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BRASIL

Casagrande e a democracia: uma história de amor

Romulo Mattos*, do Rio de Janeiro, RJ
Reprodução

Características gerais da Democracia Corinthiana

Além de ser bom de bola, um grupo de jogadores do Sport Club Corinthians Paulista não concordava com as regras vigentes no futebol brasileiro, em 1982. Sócrates, Walter Casagrande, Wladimir e Zenon foram os principais responsáveis pela chamada Democracia Corintiana, uma histórica experiência de liberdade no futebol brasileiro. Esse movimento contou com a adesão do sociólogo Adilson Monteiro Alves, o inexperiente diretor de futebol escolhido para o cargo por Waldemar Pires, presidente do clube eleito naquele ano. Tendo caído de paraquedas numa função que não conhecia, e num momento de crise esportiva e política do clube, Monteiro Alves compartilhou a autoridade de seu cargo com a especial geração de atletas, como forma de superar as dificuldades. E deu certo. Em primeiro lugar, a Democracia Corinthiana era contra o autoritarismo nas relações sociais de trabalho no futebol; em segundo, criticava o paternalismo presente no modelo de gestão implantado nos clubes; em terceiro, intencionava abolir o regime de concentração, que precede aos jogos; finalmente, contestava o excesso de exercícios físicos no esporte.1 Vitoriosos em suas reivindicações, os jogadores decidiam todas as questões coletivamente, até as menos habituais, como na ocasião em que tiveram de deliberar sobre o pedido de Casagrande no sentido de abandonar a equipe no Japão para matar as saudades de sua namorada.2 Também participavam das votações a comissão técnica, a diretoria e os funcionários do departamento de futebol. O voto de Sócrates, que era o capitão da seleção brasileira de 1982, tinha o mesmo peso do voto do funcionário encarregado de limpar as chuteiras dos atletas. Conforme afirmou esse craque, a questão “era respeitar o ser humano”.3

Ao mesmo tempo que os atletas exerciam a prática do autogoverno, havia um projeto empresarial, que tentava internacionalizar a marca Corinthians. Inicialmente, inclusive, a Democracia Corintiana tentou se legitimar como um clube-empresa. Essa era a principal contradição do movimento, apontada pelo sociólogo José Paulo Florenzano: o limite da possibilidade de exercício da democracia direta dentro de uma empresa. Em certos momentos, o movimento pagava o seu preço por ter surgido com o apoio da diretoria, o que possivelmente o impediu de participar da vanguarda da luta pelo fim da Lei do Passe.4 De acordo com o autor, além da lógica militante, havia na Democracia Corintiana um lado dionisíaco. Se por um lado, os jogadores dialogavam com os sindicatos da região do ABC, o movimento estudantil e os acampamentos de desempregados, por outro, adotavam o estilo de vida boêmio – convivendo com o excesso e a transgressão nos bares da cidade de São Paulo. De forma ambivalente, Casagrande tentava se desvencilhar da imagem de “viciado”, presente no senso comum, mas também a cultivava para provocar os inimigos. Por sua vez, Sócrates fumava cigarro e gravava entrevistas com a mesa repleta de garrafas de cerveja, como quem reivindicasse o livre-arbítrio.5 Os botecos eram o ambiente onde mais se sentia à vontade.6

O termo Democracia Corintiana, estampado na parte de trás da camisa do time do Corinthians foi criado pelo jornalista Juca Kfouri, e astutamente explorado pelo publicitário Washington Olivetto, vice-presidente de marketing do clube. A propaganda massiva da palavra democracia, numa época em que a ditadura ainda existia no Brasil, embora não mais com a força das décadas anteriores, tinha um significado político evidente. Não por acaso, o Corinthians foi proibido de exibir mensagens políticas ou religiosas nos uniformes. A esse respeito, Sócrates comentou ironicamente: “A democracia não vale nada, né? Nem a nível de publicidade”.7

Acima de tudo, o movimento corintiano tinha um vínculo com o contexto de redemocratização da sociedade brasileira. A partir do fim do ano de 1983, as manifestações pela aprovação da Emenda Constitucional Dante de Oliveira – cujo objetivo (malogrado) era restabelecer a eleição direta para a presidência da República em 1984 – tornaram-se movimentos de massa. Em São Paulo, os comícios das Diretas Já contaram com a presença de jogadores do Corinthians no palanque que era frequentando geralmente por artistas e políticos. Vale lembrar que tais atletas costumavam entrar em campo com tornozeleiras amarelas (a cor oficial da Caravana das Diretas) por cima das meias. No dia 16 de abril de 1984, Sócrates, Casagrande, Wladimir, Juninho e Monteiro Alves compareceram ao palco do gigante comício que reuniu cerca de 1,5 milhão de pessoas no Vale do Anhangabaú. Nessa ocasião, dividiram o espaço com o futuro presidente da República Fernando Henrique Cardoso e o locutor esportivo Osmar Santos. Tido como o líder da Democracia Corinthiana na grande mídia, Sócrates se comunicou com a multidão, em tom emocionado: “Caso a emenda Dante de Oliveira passe na Câmara dos Deputados e no Senado, eu não vou embora do meu país!”. Ou seja, referindo-se às propostas de transferência para a Itália, o craque apostava alto ao enfatizar que estava disposto a subordinar sua vida pessoal a um projeto político nacional.

