A certeza na frente e a história na mão – e a cabeça no lugar

Pintura. Imagem de uma execução, com uma guilhotina

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Surpreendentemente, mas nem tanto, há setores da esquerda, embebecidos pelo culturalismo identitário, que estão a responsabilizar o professor decapitado pela sua decapitação. Com pouca coisa na cabeça, essa gente identifica anti-dialeticamente a Grande Revolução de 1789 com o atroz imperialismo francês, responsabilizando os princípios da primeira pelo crimes do segundo, o que não é muito diferente de condenar os essênios e cristãos de Paulo pelas torturas de Torquemada.

Em meio a esse anátema da razão promovido em tempos de escuridão, vale sempre resgatar o método do materialismo histórico e frisar que se o ateísmo que embasava a Verité e o Ser Supremo dos jacobinos era, do ponto de vista filosófico, tão idealista e, portanto, tão religioso quanto a crença no “direito divino” que sustentava ideologicamente o poder dos Bourbons, historicamente eles tiveram sentidos contrários. O mesmo, aliás, pode ser dito do islamismo dos resistentes (terroristas, aliás) de Argel na década de 1950 e o que grassa agora entre o neofascismo de cariz muçulmano.

A liberdade de religião não pode ser usada para obstar a liberdade de crítica da religião – qualquer que seja ela. O atentado à Porta dos Fundos e a decapitação no subúrbio parisiense só mostram como, hoje, a racionalidade da burguesia decadente só produz bárbaros, e que está em nossas mãos a defesa de uma verdadeira razão que possa livrar o mundo da irracionalidade do mundo capitalista.

Ainda que sua ideologia concebesse o mundo de ponta à cabeça, Robespierre e seus rousseauninos radicais, ao acionar a guilhotina, faziam a humanidade avançar, e não à toa aqueles que, tempos depois, compreenderam que as cabeças pensam a partir do chão que os pés pisam souberam reconhecer o papel dos revolucionários sans-cullotes de outrora, e se colocaram como seus continuadores críticos.

Continuamos nós, hoje, lutando para que a humanidade, em sua sinuosa e errática trajetória, possa vir a conquistar uma sociedade em que, nunca, a crença numa vida celestial possa vir a justificar a morte de um ser terreno. Sigamos.