Tudo que aprendemos das eleições passadas parecem ter perdido completamente o sentido. A eleição, sob o signo do novo coronavírus, parece ter vida própria, singular. Um caso que personifica esse fato – estranho, mas real – é o que se passa em Fortaleza. Aqui, o processo eleitoral aparenta se revestir de elementos surreais. Este artigo trata desse tema e da luta política nesse contexto novo e complexo.
O clã Ferreira Gomes e uma eleição competitiva no contexto da pandemia
Sem dúvida, a pandemia tem um impacto decisivo na eleição municipal. A começar pelas campanhas híbridas. Metade delas está nas ruas. A outra metade é conduzida pelas redes sociais. Sem se falar do quanto a crise sanitária torna imprevisível todo curso eleitoral.
Em Fortaleza, por exemplo, a eleição está marcada por muita imprevisibilidade.
É sabido o poder oligárquico do clã Ferreira Gomes no Ceará. A maior parte dos prefeitos do interior é constituída de partidários das posições políticas dos ciristas. O governador do PT, Camilo Santana, é aliado de primeira hora da família Gomes e a prefeitura da capital está há 8 anos nas mãos desse grupo político.
Acontece que em meio à crise do coronavírus, o mencionado grupo é obrigado a enfrentar uma eleição municipal bastante competitiva. Há três candidatos bem colocados na disputa: Sarto Nogueira (PDT), presidente da assembleia legislativa, escolhido pela família Gomes para ser o seu representante, recebeu à adesão de DEM e PSDB; capitão Wagner de Sousa Gomes (PROS), que, recentemente, liderou um motim da polícia militar no Ceará, é apoiado por Bolsonaro; por fim, Luizianne Lins (PT), que foi prefeita da cidade por 8 anos e, evidentemente, tem o apoio de Lula, que conta com muito respaldo popular em Fortaleza.
Aqui, entram os imprevistos de uma eleição coordenada por um vírus que segue ativo no Ceará e no mundo. Estamos no meio da quarta semana de campanha e a três semanas da eleição, e por inacreditável que isso pareça, o candidato da família Ferreira Gomes participou da primeira semana de corpo a corpo nas ruas e caiu de cama, depois de contrair a Covid-19. Primeiro, ficou se tratando em casa, mas, desde o último domingo, foi hospitalizado. A máquina política está em campo, com desfaçatez, em plena luz do dia, mas o maquinista está no leito de um hospital privado. No momento em que escrevemos este artigo, Sarto segue fora do campo de batalha, embora tenha gravado um vídeo prometendo voltar às atividades nos próximos dias.
As pesquisas Ibope e Data Folha colocam o capitão Wagner em primeiro lugar, seguido de muito perto por Luizianne (empate técnico), estando o candidato de Ciro e Cid Gomes em terceiro lugar, sendo que os dois irmãos, até agora, permanecem praticamente ausentes da campanha, deixando nas mãos de sua trupe a ação concreta do dia a dia. Ao ler os articulistas da imprensa local, é como se os irmãos estivessem em outra galáxia. Aliás, Ciro Gomes, assim como o governador e a esposa do governador, também foram visitados pelo vírus.
Às portas da eleição, a expectativa é que o clã entre em ação, de forma direta e não terceirizada, nas poucas semanas que nos separam do esperado 15 de novembro, quando, finalmente, saberemos quem, de fato, tem garrafa para vender, e se o atual quadro surreal encontrará uma equação no triunfo da real política oligárquica, com tudo que ela significa, o que implicaria, em meio à crise sanitária, um segundo turno entre o candidato oligárquico e o nome ungido pelas forças reacionárias, a começar por Jair Bolsonaro, o pior cenário, do ponto de vista da classe trabalhadora.
Por enquanto, Camilo Santana, o governador petista, é o porta-voz das críticas mais contundentes a Wagner, o capitão da polícia militar que é a esperança da extrema-direita em uma cidade em que metade da população avalia o governo Bolsonaro ruim ou péssimo, enquanto apenas 1/4 dos fortalezenses o apoiam. Esse limite pode significar que, independentemente de quem passe para o segundo turno, se Sarto ou Luizianne (considerando a efetividade dos números das pesquisas eleitorais), o candidato bolsonarista pode vir a ser esmagado no segundo turno. Porém, ao contrário da apatia dos irmãos Gomes, Jair Bolsonaro usou o espaço de uma live para, entusiasticamente, dizer que o seu candidato em Fortaleza é o Wagner. Desde então, a esquerda e os movimentos sociais têm afirmando, com absoluta nitidez, que eles são as duas faces do mesmo atraso. Esse posicionamento é decisivo, uma vez que a vitória de um candidato bolsonarista no embate eleitoral, na segunda maior cidade do Nordeste, fortalecerá as posições autocráticas da extrema-direita nessa região.
A esquerda e a eleição: desafios e tarefas
Uma questão também a ser equacionada é como as forças de esquerda vão se comportar diante de um quadro em que das suas 4 candidaturas (PT, PCdoB, PSOL e UP), com efeito, apenas a da Luizianne Lins parece capaz de ameaçar a supremacia dos Ferreira Gomes e o perigo representado pela extrema-direita. Luizianne, que em sua primeira eleição, enfrentou e venceu os obstáculos apresentados pelo seu próprio partido, tem uma tarefa superior, que é a de tirar do segundo turno o candidato cirista ou o bolsonarista (hipótese menos provável) e, cumprido esse objetivo, tentar obter um terceiro mandato na capital cearense. No terreno dessa disputa, Lula já gravou breve vídeo de apoio à candidata petista. Dos estúdios às ruas, a disputa está no ar.
O PSOL tem grandes desafios diante da situação política que se desenrola. Como fortalecer a sua campanha majoritária em meio a esse cenário de absoluta complexidade, no qual Renato Roseno oscila entre 3 e 4%? Como evitar que os contornos atuais da disputa eleitoral dificultem as campanhas proporcionais? Como se posicionar nessa disputa sem se isolar e sem retroceder da tarefa de fortalecer uma alternativa de esquerda sem conciliação de classe? Não são questões simples e fáceis de se equacionar. Ao fechar a quarta semana de campanha, talvez possam vir as primeiras respostas, embora se saiba que elas ainda serão minimamente conclusivas. À primeira vista, parece que esse cenário inesperado e confuso pode empurrar as principais decisões para a semana final. Até lá, qualquer prognóstico é um tiro na escuridão. O coronavírus ainda não deu a sua última palavra nem a máquina oligárquica local.
A história, também, não.
Nesse momento em que a disputa ganha contornos dramáticos, os socialistas, com um programa nítido nas mãos, as suas candidaturas nos ombros e uma atenção redobrada aos sinais emitidos pela situação política, devem seguir, com paciência e coragem, fazendo o seu trabalho, sem renegar a disputa da consciência de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.
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