Decepcionado com o resultado da disputa política, o Doutor foi jogar na Europa. A equipe do Corinthians já relativizara a própria necessidade da vitória no futebol, em prol de um objetivo coletivo mais amplo, quando levantara no gramado uma grande faixa com os dizeres: “Ganhar ou perder mas sempre com democracia”. Isso ocorreu na final do campeonato paulista de 1983, vencida pelo time, que conquistara o título de 1982 e perderia o de 1984 no último jogo, num torneio de pontos corridos – quando os repetidos erros de arbitragem contra os corintianos fizeram os jornalistas levantarem a suspeita de que o clube estava sendo prejudicado devido a sua associação às Diretas Já.8 No Campeonato Brasileiro, a equipe chegou às semifinais em 1982 e 1984. O time tratado como o “mais original do Brasil” pelas publicações especializadas mostrava que liberdade e democracia podiam resultar em sucesso no plano esportivo. Mas o relacionamento entre a Democracia Corinthiana e a grande imprensa não era majoritariamente harmonioso. As abordagens mais simpáticas ao movimento estavam no jornal Folha de S. Paulo e na revista Placar. Quando as vitórias não eram alcançadas, as críticas eram violentas: “Todas as forças, digamos conservadoras ou reacionárias, queriam nos derrubar. Tinha um processo de tentar estigmatizar, rotular e desmoralizar tudo”, lembrou Sócrates.9

O centroavante associado ao lema “sexo, drogas e rock’n’roll”

A preocupação da ditadura militar com o envolvimento de Sócrates e Casagrande com as bandeiras da liberdade e da democracia fez com que eles fossem monitorados por agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS).10 O último sofria marcação cerrada das forças de repressão, razão pela qual a sua prisão por porte de cocaína, em 1982, foi considerada por muitos uma trama policial.11 Embora Casagrande geralmente apareça em segundo plano nas análises midiáticas sobre a Democracia Corinthiana, devido à popularidade de Sócrates, o especialista Florenzano considera o primeiro: “um personagem imprescindível para o movimento”.12 Tratava-se de uma figura transgressora, que carregava o estigma de desajustado desde o início da carreira e se envolvia em brigas, conflitos e desavenças. Como o astro de uma nova época, posava para a capa da Placar com ar de deboche e chapéu de pirata. Assumia-se como um “hippie”, ao mesmo tempo que dilatava os limites da Democracia Corinthiana e ampliava o leque de interlocutores do movimento. Esse foi representado pelo centroavante por ocasião da sua visita ao acampamento de desempregados instalado no gramado do Parque do Ibirapuera, cartão postal paulistano. Além de ter doado uma quantia em dinheiro arrecada pelos colegas de time, aproveitou a oportunidade para dar o recado às autoridades: “nós vamos apoiá-los até quando eles permanecerem aqui”.13 Esse tipo de atitude lhe garantia outra marca, a do subversivo, reforçada pela filiação ao PT – então um instrumento de luta da classe trabalhadora –, juntamente com Wladimir, que tanto influenciou Sócrates, embora esse tenha se mantido próximo do PMDB, em tal contexto.14 À grande imprensa, Casagrande reafirmava o estigma de rebelde ao redefini-lo a seu favor: “se lutar pelos meus direitos é ser rebelde, posso ser assim considerado”.15 Marcelo Rubens Paiva, que o acompanhava nos anos 1980, identificava-se com o: “garotão (…) cabeludo, magro, cara de enfezado, roqueiro, desconfiado, arrogante, brigão (…) igual a todo jovem rebelde daquela década. (…) Além (…) de (…) Sócrates, o maestro da orquestra, chegou um guitarrista”.16

Casagrande era personagem incomum do futebol, com cabelos longos, chuteiras brancas, camisa para fora do calção e meias arriadas. Na citação anterior, a aproximação da sua imagem à guitarra não foi por acaso. O camisa 9 era fã de Raul Seixas e presença constante em shows da Rita Lee, Blitz e demais grupos de rock dos anos 1980. Ele respirava o ambiente artístico e chegou a ser sócio da FWM, agência de eventos culturais mudaria o nome para Casagrande Produções. Gostava de ver bandas, do manejar dos instrumentos, e de ir ao camarim cumprimentar os artistas após os shows. Até hoje tem prazer de circular entre roqueiros, procura promover artistas iniciantes e mantém quadros de ídolos do rock na sala de seu apartamento, como os Beatles e Pete Townshend, do The Who, entre outros.17

