, ela não deixa de acontecer – acontece em situações de grande risco para as mulheres. Na Europa a República de Malta e a Polónia são os países com legislação mais punitiva e draconiana no que toca ao aborto, enquanto a Irlanda, por exemplo, ganhou o direito à IVG através de um referendo histórico.
Na Polónia o aborto foi permitido durante o regime comunista até 1993, ano a partir do qual se colocaram as restrições vigentes até hoje. Em 2019 foram realizados na Polónia (com quase 38 milhões de habitantes) 1.110 abortos legais. Entre estes, a maioria – 1.077, ou seja, 96% – foi devido à malformação do feto. Estima-se que no mesmo período tenham sido feitos mais de 200 mil procedimentos clandestinos.
Em Portugal a IVG é permitida desde 2007 até à 10ª semana, por opção da mulher. Ao contrário do que nos foi dito durante o referendo e nas campanhas pró-vida, o aborto não se tornou um método contraceptivo, não virámos uma fábrica de IVGs e a vida das mulheres melhorou efetivamente: o número de interrupções da gravidez desde 2011 atingiu o valor mais baixo de sempre. Houve também um avanço no acesso a consultas de planeamento familiar e/ou de informação sobre métodos anticoncepcionais, ainda que persista uma grande burocracia e um procedimento psicologicamente pesado para as mulheres que procuram fazer uma IVG.
Em tempos de crescimento da extrema-direita os nossos direitos estão em causa – o direito a decidir sobre os nossos corpos, enquanto mulheres, está sob ataque, fomentando uma ideologia que coloca as mulheres como mães, partes submissas da família tradicional, silenciadas e invizibilizadas. Vemos propostas com as do congresso do Chega (retirar os ovários às mulheres que façam aborto); a aprovação deste acórdão na Polónia, procedimentos para retirar o útero das mulheres imigrantes detidas nos centros ICE nos EUA.
Também com a pandemia os direitos reprodutivos das mulheres estão em causa – os recursos médicos insuficientes são totalmente redirecionados para o combate à COVID, colocando em segundo ou terceiro plano as consultas de planeamento familiar, acesso a métodos contraceptivos e até à IVG.
Sobre as nossas vidas, decidimos nós
O acesso à IVG, legal, segura e assegurada pelo Estado é um direito que se conquista com muita luta – foi o caso de Portugal, Estado Espanhol e a Irlanda, por exemplo. As mulheres na América Latina, na Polónia e em todos os países que não garantem acesso à IVG travam uma dura batalha pelo direito básico a decidir. Estamos convosco companheiras!
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