A realidade da população LGBTQIA+ no Brasil
A falta de dados sobre essa população (por exemplo, nos censos do IBGE) é uma amostra de como os governos anteriores a negligenciaram.
Por sorte, o movimento LGBTQIA+ conquistou a inclusão de orientação sexual e identidade de gênero nos registros do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) do SUS. Entre 2015 e 2017, foram registrados 778.527 casos de violência no SINAN. Em 24.564 casos, a vítima era LGBT [1]. Infelizmente, faltam dados sobre violência contra pessoas intersexo (cujo sexo biológico está entre o que é considerado masculino ou feminino pela medicina).
Os dados do SINAN demonstram que a violência acontece principalmente na residência da vítima (61%) e, em menor medida, em vias públicas (21%). Em 27% dos casos, o agressor era parceiro íntimo da vítima; em 17%, desconhecido; em 16%, amigo ou conhecido e, em 12%, familiar da vítima [2]. Para vítimas crianças entre 10 e 14 anos, em 29% dos casos relatados, o agressor era familiar da vítima; em 22%, amigo ou conhecido; em 16%, parceiro íntimo e apenas em 10%, um desconhecido. Entre vítimas de 60 anos ou mais, em 39% dos casos, o agressor era familiar da vítima.
Esse fato derruba o argumento dos fundamentalistas de que “respeito se ensina dentro de casa” e não na escola. Infelizmente, na maioria dos casos de violência contra LGBTQIA+, o agressor é familiar ou parceiro íntimo da vítima.
Em todo o mundo, estimativas sobre a quantidade de pessoas transgêneras (isto é, que têm identidade de gênero diferente do gênero que foi designado ao nascimento) são limitadas, mas elas variam entre 0,05% e 0,2% do total da população [3]. Ainda assim, as violências contra essas pessoas somam 1,5% (11.435) dos casos registrados pelo SINAN, ou 47% dos casos cujas vítimas são LGBT. Portanto, uma pessoa trans é vítima de violência 7 a 30 vezes mais que pessoas heterossexuais e cisgêneras.
Nos dados do SINAN, há uma proporção maior de vítimas do gênero feminino que masculino: entre as vítimas, 33% são lésbicas e 25%, gays; 6% são travestis, 32%, mulheres trans e 9%, homens trans.
Em relação à raça, considerando apenas os registros cuja vítima declarou sua raça, a proporção é semelhante à população em geral: 54% das vítimas eram negras, 44%, brancas e 2% indígenas ou amarelas. Como os agressores são, na vasta maioria das vezes, parentes ou conhecidos das vítimas, isso aponta que a discriminação contra pessoas LGBTQIA+ é semelhante nas famílias e vizinhanças negras e brancas.
Já nos crimes de ódio fatais contra pessoas trans registrados ano passado, 82% das vítimas eram negras [4]. Isso aponta que os crimes de ódio contra LGBTQIA+, que são um caso extremo de violência, são combinados com ódio racial.
Pessoas trans são ainda vítimas de violência policial, realidade também constatada em outros países. Numa pesquisa feita pela Fundacion Huesped na Argentina com 498 pessoas trans [5], 80% das mulheres trans e travestis relataram que já foram detidas e, destas, 62% relataram ter sofrido violência psicológica, 48%, violência física e 43%, abuso sexual dos agentes de segurança (policiais ou carcereiros). Como a violência policial também tem caráter racista, as travestis negras são vítimas mais frequentes dessa violência do que as pessoas trans brancas [6].
O acesso ao emprego também fica muito prejudicado por causa do preconceito. Por exemplo, um levantamento da Elancers com 10 mil empresas apontou que 18% delas não aceitam contratar LGBTs (7% para qualquer cargo, 11% para determinados cargos) [7]. Em outro levantamento, da Santo Caos, com 230 LGBTs, 40% delas relataram discriminação no trabalho e apenas 47% revelaram sua identidade sexual no trabalho [8].
Entre pessoas trans, o acesso a um emprego formal é ainda mais difícil, o que as empurra para a prostituição. Na pesquisa da Fundacion Huesped, 61% das travestis e mulheres trans afirmaram exercer trabalho sexual e 23% afirmaram que já exerceram esse tipo de trabalho. Relatos no Brasil mostram que a realidade aqui é semelhante à da Argentina.
Portanto, para combater o preconceito enfrentado pelas travestis, é preciso enfrentar a discriminação contra trabalhadoras do sexo.
