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MUNDO

COVID e a (segunda) morte do neoliberalismo

Pedro Salgado*

Vendedor ambulante na Cidade do México.

Não está morto o que pode eternamente jazer
E com éons estranhos, até a morte pode morrer
H. P. Lovecraft

Várias vozes influentes apontaram, com diversos graus de otimismo, que a pandemia de COVID-19 poderia trazer consigo os últimos dias do neoliberalismo. (1) Medidas de quarentena e distanciamento físico postas em prática ao redor do mundo – apesar de intensa variação na aplicação e observância destas em cada local tanto por autoridades quanto pela população – afetaram severamente as atividades econômicas, dando origem a mais profunda recessão global na história do capitalismo. Com isso, a maior parte dos bancos centrais mudou de rumo, se distanciando de políticas de austeridade e aumentando gastos: financiando gastos de saúde pública (que aumentaram consideravelmente em resposta à pandemia), e em medidas contra cíclicas com o objetivo de impedir que as consequências da crise saiam (ainda mais) do controle. A erosão de serviços públicos e sistemas de bem estar produzida por décadas de ataques neoliberais aumentaram a vulnerabilidade de vários países ao vírus, uma vez que os meios institucionais para o cuidado e a solidariedade com os mais vulneráveis estão sucateados, ou simplesmente não existem.

Contudo, vale lembrar: esta não é a primeira vez que assistimos à morte do neoliberalismo.  A crise financeira de 2008-9 também foi a maior crise do capitalismo que o mundo vira até então. Na época, assistimos à “intervenção” de governos para conter quebras dos mercados e minimizar as perdas de acionistas. Apenas nos EUA, o “Programa de Alívio de Ativos Problemáticos” (TARP, na sigla em inglês) alocou US$700 bilhões para a compra de “ativos tóxicos” de bancos privados e outros operadores financeiros. Políticas parecidas foram formuladas na Zona do Euro e no Reino Unido, e a quantia total destinada a estímulos econômicos por estes três bancos centrais chegando aos trilhões de dólares.

Esta década se passou com a recuperação econômica sendo liderada por estas formas de investimento público, mas não sem consequências. Na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, novos movimentos sociais e partidos políticos surgiram, dando voz ao descontentamento da classe trabalhadora em ver o dinheiro público sendo destinado ao resgate de grandes corporações. A relutância destes governos em aproveitar este aumento do gasto público para melhorar sistemas de bem estar contribuiu para fortalecer setores nacionalistas da extrema-direita que se aproveitaram desse descontentamento. Se opondo à ideia de “bem estar”, esta direita propõe um retorno ao neoliberalismo, mas não “como sempre”. Ao mesmo tempo em que, em alguns casos, estas propostas assumem a forma de uma defesa mais radical e inflexível de políticas de austeridade, em outros, elas aceitam promover medidas simbólicas de bem estar para gerar apoio popular. As vitórias de Trump e Brexit em 2016 são as expressões mais claras deste fenômeno. Na América Latina, o resultado também foi o retorno de forças da direita ao poder. Aqui, contudo, isto representa o final da chamada “onda rosa”, com uma combinação entre os efeitos tardios da crise de 2008 (já em 2014) nos preços de mercadorias, e as contradições internas de vários governos da região.

Ao final de 2019, o neoliberalismo parecia ter saído do túmulo. Políticas de austeridade estavam de volta à mesa, com benefícios fiscais para ricos e grandes corporações, e reduções em gastos sociais aparecendo, apesar de variações locais, tanto no Norte (Trump, Johnson, Macron) e no Sul (Bolsonaro, Áñez, Piñera). Esta experiência de (quase) morte mudou o neoliberalismo, claro. Agora ele estaria se revelando ainda mais autoritário, com demonstrações mais claras de brutalidade policial (principalmente contra migrantes e minorias étnicas), novas formas de vigilância através de redes sociais e big data, bem como práticas descentralizadas de gerencialismo baseadas no discurso “empreendedor” voltado à força de trabalho informal. Apesar dessa ressurgência, quando a segunda “maior crise de todos os tempos” apareceu como fruto da pandemia em 2020, o neoliberalismo pareceu morrer pela segunda vez. Principalmente porque, desta vez, a crise não era “apenas” financeira. A produção e o comércio sofreram impacto em escala global em virtude das restrições de movimento introduzidas para proteger a população da contaminação viral.

