Pular para o conteúdo
OPRESSÕES

Futebol além das pedaladas: o “tô nem aí” que nos mata

Ana Luiza Montenegro, santista, e Mariana Coimbra, palmeirense, da Resistência Feminista/SP
Imagem contem 2 fotos horizontais. Na parte de cima, o jogador Robinho, com a camisa do Santos. Na debaixo, uma manifestação, com o carta Abaixo a cultura do estupro
Edição sobre fotos de George Campos/USP Imagens

A paixão em torcer para um time de futebol é algo inexplicável. Tem o poder de transformar um dia bom em ruim ou um dia ruim em excelente. Te faz pertencente a uma comunidade de estranhos que compartilham com você uma parte da vida. Você sente amor, lealdade e devoção por seu clube. Apaixonado por ele, você o defende e o acompanha. Acha que ele tem algo de especial que mais nenhum outro time no mundo tem.

Torcer por um time é também torcer por ídolos, por aqueles jogadores que se destacam na história do clube, seja por sua lealdade, conquista de títulos, gols, defesas, dribles ou pedaladas. Que privilégio é ver um ídolo jogando! Alguns ídolos se tornaram tão grandes quanto o time que representavam. Pelé e Santos. Sócrates e Corinthians. Rogério Ceni e São Paulo. Ademir da Guia e Palmeiras. Cada time tem seus imortais.

Por ser algo tão central na vida de tantas pessoas no Brasil e no mundo, o futebol é um dos maiores palcos a receber os nossos olhares atentos. Quando o Marinho ou o Aranha denunciam o racismo dentro de campo, eles colocam essa realidade em pauta. A sociedade ganha. Quando o Santos anuncia a contratação de um jogador processado e condenado em primeira instância por estupro coletivo, a sociedade perde, e muito.

O futebol não se dissocia do machismo que estrutura nossa forma de viver. Mais do que isso, muitas vezes o aprofunda, considerando o lugar comum, ainda não superado, que o entende como proibido para as mulheres. O futebol para além do campo constitui uma série de relações sociais nas quais os padrões de masculinidade são exaltados, o que inevitavelmente alimenta a misoginia. Assim, espaços de sociabilidade frequentado por jogadores facilmente estruturam relações de poder e opressão, no qual o corpo da mulher é como um objeto, passível de qualquer violência. Não à toa, na história recente, são inúmeros os casos de jogadores envolvidos em casos de violência contra a mulher. No entanto, quase sempre recebem os olhares complacentes de parte da torcida, dos clubes e patrocinadores e de algumas vozes da imprensa esportiva. 

O Robinho, em especial, não é qualquer jogador. Foi e, infelizmente para muitos, ainda é um ídolo santista. Mas a paixão pelo time – e o machismo – pode ter consequências nefastas. Parte dos torcedores tem dificuldade de “abandonar” aquele que fez parte do último título do brasileirão. Que trouxe um futebol arte, ofensivo, compatível com o DNA santista. E que seria um reforço importante no momento que o time vive. Então muitos o defendem. Deslegitimam e ofendem a vítima. Ignoram o crime. Fazem o que em geral nossa sociedade faz com as denúncias de estupro, mas com uma paixão proporcional ao amor pelo time.

Nessa hora, devemos levantar a voz e dizer: não aceitaremos. No Brasil, em que uma mulher é estuprada a cada 9 minutos: não aceitaremos. Em que três mulheres são vítimas de feminicídio a cada dia: não aceitaremos. Em que 1,3 milhão de mulheres são agredidas por ano: não aceitaremos. Não aceitaremos também porque entendemos que mover as estruturas de uma sociedade machista, é disputar politicamente também o campo e bola. E não só: o que acontece fora de campo é, no fim das contas, o futebol em seu significado máximo. Por isso, a violência sexual cometida por um jogador não é menor ou indiferente ao seu desempenho dentro das quatro linhas. Não há ídolo possível em jogo, quando falamos de um homem que violentou uma mulher fora dele.

Quando um clube contrata um jogador acusado, condenado ainda que não definitivamente, ou até que já cumpriu pena por crime de estupro, o recado é claro: não importa. O estupro é colocado para baixo do tapete, ignorado ou minimizado e essa mensagem é amplificada, porque aqui falamos do grande palco que é o futebol. No caso em especial do Robinho, o estupro é banalizado, uma vez que ele mesmo declara que o sexo oral praticado sem consentimento “não é transar”. Não, não é mesmo, é estupro. 

A sociedade gosta de acreditar que o estuprador é um homem doente, antissocial, violento, que ataca mulheres indefesas em becos escuros. Mas a maioria dos estupradores são conhecidos da vítimas. Amigos, familiares, namorados, colegas. Homens comuns, que têm sua vida profissional e social regular. Homens que acreditam que tocar no corpo de uma mulher sem seu consentimento é algo natural e aceitável.

Vale lembrar que a paixão dos torcedores por seus ídolos e clubes é um sentimento poderoso e historicamente mobilizado por forças conservadoras, à exemplo do uso ufanista da Copa do Mundo de 70 pela ditadura militar ou mesmo por Bolsonaro em sua tantas convenientes e diferentes camisas de times brasileiros. Em um momento de ascenso do conservadorismo e de verdadeira cruzada empreendida contra o corpo das mulheres, ainda mais urgente se faz a denúncia contra qualquer possibilidade de que o esporte acolha estupradores, feminicidas e agressores de mulheres.

Felizmente, hoje existem muitos espaços de resistência que estão dispostos a somar vozes no debate público e pressionar para que o futebol e todo o meio esportivo seja parte da sociedade que desejamos construir. Se qualquer forma de violência contra a mulher não é o mundo que a gente quer, o futebol é parte desse e do mundo pelo qual lutamos, por isso que nele, inclusive, não aceitaremos a normalização da violência e da cultura do estupro.