A campanha ideológica de Bolsonaro contra as LGBTQIA+
Antes e durante as eleições de 2018, Bolsonaro conquistou sua fama destilando ódio contra os grupos oprimidos, fazendo “piadas” racistas, machistas e LGBTfóbicas, combatendo uma suposta “ideologia de gênero”, espalhando ‘fake news’ que associavam Haddad a um suposto “kit gay” e a uma suposta distribuição de mamadeiras com formato de genitália. Após sua eleição, a campanha ideológica contra as LGBTQIA+ continuou com a denúncia a uma performance de “golden shower” (uma apresentação artística voltada a um público adulto) e com a censura à campanha publicitária do Banco do Brasil (por mostrar jovens negros LGBTQIA+) e à ANCINE (pois ele não gostou do filme “Bruna Surfistinha”).
Combinado a isso, o presidente promoveu o desmonte de diversas políticas públicas para a população LGBTQIA+, a exclusão do grupo nas Diretrizes de Direitos Humanos, a extinção do Conselho de Combate à Discriminação LGBT+, o desmonte do Departamento de IST, AIDS e Hepatites Virais, entre outros.
A saúde LGBTQIA+ está sob ataque
A medicina tem sido historicamente utilizada para legitimar um discurso LGBTIfóbico ao estabelecer normas sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, patologizando todas as pessoas que não se encaixam nessas normas, seja pelos padrões de comportamento, uso de roupas, orientação afetiva ou sexual, identidade de gênero, sexo biológico, entre outros.
A homossexualidade e a transgeneridade deixaram de ser consideradas doenças pela OMS em 1992 e 2018, respectivamente. Infelizmente, as pessoas intersexo ainda são consideradas doentes e passam por mutilações quando ainda são bebês ou crianças.
Os bolsonaristas fazem um escândalo contra as pessoas trans e defendem que o SUS pare de realizar as cirurgias que fazem parte do chamado ‘processo transexualizador’ (como cirurgia de transgenitalização, de remoção das mamas, implantes de silicone, etc), que é previsto pelo protocolo de saúde da OMS. Ou seja, para eles, essas cirurgias só são aceitáveis se forem uma imposição, uma violência.
Nós defendemos o contrário. Pessoas adultas, sejam trans ou intersexo, têm o direito de escolher passar por cirurgias para melhor adequar seu corpo à sua auto-imagem. Por outro lado, os médicos não têm direito de impor essas cirurgias, ainda mais sobre bebês e crianças intersexo antes que elas sequer tenham idade o suficiente para escolher como deve ser a forma de seu próprio corpo.
Além disso, as profissionais do sistema de saúde devem ser treinadas para atender as necessidades do público LGBTQIA+, que tem altos índices de doenças mentais como depressão e ansiedade. É inaceitável que psiquiatras e psicólogos preconceituosos reforcem os estigmas e ajudem a piorar ainda mais o quadro de doença mental das LGBTQIA+ que procuram o sistema de saúde, principalmente das pessoas trans e intersexo.
É necessário também a realização de campanhas em defesa do sexo seguro que sejam adaptadas ao público LGBTQIA+, por exemplo com distribuição de camisinhas “masculinas” e “femininas”.
Uma educação em defesa da diversidade
As LGBTQIA+, assim como pessoas negras e pessoas com deficiência, são frequentemente alvo de bullying nas escolas. Essa violência leva muitas LGBTQIA+ a abandonarem os estudos. Por exemplo, na pesquisa da Fundacion Huesped, cerca de metade das pessoas entrevistadas abandonaram a escola pelo menos uma vez.
Em 2011, foram criadas propostas de debates a serem distribuídos nas escolas para promover o respeito à diversidade, que se concretizaram na criação do kit ‘Escola Sem Homofobia’. Infelizmente, devido a acordos com a bancada fundamentalista, a então presidenta Dilma vetou o kit, afirmando que não faria “propaganda de opção sexual”. Apesar disso, durante as eleições, Bolsonaro disseminou a ‘fake news’ que o kit (apelidado de forma oportunista de “kit gay”) havia sido criado e distribuído pelo PT. De que adiantou vetar o kit?
Os planos municipais de educação devem combater toda forma de preconceito e opressão e promover o respeito e a defesa da diversidade de gênero, de orientação sexual e de sexo biológico. Devemos lutar contra a política da censura dos fundamentalistas. A única maneira de impedir que a extrema-direita cresça sobre os preconceitos é combatendo esses preconceitos.