À primeira vista, as respostas econômicas à pandemia foram similares às apresentadas em 2008, em escala maior. Em março de 2020, o Federal Reserve dos EUA anunciou que faria empréstimos diretamente a corporações não financeiras pela primeira vez desde a década de 1930. Através da CARES Act (Lei de Ajuda, Alívio, e Segurança Econômica no Coronavirus, na sigla em inglês), US$4,5 trilhões foram destinados a empréstimos, garantias e outros investimentos em grandes corporações, enquanto o total destinado à transferência direta e outros benefícios de bem-estar e seguridade social à população em geral foram limitados a US$608 bilhões. Restrições frágeis quanto aos limites de uso deste crédito por parte das corporações encorajaram níveis de acumulação incrivelmente incompatíveis com o momento de crise, dada sua desconexão dos níveis de produção, lucros, e produtividade. Enquanto o desemprego batia recorde, e muitos setores simplesmente não podiam operar, a riqueza dos bilionários estadunidenses aumentou em 19% entre março e junho. (2) O impacto do CARES Act sobre o capitalismo global, bem com o de instrumentos semelhantes de estímulo macroeconômico de outros países, não pode ser ignorado. Mas tais medidas não decretam o fim do neoliberalismo, assim como as adotadas em 2008 não o fizeram.

A ideia de que este tipo de intervenção dos estados no mercado financeiro (e “na economia” de forma geral), tanto em 2008 quanto em 2020, representa uma mudança significativa em relação ao paradigma neoliberal se baseia numa concepção deste último como “não intervencionismo”, ou como o “reino do livre mercado”. Em outras palavras, desde a derrocada do acordo de Bretton Woods e a desvinculação do valor do dólar em 1971, observamos um processo contínuo de desregulamentação financeira e ampla liberalização dos mercados financeiros. Isto se deu junto com um ataque a serviços públicos, notoriamente encabeçado por Thatcher e Reagan(3), bem como a promoção de políticas de livre comércio e privatização de setores estratégicos, no que ficou conhecido como o “Consenso de Washington”. No campo teórico, estas políticas foram apoiadas na resposta monetarista (liderada por Milton Friedman) aos problemas encontrados pela economia keynesiana na década de 1970, retomando a ideia de mercados autorregulados como o caminho para o crescimento econômico e o desenvolvimento.

Ou seja, esta definição tradicional do neoliberalismo assume que ele se caracteriza por uma divisão entre a política e a economia. A marca dos tempos neoliberais, segundo ela, está justamente na retração do estado em relação ao campo econômico, aumentando o grau de liberdade dos mecanismos auto regulatórios do mercado. As várias mortes do neoliberalismo são anunciadas nos momentos em que o estado viola esta regra de não intervenção, como nos casos discutidos acima.

O que essa definição de neoliberalismo não percebe é que o estado nunca esteve “fora” da economia. Até nos exemplos de neoliberalismo mais radical, bancos centrais ainda eram encarregados de administrar taxas gerais de inflação, investimento, e poupança, através do controle direto sobre taxas de juros e outros mecanismos de política monetária. Isto foi ressaltado em contribuições recentes à historiografia de sistemas financeiros. Por exemplo, propostas recentes de retorno ao padrão ouro são apresentadas justamente como uma defesa do dinheiro (como um componente central das relações de mercado) contra este tipo de manipulação por estados e seus bancos centrais. Vincular o valor de moedas ao metal é apresentado por este argumento como uma maneira de limitar a capacidade dos estados de “gerenciar” a economia. Contudo, quando o padrão ouro foi introduzido no começo do século XIX, seu objetivo era justamente o de conter manipulações das taxa de câmbio por agências financeiras – os mesmos atores que celebraram a volta do câmbio flutuante pós-Bretton Woods. Ou seja, tanto a criação quanto a extinção do padrão ouro podem ser apresentadas, em contextos diferentes, como “despolitização do dinheiro”. (4)

