Não adianta apenas rir ou esperar o Átila Iamarimo lutar por nós. O negacionismo científico é cada vez mais forte e pode ganhar a batalha que vem pela frente. Já tivemos um derrota parcial na luta pelo distanciamento social. Mais de 150 mil pessoas morreram, sem contar a subnotificação. Esse número seria muito maior, caso aqueles que negam a ciência tivessem tido um triunfo total. Agora eles vão fazer o que podem para impedir a vacinação. E é possível que consigam. Devemos ficar muito atentos.
O número de casos de Covid-19 diminuiu e a maioria das pessoas já está andando pelas ruas. Elas estão de máscara, tentando tomar algum cuidado, mas vivendo a vida com certa normalidade. Mas aqueles que no começo da pandemia sabotaram o distanciamento social e até promoveram invasões a hospitais nunca vão descansar. Agora o trabalho deles é evitar que as pessoas se vacinem. E se conseguirem, sabe-se lá qual será o próximo passo rumo à barbárie.
Bolsonaro já falou que a vacinação não será obrigatória, acenando para os movimentos anti-vacina. Eles entenderam o recado e fizeram sua parte. Usam o discurso da “vacina chinesa”, gerando desconfiança com país que tem o imunizante que está no estágio mais avançado nos testes.
A tática é usar o racismo que parte da população nutre em relação aos negros para dizer que os chineses também seriam uma “raça inferior”, incapaz de fazer uma pesquisa segura. É típico dessa gente desacreditar qualquer feito científico ou cultural de um povo não branco. Por isto muitos acham que as Pirâmides do Egito ou as construções dos povos originários mexicanos foram feitas por alienígenas.
O anticomunismo também é parte do discurso que nega a capacidade chinesa de produzir uma vacina. A China não é de fato comunista, mas é um país com forte intervenção do Estado na economia. Os negacionistas não podem aceitar que o país fique na frente dos Estados Unidos, modelo de “livre mercado capitalista” para eles.
Não podemos achar que será fácil convencer as pessoas a se vacinar. O discurso ideológico e racista vai tomar conta de uma parte da população. Esta minoria pode ser mobilizar e gerar uma onda capaz atingir a maioria. Funcionou com o distanciamento social, pode funcionar outra vez. Evitar isto vai depender de mobilização e trabalho de base.
O povo não é obrigado a acreditar na ciência, nós é que temos a obrigação de convencê-lo
Os líderes do negacionismo em geral são de classe média ou alta, mas seus discursos têm alcance popular. Temos que entender o fenômeno e tratá-lo com a seriedade que merece.
Não podemos achar que quem acredita nos negacionistas é só um estúpido que se recusa a ver a verdade. Isto seria a mesma coisa que achar que o criminoso é fruto unicamente de sua maldade pessoal. O problema não é apenas o indivíduo, mas o contexto histórico e social no qual ele se insere.
Em 1960, mais da metade da população brasileira vivia no campo. Em sua maioria eram pessoas analfabetas (1) e distantes de qualquer avanço tecnológico. Viviam sem luz elétrica e tinham que se virar quando adoeciam. A benzedeira, a parteira e outras figuras substituíam o médico ou o farmacêutico. Não só no Brasil, mas na maior parte do mundo, a maioria das pessoas são da primeira ou da segunda geração que convive com os avanços científicos.
“A história é o que algumas poucas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes de água” diz o escritor Youval Harari em seu livro “Sapiens”. Quando Galileu fez seus estudos sobre astronomia, as pessoas que trabalhavam no campo não ficaram sabendo. Elas estavam ocupadas demais tentando sobreviver e garantir a sobrevivência da classe dominante. Por gerações, seus descendentes nunca ouviram falar de Galileu ou qualquer outro cientista. Apenas na segunda metade do século XX é que a maioria das pessoas teve algum contato não apenas com a ciência mas com os benefícios do avanço científico.