Combater a violência, inclusive policial
O governo Bolsonaro, a partir da Advocacia Geral da União (AGU), está buscando reverter a decisão do STF que criminaliza a LGBTIfobia. Nós não acreditamos que a criminalização da LGBTIfobia acabará com a discriminação contra a população LGBTQIA+. No entanto, essa decisão do STF foi um marco importante, principalmente no combate à sanha da extrema-direita. Não é à toa que ela, agora, quer reverter a decisão.
Os fundamentalistas afirmam que a criminalização da LGBTIfobia prejudicaria a liberdade religiosa. Assim, eles admitem que querem usar a “liberdade religiosa” como pretexto para discriminar. Afinal, os pastores da bancada fundamentalista ganharam fama e dinheiro disseminando preconceitos e destilando ódio contra as pessoas oprimidas e marginalizadas na nossa sociedade, em particular contra LGBTQIA+.
A perseguição policial às mulheres trans e travestis é absurda. A tortura da Verônica Bolina, travesti e negra, por agentes de segurança, que apareceu no programa transfóbico do Datena, e o assassinato da Laura Vermont, que recebeu facadas numa briga e depois levou tiros de policiais militares, são exemplos disso.
É preciso um novo modelo de segurança, com a desmilitarização da polícia e o treinamento dos agentes para o respeito aos direitos humanos e contrário a toda forma de preconceito e opressão, além da legalização e regularização do uso de drogas, que não deve ser tratado como crime, mas sim uma questão de saúde pública. É preciso combater a política de encarceramento e genocídio das travestis.
Um programa anticapitalista em defesa da LGBTQIA+
Em última instância, o objetivo de Bolsonaro e seus apoiadores é implementar a política da “moral e dos bons costumes”, onde as pessoas que não se encaixam nos padrões de gênero, sexualidade e sexo biológico sejam consideradas inimigas do povo e criminosas, como acontecia, na prática, durante a Ditadura. Essa é a natureza do neofascismo bolsonarista.
Há pessoas na esquerda que afirmam que não devemos defender as LGBTQIA+, que esse tema seria “cortina de fumaça” que impediria discussões “mais importantes” sobre a realidade. Elas estão equivocadas: nós devemos combater o preconceito que existe no senso comum da população, pois os fundamentalistas se apoiam no preconceito para conquistar fama, dinheiro e apoio para seus projetos políticos de ataque à população.
O bolsonarismo cresceu criticando a suposta “ideologia de gênero” e fazendo propaganda em cima da discriminação LGBTIfóbica. Portanto, o combate à extrema-direita passa também pela luta contra toda forma de opressão e discriminação.
Por outro lado, um programa em defesa das LGBTQIA+ precisa ser anticapitalista. As LGBTQIA+, em sua vasta maioria, estão na classe trabalhadora e são super-exploradas pelo capitalismo, enfrentando assédios, abusos e recebendo salários mais baixos que as demais pessoas da nossa classe. Em última instância, os interesses das LGBTQIA+ trabalhadoras são opostos aos da classe capitalista, inclusive ao setor dela que financia as Paradas LGBTQIA+ e que promove “programas de inclusão” de LGBTQIA+ em seu quadro de funcionários. Os capitalistas fazem isso para explorar nosso trabalho.
Nossas necessidades, nossos interesses e nossos sonhos não cabem no capitalismo. Nossa revolução socialista será colorida!
Notas
[1] https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-790X2020000200404&lng=es&nrm=iso
[2] Na pesquisa, esse campo era de múltipla escolha. Em cerca de 20% dos relatos, o agressor não foi identificado.
[3] Algumas estimativas estão resumidas no texto “Transgeneridade na ponta do lápis!”, disponível em http://travestisocialista.blogspot.com/2015/04/transgeneridade-na-ponta-do-lapis.html
[5] https://www.huesped.org.ar/noticias/informe-situacion-trans/
[6] Um estudo da LGBTQ Task Force nos EUA também aponta que a violência policial é mais frequente contra pessoas trans negras do que brancas. Disponível em: https://www.thetaskforce.org/injustice-every-turn-report-national-transgender-discrimination-survey/
[8] http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2015/04/40-dos-profissionais-lgbts-ja-sofreram-discriminacao-no-trabalho.html
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