Isto significa que práticas de regulamentação de desregulamentação podem ser igualmente tratadas como formas de isolar a “economia” da influência da “política” – ser definida como um ou como outro depende fortemente do contexto histórico. O próprio capitalismo depende de alguma forma de separação entre estas duas “esferas”, no sentido de que as relações de produção não dependem de coerção direta, mas na dependência de trabalhadores e capitalistas de relações de mercado. Uma vez que a dependência das relações de mercado pressupõe a definição e distribuição da propriedade, mesmo que a política apareça como uma “esfera” à parte da economia, ainda se faz uma condição essencial para as práticas de acumulação capitalistas. (5)

Desta perspectiva, portanto, a particularidade histórica que define o neoliberalismo não é exatamente o “não intervencionismo”, mas uma forma de política específica que promove e sustenta as condições para a dependência de todos perante os mercados e estimula a competição em nível micro. Mais especificamente, é uma maneira de reforçar essa separação (conceitual) entre as “esferas” da economia e da política, que previne que a última exerça qualquer tipo de controle sobre a primeira, especialmente no contexto de democracias liberais. Isto inclui moldar sujeitos “empreendedores de si mesmos” através de práticas gerenciais, e do ocultamento de pressupostos centrais do discurso econômico através de jargão técnico. 

Se entendermos o neoliberalismo através deste conjunto de práticas e mecanismos institucionais que protegem as relações de mercado contra deliberação e escrutínio por ferramentas democráticas, chegamos a uma conclusão diferente. Nestes termos, o neoliberalismo não está morrendo. Se medidas emergenciais para garantir a segurança econômica durante a crise são pensadas para garantir os lucros de bancos e grandes corporações ao invés de proteger salários e programas de bem-estar (como tem sido o caso nos EUA e no Brasil (6)), então a crise está sendo usada como oportunidade para aumentar a desigualdade de riqueza, e não para trata-la como um problema. É o “capitalismo de desastre” de Naomi Klein todo de novo. (7) Neste sentido, COVID não nos oferece o fim do neoliberalismo, mas mais uma demonstração de sua força.

O que não quer dizer que não exista resistência. Ela aparece sempre, ao redor do mundo. Após a crise de 2008-9, ela esteve presente na forma do movimento Occupy no Norte e no Sul global, nos levantes populares de 2011 no Sudoeste Asiático e no Norte da África, e em várias tentativas de reformular ou criar novos partidos de esquerda. Mais recentemente, o movimento dos guarda-chuvas em Hong Kong, os coletes amarelos na França, e várias greves de trabalhadores formais e informais e estudantes ao redor do mundo são expressões claras do descontentamento popular contra matérias de política econômica e novas limitações às (já limitadas) instituições democráticas. As exigências postas por tais movimentos claramente variam de acordo com o contexto, mas o que as une não é a ideia de um estado mais “intervencionista”, e sim a exigência de profundas reformas estruturais que permitam a radicalização da democracia, e a transparência e prestação de contas da política econômica. Em outras palavras, eles compartilham, em algum grau, o objetivo último de submeter o exercício político da autoridade (o que inclui a administração da economia) a um controle verdadeiramente democrático.

Apesar de cada vez mais autoritárias, as formas de vigilância, controle, e repressão destes movimentos de resistência não são um aspecto novo do neoliberalismo. Na verdade, sequer é novidade no âmbito do exercício da soberania. São as mesmas respostas com as quais autoridades políticas institucionalizadas (ie, estados) historicamente confrontam tentativas de transformação que não são conduzidas através dos caminhos jurídico-políticos definidos por elas mesmas. Ao analisarmos a origem da soberania moderna sob o prisma colonial, vemos como a divisão entre uma “nação” (supostamente homogênea) e seus “outros” é um elemento crucial para entender a violência autoritária não como uma inovação neoliberal, mas como mais uma manifestação da violência colonial. 