Casão e os amigos Sócrates e Wladimir dançaram e cantaram com a rainha do rock brasileiro, Rita Lee, a música “Vote em mim”, no especial “O circo”, exibido pela TV Globo, em 1982. Apesar da cômica abordagem do tema do voto nessa canção, havia uma relação com a campanha leva a cabo pelos jogadores do Corinthians, que chegaram a entrar em campo com o seguinte lema estampado na parte de trás do uniforme: “No dia 15 vote”. Na final do Campeonato Paulista do mesmo ano, o centroavante faria o “Gol Rita Lee”, com a cantora no estádio do Morumbi, convidada pelo artilheiro. O interessante é que a Democracia Corinthiana e a nova geração de roqueiros que começava a fazer sucesso (levando adiante o trabalho iniciado por aquela artista) são dois fenômenos culturais relevantes da abertura política. Essa realidade histórica permitiu a aproximação desses temas em certas análises, sendo um bom exemplo o documentário Democracia em Preto e Branco: futebol, política e rock’n’roll (2014), dirigido por Pedro Asbeg.

Casagrande é o personagem que permite a junção de tais assuntos, sem questionamentos. Hoje comentarista de futebol, ele continua sendo um porta-voz da democracia na grande mídia, ao defender o direito de jogadores e ex-atletas se manifestarem politicamente, ao criticar o crescimento do autoritarismo na sociedade brasileira durante o atual governo e cobrar a diretoria de clubes que contratam ídolos que enfrentam processo por estupro. Trata-se de uma voz progressiva e corajosa em um cenário dominado por figuras como Caio Ribeiro. A hostilidade que desperta nos setores reacionários também é alimentada pela sua opção de tratar o seu passado de dependente químico de forma aberta e sem moralismos. Isso foi registrado no livro Casagrande e seus demônios, escrito em parceria com Gilvan Ribeiro18, onde, aliás, reafirma o seu gosto pelo rock, especialmente o praticado por Janis Joplin e AC/DC, sendo que esse estilo é detratado por aqueles que acendem velas contra o fantasma do marxismo cultural.

Em 2011, Casão se desesperou ao saber que Sócrates, o mestre com quem aprendera conceitos de vida, encontrava-se em crítico estado de saúde. Precisava lhe contar que, apesar de terem se afastado devido a um desentendimento, ainda o amava e sabia o quanto ele fora importante em sua trajetória. Então rumou ao hospital onde Sócrates estava internado, em coma, e lhe suplicou para que sobrevivesse porque: “o mundo ainda precisava dele, de sua inteligência, do espírito revolucionário, das suas transgressões, da luta incansável contra o sistema e as normas vigentes”.19 Assim que Sócrates recobrou a consciência, perguntou a sua esposa se Casagrande o visitara ou se apenas sonhara com o antigo companheiro. A amizade foi reatada, mas Sócrates não viveria por muito tempo. É bom vermos Casagrande social e politicamente ativo, tendo em vista aqueles mesmos motivos que o levaram a pedir a permanência de seu amigo entre nós.

*Romulo Mattos é historiador e professor universitário.

NOTAS

1 Cf. FLORENZANO, José Paulo. A Democracia Corinthiana. Práticas de liberdade no futebol brasileiro. São Paulo: EDUC/ Cortez, 2009.
2 CASAGRANDE, Walter, RIBEIRO, Gilvan. Sócrates & Casagrande: uma história de amor. São Paulo: Editora Globo, 2016, p. 16.
3 LEITÃO, Gustavo forte, BIASI, Caetano. Ser campeão é detalhe: Democracia Corintiana. São Paulo: DNA Filmes e Unicamp – Instituto de Artes, 2011.

http://www.sercampeaoedetalhe.com.br/. Acessado em: 07/01/2012.
4 FLORENZANO, José Paulo. op. cit. p. 271-77.
5 ibid. p. 295-305.
6 CASAGRANDE, Walter, RIBEIRO, Gilvan. op. cit. p. 130.
7 LEITÃO, Gustavo forte, BIASI, Caetano. op. cit.
8 Placar. “O Dia do Fico do rei corintiano”. 27 de abril de 1984. p. 38.
9 VASCONCELLOS, Jorge (org.). Recados da Bola: depoimentos de doze mestres do futebol brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2010. p. 219.
10 CASAGRANDE, RIBEIRO. op. cit. p. 185.
11 FLORENZANO, José Paulo. op. cit. p. 297.
12 ibid. p. 263.
13 idem.
14 CASAGRANDE, RIBEIRO. op. cit. p. 188,
15 FLORENZANO, José Paulo. op. cit. p. 266.
16 RUBEM PAIVA, Marcelo. “Prefácio”. In: CASAGRANDE, RIBEIRO. op. cit. p. 10.
17 CASAGRANDE, RIBEIRO. op. cit. p. 197-227.
18 CASAGRANDE, Walter, RIBEIRO, GILVAN. Casagrande e seus demônios. São Paulo: Editora Globo, 2013.
19 CASAGRANDE, RIBEIRO. Sócrates & Casagrande…. p. 33.