Não podemos achar que a população trabalhadora seja obrigada a acreditar na ciência. Os cientistas até pouco tempo atrás eram quase todos filhos da classe dominante. E o meio científico brasileiro só se preocupou em se comunicar com o grande público recentemente. As universidades de nosso país têm um contato tímido e recente com as periferias.
Quando uma pessoa do povo ouve um médico falar com sua linguagem empolada e cheia de palavras difíceis, ela entende que ciência não é para ela. Isto gera um antipatia por qualquer coisa que lembre estes momentos de humilhação.
Divulgar a ciência para a classe trabalhadora é uma tarefa difícil. Por um lado, é quebrar o preconceito de que o conhecimento é “coisa difícil de gente que fez faculdade”. Por outro, é travar uma batalha no próprio meio acadêmico. As atuais iniciativas de divulgação científica devem ser comemoradas, mas em geral são voltadas para jovens das classes A e B. Nas bancas de jornal, as revistas de divulgação científica estão entre as mais caras.
Não se pode chegar na classe trabalhadora com arrogância. Afinal, a pessoa só sabe se a Terra é redonda ou não a partir de relatos ou de vídeos. E acreditar no relato depende da credibilidade de quem está relatando. O morador da periferia prefere acreditar no pastor que ajudou a tirar seu filho do vício em crack do que no cientista que nunca pisou em seu bairro.
Divulgação científica é um trabalho de ganhar proximidade. É lembrar a pessoa que se ela toma banho em um chuveiro quente e bebe água gelada é porque cientistas fizeram seu trabalho, muitas vezes enfrentando interesses.
A defesa da ciência é uma tarefa também de sindicatos, cursinhos populares, grupos feministas e movimentos sociais em geral. Não com a mesma abordagem dos divulgadores científicos que se dirigem para um público “nerd” de classe média, mas de outra forma. A humildade e a capacidade de entender como a pessoa assimilou seus preconceitos é importante para tirá-la do obscurantismo.
Negacionismo é um bom negócio
A burguesia se aproveita dos avanços tecnológicos para lucrar, mas não quer que a população conheça a ciência. Para a classe dominante, é bom que a maioria das pessoas esteja presa a superstições e preconceitos. O método científico é uma arma perigosa nas mãos da classe trabalhadora.
Mas os interesses de classe por trás do negacionismo vão além. Empresas alimentícias financiam pesquisas fraudulentas e pagam especialistas desonestos para divulgar “estudos” que comprovam que seus produtos não fazem mal para a saúde, como mostrou matéria publicada recentemente pelo The Intercept.
A indústria tabagista fez escola ao sabotar os estudos que provaram que o cigarro faz mal à saúde. Os métodos variavam: desde uma boa assessoria de imprensa para emplacar pautas favoráveis na mídia até eventos científicos em hotéis de luxo para cooptar estudiosos.
Um exemplo recente deste lobby foi quando o Ministério da Saúde publicou um guia alimentar que informava os malefícios das comidas e bebidas ultraprocessadas (como salgadinhos e refrigerante). O Ministério da Agricultura, ligado à indústria alimentícia, sabotou o documento. Temos outros casos, como o do agronegócio, que faz lobby para evitar pesquisas que mostram como o desmatamento contribui para as mudanças climáticas.
Quem pensa que o negacionismo científico é coisa de homens solteiros de meia idade que moram com a mãe e usam chapéu de alumínio está enganado. Esses desajustados ganham mídia e às vezes até apoio político porque uma parcela da burguesia está interessada em espalhar desinformação.
Um povo sem conhecimento é mais fácil de ser explorado. Um povo supersticioso aceita com mais conformismo a morte, a desnutrição e as más condições de saneamento. A ignorância tem seu lado na luta de classes. A popularização da ciência também.
NOTAS
1 – Em 1960, segundo o IBGE, 39,7% de toda a população brasileira com mais de 15 anos era analfabeta. Dados disponíveis no Portal Inep.
NÚMEROS DA PANDEMIA
Confira o comentário de Gilberto Calil sobre o cancelamento da compra da vacina chinesa
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