O crescimento recente de movimentos decoloniais e antirracistas deve ser entendido como parte dessa demanda por radicalização democrática, moldando novos sujeitos políticos que não se sujeitam a formas coloniais de controle. Black Lives Matter é certamente o principal exemplo aqui, com suas exigências de “Defund the police!” [cortem o financiamento da polícia!] e o radical estabelecimento da Zona Autônoma de Capitol Hill (CHAZ, na sigla em inglês) em Seattle. A centralidade do antirracismo nos EUA (e em outros lugares) é mais um desafio aos limites estreitos da subjetividade política em democracias liberais, que depende de concepções racializadas de nação e cidadania que dão sustentação discursiva à opressão, à desigualdade, e à violência. A resistência contra o golpe na Bolívia, os protestos no Chile em 2019-20, e a luta de comunidades quilombolas e indígenas contra as práticas genocidas do governo Bolsonaro são exemplos notáveis. Não é por coincidência que os limites impostos à subjetividade política em democracias liberais correspondem às práticas de violência colonial. Este é o conflito central de nossos tempos.

Apesar da pandemia de COVID-19 claramente demonstrar as muitas vulnerabilidades criadas pelas políticas neoliberais em nossas sociedades, o atual panorama político global não dá nenhuma indicação que o neoliberalismo possa morrer em breve. Se apostarmos nossas esperanças nisso, provavelmente estaremos declarando outra morte do neoliberalismo na próxima crise global (caso o planeta dure até lá). Isso significa que o neoliberalismo deve ser tratado como um monstro sutil e insidioso, perfeitamente capaz de sobreviver a estas várias mortes. Esse imaginário Lovecraftiano apresentado na epígrafe é (obviamente) aterrador, mas também dá margem à esperança. Afinal, estamos realmente vivendo sob a égide dos “éons estranhos” do capitaloceno. 

A resistência popular se provou tão resiliente quanto o próprio neoliberalismo, e talvez até mais criativa em sua diversidade. Por exemplo, redes de solidariedade continuam a se expandir para além do que é possível policiar, se esforçando para cultivar formas de vida para além dos imperativos de produtividade, e meios de subsistência que não dependam diretamente de relações de mercado, como cozinhas e hortas comunitárias. A proliferação de novas formas de organização política promove meios de questionar os limites coloniais da subjetividade, dos dois lados da divisão colonial. Estes são elementos centrais de um ataque ao neoliberalismo que consegue ir além da definição estrita da “economia”, colocando em cheque os limites (de novo, coloniais) que ele constrói em torno da política, e especialmente em torno da sua própria concepção de democracia.

*Postdoctoral Fellow – ICDD/Kassel; IRGAC Fellow – Rosa Luxemburg Stiftung; Associate Researcher – University of Sussex

 

Artigo originalmente publicado em https://www.irgac.org/2020/09/14/covid-as-the-second-death-of-neoliberalism/#_ftn2 

 

NOTAS

1 – SAAD-FILHO, Alfredo. Coronavirus, Crisis and the End of Neoliberalism. Available at https://www.ppesydney.net/coronavirus-crisis-and-the-end-of-neoliberalism/

STIGLITZ, Joseph. The End of Neoliberalism and the Rebirth of History. Available at https://www.socialeurope.eu/the-end-of-neoliberalism-and-the-rebirth-of-history 

2 – BRENNER, Robert – Escalating Plunder. New Left Review 123 (May-June 2020), pp. 5-22.

3 – Apesar de experimentos anteriores com políticas liberais no Chile de Pinochet e Indonésia de Suharto não poderem ser descartados.

4 – KNAFO, Samuel. The Making of Modern Finance: liberal governance and the gold standard (London; Routledge; 2013)

5 – WOOD, Ellen. Democracy Against Capitalism: renewing historical materialism (London; Verso; 1995)

6 – https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/decretacao-de-calamidade-e-auxilios-para-estados-veja-as-medidas-do-governo-para-as-contas-publicas.shtml

7 – KLEIN, Naomi – Shock Doctrine: the rise of disaster capitalism (New York; Metropolitan Books; 2007)